Acesso para quem quer ou para quem pode? Equidade na utilização de consultas médicas em Portugal com base no INS 2019

Micaela Antunes Carlota Quintal Sobre os autores

Resumo

A equidade horizontal no uso de cuidados de saúde requer igual uso para igual necessidade, independentemente de outros fatores - predisponentes ou de capacitação (modelo de Andersen). O objetivo é avaliar a equidade no uso de consultas médicas em Portugal em 2019, comparando os resultados com os obtidos em estudo anterior, com dados de 2014. Os dados vêm do Inquérito Nacional de Saúde 2019. O uso de cuidados é medido pelo número de consultas. Para avaliar as determinantes da utilização, adota-se o modelo binomial negativo. Para quantificar a desigualdade/iniquidade relacionada com o rendimento, calcula-se o índice de concentração. Face a 2014, os efeitos do estado de saúde autoavaliado, limitação nas atividades diárias e problema de saúde prolongado são mais pronunciados e, a região, rendimento, tipo de agregado e estado civil são significativos, nas consultas de medicina geral e familiar. Nas outras consultas, o seguro perdeu significância estatística e o efeito educação foi atenuado, mas emergiu um efeito rendimento. O índice de iniquidade não é significativo nas consultas de medicina geral e familiar, como em 2014, mas o valor (significativo) desse índice aumentou para as consultas de outras especialidades.

Palavras-chave:
Equidade no acesso aos serviços de saúde; Índice de concentração; Inquérito Nacional de Saúde; Portugal

Introdução

O tema da equidade na utilização dos cuidados de saúde e na saúde em geral continua muito atual. Passaram mais de 40 anos desde a publicação, em 1980, do que ficou conhecido como Black Report11 Department of Health and Social Security (DHSS). Inequalities in health: report of a working group chaired by Sir Douglas Black. London: DHSS; 1980., ao qual se atribui um grande impacto sobre a subsequente investigação concetual e empírica na área das desigualdades em saúde e no acesso aos cuidados de saúde22 Macintyre S. The Black Report and beyond what are the issues? Soc Sci Med 1997; 44(6):723-745.. Apesar de toda essa atenção que tem sido dedicada ao assunto, a realidade é que as desigualdades persistem e em muitos casos aumentaram. Isto mesmo testemunham dois relatórios recentes sobre desigualdades em saúde, um da Organização Mundial de Saúde (OMS)33 World Health Organization (WHO). Healthy, prosperous lives for all: the European Health Equity Status Report. Copenhagen: WHO; 2019. e outro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)44 Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). Health for everyone? - Social inequalities in health and health systems. Paris: OECD Publishing; 2019., ambos publicados em 2019. Além de possuir valor intrínseco, a saúde é uma componente essencial da qualidade de vida e é de extrema importância para o sucesso em áreas como o trabalho, a educação e a participação ativa na vida comunitária44 Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). Health for everyone? - Social inequalities in health and health systems. Paris: OECD Publishing; 2019.. Embora a saúde dependa de um conjunto de determinantes55 Marmot M, Allen J, Bell R, Bloomer E, Goldblatt P. WHO European review of social determinants of health and the health divide. Lancet 2012; 380(9846);1011-1029., o acesso aos cuidados de saúde, independentemente das circunstâncias socioeconómicas, é reconhecidamente uma via para melhorar a saúde e combater desigualdades44 Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). Health for everyone? - Social inequalities in health and health systems. Paris: OECD Publishing; 2019.. É deste modo pertinente monitorizar continuamente o acesso aos cuidados de saúde.

Contudo, o acesso aos cuidados de saúde é um conceito multifacetado, envolvendo fatores, quer do lado da procura, quer do lado da oferta. Assim, o acesso é influenciado por determinantes como a necessidade de cuidados de saúde, a própria perceção que os indivíduos têm da sua saúde e dos serviços de saúde, bem como pela disponibilidade, proximidade e custo dos serviços de saúde à disposição da população66 Levesque JF, Harris MF, Russell G. Patient centred access to health care: conceptualising access at the interface of health systems and populations. Int J Equity Health 2013; 12:18.. Segundo o conhecido modelo de Andersen77 Andersen RM. Revisiting the behavioral model and access to medical care: does it matter? J Health Soc Behav 1995; 36(1):1-10. sobre a utilização de cuidados de saúde, essa utilização pode ser vista como acesso realizado e depende de três tipos de fatores: i) necessidade de cuidados de saúde; ii) fatores predisponentes (variáveis que influenciam a propensão dos indivíduos para procurarem cuidados, sejam sociodemográficas ou atitudes em relação à saúde/doença); iii) fatores de capacitação (os recursos à disposição dos indivíduos que facilitam, mais, ou menos, a utilização de cuidados). Do ponto de vista da análise da equidade, o relevante é agrupar esses fatores em variáveis de necessidade, por um lado, e as restantes - variáveis de não-necessidade, por outro. Ou seja, o relevante é avaliar o cumprimento do princípio de “igual utilização de cuidados de saúde, para igual necessidade”. Este é o conceito de equidade (horizontal) que tem orientado as análises empíricas sobre a utilização de cuidados de saúde88 Wagstaff A, van Doorslaer E. Equity in Health care finance and delivery. In: Culyer AJ, Newhouse JP, editors. Handbook of health economics. New York: Elsevier; 2000. p. 1803-1862..

Em Portugal, as questões relacionadas com a equidade e o acesso aos cuidados de saúde têm sido contempladas em documentos normativos e programáticos, desde a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS)99 Portugal. Lei nº 56/1979. Diário da República, I Série, nº 214 (1979/09/15). p. 2357-2363., passando pela Lei de Bases da Saúde, de 19901010 Portugal. Lei nº 48/1990. Diário da República, I Série, nº 195 (1990/08/24). p. 3452-3459., até ao Plano Nacional de Saúde, que esteve em vigor até 20201111 Direção Geral de Saúde (DGS)/Ministério da Saúde. Plano Nacional de Saúde - Revisão e extensão a 2020. Lisboa: DGS; 2015. [acessado 2021 dez 28]. Disponível em: http://1nj5ms2lli5hdggbe3mm7ms5-wpengine.netdna-ssl.com/files/2015/06/Plano-Nacional-de-Saude-Revisao-e-Extensao-a-2020.pdf.pdf. O reconhecimento da importância da equidade manteve-se na nova Lei de Bases da Saúde1212 Portugal. Lei nº 95/2019. Diário da República, I Série, nº 169 (2019/09/04). p. 55-66., de 2019, onde se advoga como fundamento da política de saúde “A igualdade e a não discriminação no acesso a cuidados de saúde de qualidade em tempo útil, a garantia da equidade na distribuição de recursos e na utilização de serviços e a adoção de medidas de diferenciação positiva de pessoas e grupos em situação de maior vulnerabilidade” (Base 4 - nº2, alínea d). É também expresso que a atuação do SNS deve pautar-se por diversos princípios, entre eles, a equidade (Base 20 - nº2, alínea e). Às próprias tecnologias da saúde é atribuído um papel na promoção da equidade no acesso (Base 17 - nº1). O Plano Nacional de Saúde 2021-2030 está ainda em desenvolvimento, mas as iniquidades em saúde encontram-se entre os desafios destacados para a próxima década1313 Serviço Nacional de Saúde. Plano Nacional de Saúde 2021-2030. [acessado 2021 dez 28]. Disponível em: https://www.sns.gov.pt/noticias/2019/10/08/plano-nacional-de-saude-2021-2030/
https://www.sns.gov.pt/noticias/2019/10/...
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A evidência prévia sobre a equidade na utilização de consultas médicas em Portugal é relativamente escassa. Os resultados encontrados evidenciam a existência de fatores, para além da necessidade, com impacto sobre a utilização de consultas1414 van Doorslaer E, Koolman X, Jones AM. Explaining income-related inequalities in doctor utilization in Europe. Health Econ 2004; 13(7):629-647.

15 van Doorslaer E, Masseria C. Income-related inequality in the use of medical care in 21 OECD countries. Paris: OECD; 2004.

16 d'Uva TB, Jones AM, van Doorslaer E. Measurement of horizontal inequity in health care utilisation using European panel data. J Health Econ 2009; 28(2):280-289.

17 Lourenço Ó, Quintal C, Ferreira PL, Barros PP. A equidade na utilização de cuidados de saúde em Portugal: uma avaliação baseada em modelos de contagem. Notas Econ 2007; 25:6-27.

18 Or Z, Jusot F, Yilmaz E. Impact of health care system on socioeconomic inequalities in doctor use. IRDES Working Paper 2008; 17.

19 Tavares LP, Zantomio, F. Inequity in healthcare use among older people after 2008: the case of southern European countries. Health Policy 2017; 121(10):1063-1071.
-2020 Quintal C, Antunes M. Equidade na utilização de consultas médicas em Portugal: na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza? Acta Med Port 2020; 33(2):93-100.. Exemplos destes fatores são o rendimento, educação, e seguro de saúde, em que maior rendimento, maior nível de escolaridade, e dupla ou tripla cobertura de seguro, estão associados a maior utilização de consultas médicas, sobretudo consultas de especialidades para além da medicina geral e familiar. Todavia, esses estudos têm mostrado uma significativa redução na magnitude da iniquidade no caso das consultas de outras especialidades. Não obstante essa evolução favorável, urge sublinhar que no relatório da OCDE44 Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). Health for everyone? - Social inequalities in health and health systems. Paris: OECD Publishing; 2019., de 2019, Portugal surge entre os três países com maior iniquidade (em termos médios) para esse tipo de consulta. Este é de resto um resultado consistente ao longo do tempo. Em 2004, num estudo para 21 países da OCDE1515 van Doorslaer E, Masseria C. Income-related inequality in the use of medical care in 21 OECD countries. Paris: OECD; 2004., Portugal era mesmo o país com o nível mais elevado de iniquidade nas consultas de outras especialidades (dados de 2000). Desse modo, além da relevância em geral da equidade na utilização de consultas médicas, Portugal é um país para o qual se justifica particularmente o escrutínio desta matéria. Assim, com este estudo pretende-se analisar a equidade na utilização de consultas médicas em Portugal, com base nos dados do mais recente Inquérito Nacional de Saúde (INS), de 2019, enfatizando a sua evolução face a 2014 (data do INS anterior). Ou seja, é nosso objetivo perceber se ocorreu uma aproximação ou afastamento ao princípio da equidade horizontal em que deve existir igual utilização para igual necessidade, para as consultas de medicina geral e familiar e de outras especialidades. Embora este estudo incida sobre uma amostra para Portugal, ele vem contribuir para uma literatura em que escasseiam estudos empíricos mais recentes, conforme está patente na revisão sistemática desenvolvida por Lueckmann et al.2121 Lueckmann SL, Hoebel J, Roick J, Markert J, Spallek J, von dem Knesebeck O, Richter M. Socioeconomic inequalities in primary-care and specialist physician visits: a systematic review. Int J Equity Health 2021; 20(1):58. Assim, cumpre o papel de alertar para mudanças que podem estar a ocorrer também em outros países da OCDE, quer em termos dos fatores determinantes do uso, quer em termos do comportamento dos índices de concentração.

Métodos

Fonte dos dados

Os dados usados neste artigo provêm do INS 2019, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística, com base numa amostra representativa de 22.191 alojamentos de todo o território nacional. A população-alvo do inquérito foi o conjunto de todos os indivíduos com idade igual ou superior a 15 anos que, no período de referência, residiam no território nacional. Em cada alojamento foi selecionado apenas um indivíduo pelo método do último aniversário. A recolha de dados decorreu entre setembro de 2019 e janeiro de 2020, por meio de entrevistas presenciais e via web. Foram obtidas 14.617 respostas válidas2222 Instituto Nacional de Estatística (INE). Inquérito Nacional de Saúde 2014. 2020. [acessado 2022 jan 17]. Disponível em: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=414434213&DESTAQUESmodo=2
https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=IN...
. As amostras utilizadas neste estudo incluem 10.112 observações no caso das consultas de medicina geral e familiar, 6.540 para a análise das consultas de outras especialidades e, por fim, 11.122 observações no caso do número total de consultas. Note-se que o número de observações para esta última análise é inferior ao somatório das observações utilizadas nas duas análises anteriores, uma vez que existe um conjunto de indivíduos que estão incluídos quer na amostra das consultas de medicina geral e familiar, quer na amostra das consultas de outras especialidades. Assim, na análise das consultas totais somam-se todas as consultas destes indivíduos, mas cada indivíduo só é contabilizado uma vez na amostra.

Variáveis usadas

Para medir a utilização de cuidados de saúde, recorreu-se a duas perguntas do INS 2019, relativas à consulta com um médico de medicina geral e familiar nas últimas quatro semanas e à consulta com um médico de outra especialidade nas últimas quatro semanas. Essas perguntas foram colocadas apenas aos indivíduos que numa pergunta prévia tinham respondido que a última consulta com o médico (de medicina geral e familiar ou de outra especialidade, consoante o caso) ocorreu há menos de 12 meses. Assim, apenas esses indivíduos foram considerados no nosso estudo. A partir dessas duas perguntas, criou-se uma variável adicional para medir o número total de consultas nas últimas quatro semanas, quer sejam de medicina geral e familiar ou de outra especialidade.

O Quadro 1 apresenta a designação e a definição das variáveis agrupadas em variáveis dependentes e variáveis explicativas - de necessidade e de não-necessidade.

Quadro 1
Descrição das variáveis dependentes (cada um dos tipos de consulta) e explicativas (variáveis de necessidade e de não-necessidade).

Estratégia econométrica

Para avaliar os fatores com impacto na utilização de consultas médicas, recorremos à análise de regressão multivariada, considerando variáveis de necessidade e variáveis de não-necessidade (conforme definição no Quadro 1). Uma vez que a variável “número de consultas” assume valores inteiros, não-negativos e sem limite superior definido, sendo a respetiva distribuição caracterizada por muitos zeros e caudas grandes, adotamos o modelo binomial negativo, recomendado para esses casos1414 van Doorslaer E, Koolman X, Jones AM. Explaining income-related inequalities in doctor utilization in Europe. Health Econ 2004; 13(7):629-647.,1919 Tavares LP, Zantomio, F. Inequity in healthcare use among older people after 2008: the case of southern European countries. Health Policy 2017; 121(10):1063-1071.. Em termos de interpretação dos resultados desta análise de regressão, um efeito marginal estatisticamente significativo nas variáveis de não-necessidade indicia a violação do princípio de igual utilização para igual necessidade.

Para quantificar as desigualdades relacionadas com o rendimento na utilização de consultas médicas, recorremos ao método do índice de concentração2323 O'Donnell O, van Doorslaer E, Wagstaff A, Lindelow M. Analyzing health equity using survey data: a guide to techniques and their implementation. Washington: The World Bank; 2008.,2424 Kakwani NC, Wagstaff A, van Doorslaer E. Socioeconomic inequalities in health: measurement, computation and statistical inference. J Econom 1997; 77(1):87-104.. Quando este índice é nulo, existe igual utilização de consultas, independentemente do nível de rendimento; quando é negativo (positivo), a utilização encontra-se desproporcionalmente concentrada nos mais pobres (ricos). Contudo, para ajuizar sobre a equidade, é indispensável confrontar a utilização de cuidados de saúde com a sua necessidade. Assim, recorremos ao índice de iniquidade horizontal. Se este índice for nulo (ausência de significância estatística), então não podemos excluir a hipótese de equidade na utilização de consultas; se for positivo, estamos na presença de iniquidade horizontal a favor dos mais ricos; se o índice for negativo, os indivíduos nos quintis de rendimento inferiores são os mais beneficiados2323 O'Donnell O, van Doorslaer E, Wagstaff A, Lindelow M. Analyzing health equity using survey data: a guide to techniques and their implementation. Washington: The World Bank; 2008.. Para estimar os índices de concentração e de iniquidade usámos o comando conindex do Stata 15.12525 O'Donnell O, O'Neill S, Van Ourti T, Walsh B. Conindex: estimation of concentration indices. Stata J 2016; 16(1):112-38..

No que diz respeito às questões éticas, não se procedeu a qualquer recolha primária de informação. Os dados provêm do INS 2019, o qual se enquadra no projeto EHIS (European Health Interview Survey), cuja recolha regular está prevista no Regulamento CE nº 1338/2008. O Regulamento UE 2018/255, de 19 de fevereiro, estabelece as variáveis e critérios aplicáveis na recolha de 20192222 Instituto Nacional de Estatística (INE). Inquérito Nacional de Saúde 2014. 2020. [acessado 2022 jan 17]. Disponível em: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=414434213&DESTAQUESmodo=2
https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=IN...
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Resultados

Conforme se pode observar na Tabela 1, a amostra relativa às consultas de medicina geral e familiar é composta na sua maioria por mulheres (60% versus 40% em 2014), tendo 42% dos indivíduos inquiridos idade igual ou superior a 65 anos. Cerca de 18% consideram o seu estado de saúde como sendo mau ou muito mau e cerca de dois terços apresentam um problema de saúde prolongado. Ainda assim, quase metade (49%) considera não sentir limitações nas suas atividades diárias devido a questões de saúde, representando uma ligeira deterioração em relação aos resultados de 2014 (55%). O número médio de doenças crónicas é três (num máximo de 14) e 61% têm excesso de peso, valor um pouco superior ao de 2014 (58%).

Tabela 1
Estatísticas descritivas sobre as variáveis de necessidade e de não-necessidade para cada um dos tipos de consultas (medicina geral e familiar, de outras especialidades e total de consultas).

Em relação às variáveis de não-necessidade, não existem diferenças significativas em termos da distribuição por quintil de rendimento, embora o peso dos indivíduos no quintil de rendimento mais elevado seja o mais baixo (17%). Tal como em relação ao quintil de rendimento, também para o nível de escolaridade os resultados mantêm-se em relação ao INS 2014, com 58% dos indivíduos com o ensino básico completado. Observa-se uma ligeira redução na percentagem de indivíduos que residem numa zona pouco povoada (34% versus 38% em 2014). Mais de um quarto dos inquiridos (27%) vive sozinho e 32% pertencem a um agregado formado apenas pelo casal. Quarenta por cento (40%) dos indivíduos encontram-se empregados e 58% são casados ou vivem em união de facto, valores semelhantes aos observados em 2014. A percentagem de indivíduos que não se beneficia de qualquer subsistema ou seguro de saúde reduziu-se de 70% em 2014 para 65% em 2019. Em termos da distribuição geográfica dos inquiridos, a percentagem mais elevada (19%) verifica-se para o Algarve.

Quanto à amostra para as consultas de outras especialidades, não existem grandes diferenças em relação às variáveis de necessidade, comparando com a amostra anterior. Quanto às variáveis de não-necessidade, é mais expressiva agora a percentagem de indivíduos no 5º quintil de rendimento, sendo o peso dos indivíduos do 1º quintil de rendimento o mais reduzido (16%) e o peso do 2º quintil o mais elevado (23%). Em relação à escolaridade, é agora também mais expressivo o peso dos indivíduos com ensino secundário ou superior (37% versus 30%). Em 2014, essas percentagens eram inferiores e mais similares entre as duas amostras, 34% versus 28%. É ligeiramente menor, em comparação com a amostra de medicina geral e familiar, a percentagem de indivíduos que vive numa área fracamente povoada (31%). Quarenta e um por cento (41%) dos indivíduos encontram-se empregados (tal como em 2014), e quando comparada com a amostra anterior, agora há 57% de indivíduos apenas com o SNS (contra 65% nas consultas de medicina geral e familiar). Em 2014, aquela percentagem era de 62% (diminuiu, portanto, o peso dos indivíduos apenas com cobertura do SNS na amostra das consultas de outras especialidades). O Algarve volta a ser a região relativamente mais representada (19%).

As estatísticas descritivas para o total de consultas não diferem muito das anteriores.

Na Tabela 2 apresentam-se os efeitos marginais médios das variáveis explicativas sobre a utilização de cada tipo de consultas. Nas figuras 1 e 2 representam-se apenas os efeitos significativos a 1% e 5% sobre a utilização de consultas de medicina geral e familiar e consultas de outras especialidades, respetivamente, sendo possível comparar os resultados obtidos a partir do INS 2014 com os atuais, do INS 2019.

Tabela 2
Efeitos marginais médios das variáveis de necessidade e de não-necessidade para cada proxy de utilização e índice de concentração para o número efetivo de consultas e para a utilização, padronizada pela necessidade.

Figura 1
Efeitos marginais significativos das variáveis de necessidade e de não-necessidade, a 1% e 5%, para as consultas de medicina geral e familiar, Inquérito Nacional de Saúde 2014 e Inquérito Nacional de Saúde 2019.

Figura 2
Efeitos marginais significativos das variáveis de necessidade e de não-necessidade, a 1% e 5%, para as consultas de outras especialidades, Inquérito Nacional de Saúde 2014 e Inquérito Nacional de Saúde 2019.

Em relação às variáveis de necessidade, os resultados com significância estatística apresentam de forma geral o sinal esperado. Um melhor estado de saúde autoavaliado e menores limitações nas atividades diárias diminuem a utilização de todas as categorias de consultas. A magnitude dos efeitos está em concordância com os níveis dentro de cada indicador, isto é, quanto mais nos afastamos das categorias de referência (saúde muito má/má e muito/extremamente limitado), maiores são os valores (absolutos) dos efeitos marginais na Tabela 2. Em sentido contrário, a existência de problemas de saúde prolongados aumenta transversalmente a utilização de consultas, e o número de doenças crónicas também afeta positivamente o uso, mas apenas nas consultas totais. O excesso de peso e o sexo não têm impacto na utilização. Na idade, os grupos são comparados com os mais velhos (85 ou mais anos), sendo os efeitos marginais negativos e não significativos nas consultas de medicina geral e familiar. Nas outras consultas, o sinal passa a positivo e os efeitos marginais são significativos até 64 (54) anos para consultas de outras especialidades (totais).

No que toca às variáveis de não-necessidade, pertencer ao 2º quintil de rendimento tem um impacto negativo sobre a utilização de consultas de medicina geral e familiar, enquanto pertencer aos dois quintis de rendimento mais elevados leva a maior utilização das outras consultas. Da mesma forma, o facto de o indivíduo ter um nível de escolaridade elevado (ensino superior) conduz a maior utilização destas consultas. A circunstância de o indivíduo ser casado ou viúvo aumenta a utilização de consultas de outras especialidades (e totais), enquanto ser divorciado tem o mesmo tipo de impacto em todas as consultas. Estar empregado conduz a menos utilização de consultas de outras especialidades. Beneficiar somente do SNS aumenta (diminui) a utilização das consultas de medicina geral e familiar (totais), contudo, possui significância estatística apenas ao nível de 10%. Em relação aos efeitos regionais, regista-se um impacto positivo em Lisboa e nos Açores para as consultas de outras especialidades, negativo no Algarve e Centro para as consultas de medicina geral e familiar (e totais), no Alentejo para as consultas totais e na Madeira para todo o tipo de consultas, quando comparado com a região Norte.

Comparando os resultados de 2019 com os de 2014, verificamos que as variáveis de necessidade que tinham um impacto estatisticamente significativo a 1% ou 5% sobre a utilização de consultas de medicina geral e familiar em 2014 têm agora um impacto mais pronunciado (estado de saúde bom/muito bom ou razoável, existência de problema de saúde prolongado, existência de limitações nas atividades diárias), à exceção do número de doenças crónicas, que deixa de ser significativo. No que concerne às variáveis de não-necessidade, pertencer ao 2º quintil de rendimento, viver numa zona medianamente povoada ou pertencer às regiões do Algarve, Centro ou Madeira apresenta um impacto negativo e estatisticamente significativo. Em sentido contrário, regista-se que o facto de o indivíduo viver sozinho, fazer parte de um agregado monoparental ou ser divorciado afeta positivamente a utilização desse tipo de consultas. É de registar que, desse conjunto de variáveis de não-necessidade, apenas uma (residir na Madeira) apresentava significância estatística em 2014.

Em relação aos fatores impactantes das consultas de outras especialidades, observa-se que as variáveis de necessidade que se revelavam significativas a 1% e 5% a partir dos dados do INS 2014 apresentam agora uma magnitude mais pronunciada. A novidade reside no facto de a idade (até 64 anos) revelar um sinal positivo e significativo sobre a utilização deste tipo de consultas. Em relação às variáveis de não-necessidade, as diferenças de resultados são mais evidentes. A única variável significativa comum aos dois momentos é a do ensino superior, agora com um impacto mais reduzido. Possuir um dos níveis de escolaridade inferior, residir numa zona densamente povoada ou pertencer à região de Lisboa deixam de surtir um efeito significativo. Beneficiar apenas do SNS, com um impacto negativo sobre a procura de cuidados em 2014, deixa também de ter um impacto significativo. Em contrapartida, com os dados do INS 2019, constata-se que pertencer a um quintil de rendimento mais elevado (4º ou 5º), ser viúvo ou divorciado ou residir nos Açores têm agora um efeito positivo e estatisticamente significativo sobre a utilização de consultas de outras especialidades.

Analisando a distribuição da utilização de consultas (Tabela 2), observa-se que esta se encontra desproporcionalmente concentrada nos agregados mais pobres no caso das consultas de medicina geral e familiar, e nas famílias mais ricas no caso das consultas de outras especialidades. O efeito combinado destes resultados conduz a um índice de concentração para as consultas totais próximo de zero (e não significativo).

Em termos da análise da equidade, para as consultas de medicina geral e familiar, o índice de iniquidade não tem significância estatística. Assim, não se exclui a existência de equidade na utilização destas consultas. Já para as consultas de outras especialidades e consultas totais, o índice de iniquidade horizontal é positivo e significativo, indiciando um uso favorável aos indivíduos mais ricos.

Discussão

O objetivo deste estudo é analisar a evidência sobre a equidade na utilização de consultas médicas em Portugal, comparando os resultados obtidos a partir do INS 2019 com os obtidos em estudo anterior a partir do INS 20142020 Quintal C, Antunes M. Equidade na utilização de consultas médicas em Portugal: na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza? Acta Med Port 2020; 33(2):93-100.. Em relação às consultas de medicina geral e familiar, tal como em 2014, não se encontrou evidência de iniquidade relacionada com o rendimento na sua utilização. Este resultado sugere que indivíduos de diferentes quintis de rendimento estarão a recorrer a estas consultas conforme a sua necessidade, independentemente do seu rendimento. Para as consultas de outras especialidades, e novamente em concordância com os resultados de 2014, o valor do índice de iniquidade horizontal é positivo. Assim, a evidência sugere que indivíduos de rendimento mais elevado estão a utilizar cuidados de saúde/ter consultas acima do que seria esperado face à sua necessidade. Estes resultados têm sido interpretados como consequência do facto de os mais pobres, em Portugal, recorrerem sobretudo aos cuidados de saúde primários, tendencialmente gratuitos, e os mais ricos recorrerem a consultas no setor privado1414 van Doorslaer E, Koolman X, Jones AM. Explaining income-related inequalities in doctor utilization in Europe. Health Econ 2004; 13(7):629-647.

15 van Doorslaer E, Masseria C. Income-related inequality in the use of medical care in 21 OECD countries. Paris: OECD; 2004.
-1616 d'Uva TB, Jones AM, van Doorslaer E. Measurement of horizontal inequity in health care utilisation using European panel data. J Health Econ 2009; 28(2):280-289.. Mas esta combinação de resultados, índice de iniquidade horizontal não significativo para as consultas de medicina geral e familiar e positivo para as consultas de outras especialidades, é extensível a outros países para os quais existe evidência2121 Lueckmann SL, Hoebel J, Roick J, Markert J, Spallek J, von dem Knesebeck O, Richter M. Socioeconomic inequalities in primary-care and specialist physician visits: a systematic review. Int J Equity Health 2021; 20(1):58.. É ainda de realçar que o índice de iniquidade horizontal para as consultas de outras especialidades em Portugal subiu em 2019 face a 2014 (0,0732 versus 0,0668), o que pode refletir a inversão da trajetória descendente identificada anteriormente2020 Quintal C, Antunes M. Equidade na utilização de consultas médicas em Portugal: na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza? Acta Med Port 2020; 33(2):93-100.. Com base na literatura, o valor deste índice atingiu o seu máximo (0,208) em 20001414 van Doorslaer E, Koolman X, Jones AM. Explaining income-related inequalities in doctor utilization in Europe. Health Econ 2004; 13(7):629-647., tendo apresentado valores inferiores para as rondas posteriores do INS.

Em relação às consultas totais, o índice de iniquidade obtido com o INS 2019 (0,0544) é semelhante ao obtido com o INS 2014 (0,0535), concluindo-se também neste caso que existe iniquidade favorável aos indivíduos de rendimento mais elevado. Desse modo, mesmo admitindo que existe substituição entre consultas de medicina geral e familiar e consultas de outras especialidades (a hipótese que subjaz a uma análise conjunta das consultas), a concentração das consultas de medicina geral e familiar nos indivíduos mais pobres não é suficiente para compensar a concentração das consultas de outras especialidades nos mais ricos, o que significa que a necessidade se encontra ainda muito mais concentrada nos mais pobres. A título de comparação, num estudo para o Brasil2626 Mullachery P, Silver D, Macinko, J. Changes in health care inequity in Brazil between 2008 and 2013. Int J Equity Health 2016; 15(1):140., o índice de iniquidade, para a variável dicotómica “teve/não teve qualquer tipo de consulta médica”, nos últimos 12 meses apresentou valores de 0,0537 e 0,0586 para os anos de 2008 e 2013, respetivamente. Ainda que a comparação seja limitada, uma vez que no presente estudo se considera o número total de consultas nas últimas quatro semanas, constata-se que a magnitude da iniquidade existente em Portugal para as consultas totais em 2019 é comparável à magnitude existente no Brasil em 2008.

Ainda no contexto da América do Sul, um estudo para o Chile2727 Vásquez F, Paraje G, Estay M. Income-related inequality in health and health care utilization in Chile, 2000-2009. Rev Panam Salud Publica 2013; 33(2):98-106. com dados de 2009 obteve índices de iniquidade iguais a 0,036, 0,191 e 0,097 para consultas de medicina geral e familiar, de outras especialidades e totais, respetivamente. Esta última situação é similar à que se verificava em Portugal uma década antes (em 2000). As comparações ao nível internacional são limitadas pela escassez de estudos contemporâneos do nosso (veja-se a revisão de literatura de Lueckmann et al.2121 Lueckmann SL, Hoebel J, Roick J, Markert J, Spallek J, von dem Knesebeck O, Richter M. Socioeconomic inequalities in primary-care and specialist physician visits: a systematic review. Int J Equity Health 2021; 20(1):58., em que de 57 estudos, apenas dez foram publicados desde 2015, e na sua maioria com dados até 2011/12). Um estudo para o norte da Suécia2828 San Sebastián M, Mosquera PA, Ng N, Gustafsson PE. Health care on equal terms? Assessing horizontal equity in health care use in Northern Sweden. Eur J Public Health 2017; 27(4):637-643. com dados de 2014 encontrou resultados contrários à evidência internacional. Isto é, índices de iniquidade não significativos, para consultas de outras especialidades, e positivos e significativos para consultas de medicina geral e familiar (0,0245). Não avançando explicações para este resultado, os autores notam que é algo preocupante (em 2006 este índice era praticamente nulo e em 2010 passa a positivo). Em todo o caso, em termos absolutos, o índice de iniquidade para as consultas totais (que incluem as de medicina geral e familiar) para Portugal é mais do que o dobro daquele índice para a Suécia.

Num outro estudo também para o norte da Suécia2929 Mosquera PA, Waenerlund AK, Goicolea I, Gustafsson PE. Equitable health services for the young? A decomposition of income-related inequalities in young adults' utilization of health care in northern Sweden. Int J Equity Health 2017; 16(1):20. e também com dados de 2014, mas restrito a jovens com idades entre 16 e 25 anos, os autores encontraram evidência em linha com os resultados mais frequentes, isto é, concentração nos mais pobres, no caso da utilização (ajustada pela necessidade) das consultas de medicina geral e familiar, com um índice de iniquidade igual a -0,097. No entanto, no caso das “Youth clinics”, a evidência revelou concentração nos mais ricos em termos globais e, em particular, entre as jovens mulheres, com índices de iniquidade iguais a 0,097 e 0,166, respetivamente. Essas clínicas são especializadas na saúde dos jovens, incluindo a saúde sexual e reprodutiva. Esses últimos índices de iniquidade são substancialmente maiores do que os encontrados para Portugal (embora a comparação seja limitada pela amostra muito específica considerada no estudo para a Suécia). Tavares e Zantomio1919 Tavares LP, Zantomio, F. Inequity in healthcare use among older people after 2008: the case of southern European countries. Health Policy 2017; 121(10):1063-1071., usando dados de 2010 (indivíduos de 50 anos ou mais), obtiveram, para Portugal, índices de iniquidade iguais a 0,085 e 0,114, para consultas de medicina geral e familiar e de outras especialidades, respetivamente. Para Itália e Espanha os índices encontrados são -0,073 e 0,096 (-0,043 e 0,067). Estes resultados sugerem que em Itália e Espanha a iniquidade relacionada com a educação (variável de ordenação) segue o mesmo padrão que a iniquidade relacionada com o rendimento. Já em Portugal, nos dois tipos de consulta, são sempre os indivíduos com maior nível de educação que utilizam mais do que o esperado (em valor absoluto, estes índices estão acima do valor encontrado no nosso estudo para as consultas de outras especialidades).

Para além desta análise da distribuição das consultas por grupos de rendimento, torna-se pertinente olhar para as determinantes da utilização, agrupando-as em variáveis de necessidade e variáveis de não-necessidade. Em relação às primeiras, os resultados são conforme o esperado, com a exceção do efeito da idade. Nos dados do INS 2014, a idade não se revelou significativa para qualquer tipo de consulta. Em 2019, surge com impacto (efeito estatisticamente significativo) nas consultas de outras especialidades e totais, mas com um sinal aparentemente contrário ao que seria de esperar. Isto é, em princípio, conforme aumenta a idade, aumenta a necessidade. No entanto, nos nossos resultados, encontramos uma utilização mais elevada em faixas etárias mais novas, quando comparadas com o grupo de 85 ou mais anos. Provavelmente, tal estará relacionado com a idade muito avançada da categoria de referência. Aliás, o impacto da idade deixa de ser significativo nas faixas etárias acima de 65 anos. Atingida a terceira idade, a evidência sugere que não existem diferenças relacionadas com a idade na utilização destes cuidados especializados. A variável sexo e o número de doenças crónicas deixa de ter qualquer significância estatística face a 2014, mas foi reforçada a magnitude dos efeitos das variáveis de estado de saúde autoavaliado, da limitação nas atividades diárias e problema de saúde prolongado. Estes resultados estão em conformidade com a equidade vertical na utilização, em que usa mais quem tem mais necessidade, introduzindo ainda maior distinção, em comparação com 2014, entre quem necessita de cuidados de saúde e quem deles não precisa.

No que toca às variáveis de não-necessidade, constatamos a existência de efeitos estatisticamente significativos, o que constitui uma violação da equidade horizontal na utilização de cuidados de saúde de acordo com a necessidade. Uma diferença marcante em 2019 relativamente a 2014 diz respeito ao maior número de variáveis com impacto no uso de consultas de medicina geral e familiar. De facto, em 2014, apenas viver na Madeira revelou significância estatística, enquanto em 2019 são oito os efeitos com significância estatística. Estes estão relacionados com as regiões, bem como com o rendimento, tipo de agregado e estado civil. No que concerne às consultas de outras especialidades, comparando 2019 e 2014, observamos que, pela positiva, a cobertura de seguro deixa de ter impacto no uso e a escolaridade passa a ter influência apenas ao nível do ensino superior (com efeito atenuado). Contudo, surgem novos efeitos relacionados com o rendimento e estado civil. Assim, a evidência sugere que a diferenciação no uso de consultas de outras especialidades não será tanto explicada pela dupla ou tripla cobertura de seguro, tradicionalmente apontada como uma razão para o acesso direto a essas consultas3030 Simões J, Augusto GF, Fronteira I, Hernández-Quevedo C. Portugal: health system review. Health Syst Transit 2017; 19(2):1-184., mas sobretudo por elevados rendimentos. Em termos de regiões NUT II, não se encontraram efeitos generalizados. Para cada um dos momentos, apenas se obteve evidência de maior uso numa região. Em 2014, este efeito aparecia para Lisboa, e em 2019 surge para os Açores. Eventualmente poderá estar a ocorrer alguma substituição entre consultas de medicina geral e familiar por consultas de outras especialidades.

Comparando com outros estudos, ressalvando as limitações já enunciadas, num estudo para Espanha3131 Abásolo I, Saez M, López-Casasnovas G. Financial crisis and income-related inequalities in the universal provision of a public service: the case of healthcare in Spain. Int J Equity Health 2017; 16(1):134., com dados de 2006 e 2011/12, os autores não encontraram, no geral, efeitos significativos das variáveis analisadas (rendimento, sexo, idade, seguro privado) sobre a utilização de consultas de medicina geral e familiar ou de outras especialidades. Uma exceção diz respeito ao impacto positivo do seguro privado, no caso das consultas de outras especialidades. Este resultado é de algum modo semelhante ao caso português, mas com os dados de 2014. Relativamente ao rendimento, no estudo para Espanha, há efeitos significativos (maior uso) apenas em 2011/12 no 3º quartil para as consultas de medicina geral e familiar e no 2º quartil para as outras consultas. Os nossos resultados, para Portugal, mostram efeitos mais claros do rendimento sobre a utilização de consultas de outras especialidades, mas em 2019. Um estudo para 21 países europeus3232 Fjær EL, Balaj M, Stornes P, Todd A, McNamara CL, Eikemo TA. Exploring the differences in general practitioner and health care specialist utilization according to education, occupation, income and social networks across Europe: findings from the European social survey (2014) special module on the social determinants of health. Eur J Public Health 2017; 27(Suppl. 1):73-81. com dados de 2014 encontrou evidência de uma menor (maior) utilização de consultas de medicina geral e familiar entre indivíduos com maior nível de escolaridade em Portugal, Lituânia e Irlanda (Estónia, Polónia e Eslovénia). No caso das consultas de outras especialidades, os resultados deste estudo apontam para maior utilização entre os indivíduos com mais escolaridade em 11 países, sendo Portugal o que apresenta um efeito de maior magnitude. Os nossos resultados estão em consonância com esses, sobretudo no que diz respeito às consultas de outras especialidades em 2014, e sugerem que em 2019 se verificou um esbater do impacto da educação face a 2014.

O nosso estudo, pela natureza dos dados e metodologia utilizados, sofre das habituais limitações. Em particular, as proxies de necessidade não permitem distinguir necessidade de consultas de medicina geral e familiar versus necessidade de consultas de outras especialidades. As variáveis de uso não incorporam a dimensão da qualidade dos cuidados nem se considera outros cuidados de saúde como as urgências hospitalares (que podem ser usadas como substitutos de consultas de outras especialidades1818 Or Z, Jusot F, Yilmaz E. Impact of health care system on socioeconomic inequalities in doctor use. IRDES Working Paper 2008; 17.). Também muito importante, o ónus financeiro não faz parte da análise da equidade na utilização de cuidados de saúde, mas não podemos ignorar que a igual utilização de cuidados, para igual necessidade, pode estar a ser conseguida à custa de elevados sacrifícios por parte dos indivíduos mais pobres, eventualmente abdicando de outros bens e serviços também essenciais. Um estudo com base em dados do último Inquérito às Despesas das Famílias3333 Quintal C. Evolution of catastrophic health expenditure in a high-income country: incidence versus inequalities. Int J Equity Health 2019; 18(1):145. concluiu que o peso das despesas com consultas médicas no total dos pagamentos diretos das famílias portuguesas tem crescido, incluindo despesas com consultas de medicina geral e familiar. Algo a ter ainda em atenção prende-se com o facto de a análise da equidade basear-se nos desvios face à norma, não sendo possível confirmar a adequação desta norma. Comparando os dados de 2019 com os de 2014, constata-se que a utilização média de consultas aumentou, quer nas de medicina geral e familiar (0,55 versus 0,41), quer nas de outras especialidades (0,65 versus 0,44). Portanto, o que foi considerado como norma em 2014, para cada caso, já não deverá ser o mesmo uso, em termos absolutos, para casos similares em 2019. Não obstante estas limitações, como elas se aplicam tanto a 2014 como a 2019, são pouco relevantes para o nosso objetivo de analisar a evolução entre os dois períodos. O facto de termos replicado os métodos é um ponto forte do trabalho, conferindo robustez aos resultados em termos de comparabilidade. Por fim, independentemente de a equidade na utilização de cuidados de saúde ser um objetivo per se, levanta-se a questão sobre em que medida as iniquidades na utilização se traduzem em desigualdades em saúde. O desafio de reduzir essas desigualdades permanece e mesmo os países nórdicos da Europa, mais igualitários, não têm alcançado resultados substancialmente melhores a este respeito3434 Mackenbach JP. Re-thinking health inequalities. Eur J Public Health 2020; 30(4):615..

Conclusão

Com o presente trabalho, pretendemos avaliar o desempenho de Portugal no que diz respeito à equidade na utilização de consultas médicas, com dados do final da década anterior. A evidência sugere que variáveis de não-necessidade continuam a influenciar esta utilização, contrariando o princípio de equidade horizontal, de igual utilização para igual necessidade. Enquanto em 2014 esta era a situação sobretudo nas consultas de outras especialidades, em 2019 encontrámos vários efeitos estatisticamente significativos também para as consultas de medicina geral e familiar. A este respeito, são de destacar as iniquidades geográficas, com três regiões NUT II a apresentarem menor utilização de consultas médicas. No caso das consultas de outras especialidades, o impacto da educação parece ter reduzido, mas em compensação emergiu um efeito rendimento. Por outro lado, é um resultado favorável a ausência de impacto estatisticamente significativo da variável que compara os indivíduos beneficiários apenas do SNS com os restantes.

Em relação aos índices de concentração, os resultados mostram o padrão habitual de um índice de iniquidade não significativo para as consultas de medicina geral e familiar e positivo para as consultas de outras especialidades. O país está longe do pico observado no ano 2000, contudo, a tendência decrescente deste índice, que se registava desde essa altura, pode ter sido interrompida. Este resultado é particularmente preocupante tendo em conta que após a recolha dos dados do INS 2019 vivemos uma pandemia, causadora de disrupções na atividade assistencial do SNS, bem como nos setores privado e social. Desse modo, é importante continuar a monitorizar estes indicadores no sentido de perceber se o valor encontrado no presente estudo é circunscrito ao ano de 2019 ou se nos voltámos a afastar dos objetivos de equidade.

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  • Financiamento

    O Centre for Business and Economics Research é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., Projeto UIDB/05037/2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2022
  • Aceito
    27 Jul 2022
  • Publicado
    29 Jul 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br