Atuação dos médicos na Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos: onde está o território?

Cassiano Mendes Franco Lígia Giovanella Aylene Bousquat Sobre os autores

Resumo

Uma atenção à saúde resolutiva e integral em municípios rurais remotos (MRR) cobra uma Atenção Primária à Saúde (APS) com forte dimensão comunitária, ancorada no território. O artigo visa analisar o perfil de atuação dos médicos na APS, considerando seu trabalho tanto no território quanto na unidade básica de saúde (UBS). A perspectiva dos médicos, agentes críticos na APS, contribui para compreender se ocorre oferta equânime e integral da APS. Foi realizado estudo qualitativo em 27 MRR, com entrevista a 46 médicos da Saúde da Família. Análise de conteúdo, estruturando-se os resultados nas dimensões de arranjos na atuação dos médicos nos territórios e organização das atividades na UBS. Os médicos centravam suas atividades nas UBS, principalmente nas sedes dos MRR com acordos de trabalho heterogêneos. O conhecimento sobre características do território e da população era frágil, sobretudo aqueles adscritos longe das sedes municipais. Nas raras ações no território, observou-se um modelo itinerante e/ou campanhista, com a marca da descontinuidade. A demanda espontânea foi priorizada em detrimento de ações de acompanhamento e planejamento do cuidado. Os achados indicam a necessidade de se reforçar a interação com o território na oferta de serviços de APS em MRR.

Palavras-chave:
Saúde da População Rural; Atenção Primária à Saúde; Territorialização da Atenção Primária

Introdução

Populações de áreas rurais e remotas, em todo mundo, sofrem importantes iniquidades, destacando-se na saúde as dificuldades de acesso, extremamente imbricadas à dificuldade de fixar força de trabalho11 World Health Organization (WHO). WHO guideline on health workforce development, attraction, recruitment and retention in rural and remote areas. Genebra: WHO; 2021.. Estas falhas no acesso e na oferta dos serviços de saúde associam-se a piores condições de saúde das populações rurais, decorrentes de sua marginalização no desenvolvimento socioeconômico22 Whitehead J, Pearson AL, Lawrenson R, Atatoa-Carr P. Spatial equity and realised access to healthcare - a geospatial analysis of general practitioner enrolments in Waikato, New Zealand. Rural Remote Health 2019; 19(4):5349.,33 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA, organizadores. Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. Brasília: Editora UnB; 2017..

Para reverter este quadro, é necessária uma política clara e customizada que garanta oferta pública de serviços de saúde, especialmente os de Atenção Primária à Saúde (APS), que devem ser resolutivos e integrados às Redes de Atenção. De fato, a APS é a principal e por vezes única forma de acesso aos cuidados de saúde nesses territórios11 World Health Organization (WHO). WHO guideline on health workforce development, attraction, recruitment and retention in rural and remote areas. Genebra: WHO; 2021.,44 Bousquat A, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Sousa ABL, Seidl H. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saude Publica 2022; 56:73.. A Política Nacional de Saúde das Populações do Campo, Floresta e Águas procurou dar visibilidade e melhor resposta às iniquidades desses povos no Brasil33 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA, organizadores. Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. Brasília: Editora UnB; 2017.. No entanto, sua implementação esbarrou em inúmeras barreiras, incluindo pouca especificidade sobre os diversos cenários rurais no país e insuficiente integração com as demais políticas sociais e de saúde33 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA, organizadores. Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. Brasília: Editora UnB; 2017..

No Sistema Único de Saúde (SUS), a Estratégia Saúde da Família (ESF) é modelo preferencial de APS e está presente em praticamente todos municípios brasileiros44 Bousquat A, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Sousa ABL, Seidl H. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saude Publica 2022; 56:73.. A ESF se pauta pelo vínculo de uma equipe multiprofissional a usuários adscritos em território definido, na qual o cuidado se estende dos indivíduos até a perspectiva do próprio território55 Brasil. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2017.. Distinto do modelo tradicional de APS, com ações fragmentadas e somente na Unidade Básica de Saúde (UBS), a atuação comunitária dos profissionais da ESF possibilita atividades no e para o território, dentro e fora da UBS66 Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira Junior N, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu) 2014; 18(Supl.1):983-995.. Contudo, a diversidade socioespacial brasileira cobra arranjos organizacionais alternativos para os distintos territórios, de tal forma que os princípios da ESF possam se materializar. Os municípios rurais remotos (MRR), caracterizados pela distância de centros urbanos e predomínio de atributos rurais, como rarefação de domicílios77 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: IBGE; 2017., podem ser considerados como áreas com importantes singularidades, sendo preciso um olhar mais atento à organização das atividades na ESF.

Áreas rurais e remotas em todo mundo possuem grandes dificuldades de atrair e fixar força de trabalho em saúde (FTS), principalmente médicos11 World Health Organization (WHO). WHO guideline on health workforce development, attraction, recruitment and retention in rural and remote areas. Genebra: WHO; 2021.. No Brasil, a deficiência de médicos na APS é reconhecida, em especial nos municípios do interior, culminando na criação do Programa Mais Médicos (PMM) em 201388 Separavich MA, Couto MT. Programa Mais Médicos: revisão crítica da implementação sob a perspectiva do acesso e da universalização da atenção à saúde. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl.2):3435-3446.. O PMM contribuiu para discussões sobre desigualdades de acesso aos serviços de saúde, que atingem fortemente MRR, jogando luz sobre trabalho dos médicos na APS88 Separavich MA, Couto MT. Programa Mais Médicos: revisão crítica da implementação sob a perspectiva do acesso e da universalização da atenção à saúde. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl.2):3435-3446.,99 Anderson MIP. Médicos pelo Brasil e as políticas de saúde para a Estratégia Saúde da Família de 1994 a 2019: caminhos e descaminhos da Atenção Primária no Brasil. Rev Bras Med Fam Comunidade 2019; 14(41):2180..

Este artigo tem o objetivo de compreender, a partir da percepção dos médicos da ESF, seu perfil de atuação no território e na UBS em MRR. Tomar a perspectiva dos médicos, agentes críticos ao funcionamento da APS, importa para compreender entraves na oferta equânime e integral em saúde nos MRR.

Metodologia

Foi realizado estudo qualitativo a partir de entrevistas com médicos da ESF da pesquisa “Atenção Primária à Saúde em Territórios Rurais Remotos no Brasil”. Dos 323 MRR definidos pelo IBGE77 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: IBGE; 2017., foram consideradas seis áreas com lógicas socioespaciais distintas para fins da pesquisa: região Norte, subdividindo-se em “Norte-águas” e “Norte-estradas”; “Matopiba” (região de expansão de fronteira agrícola entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia); Vetor Centro-Oeste; Semiárido; e Norte de Minas Gerais44 Bousquat A, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Sousa ABL, Seidl H. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saude Publica 2022; 56:73..

Em cada área selecionou-se municípios com características típicas e atípicas em 19 indicadores socioeconômicos e de saúde, descritos por Bousquat et al.44 Bousquat A, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Sousa ABL, Seidl H. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saude Publica 2022; 56:73.. A amostra de municípios para o campo da pesquisa foi do tipo intencional, estruturada a partir dessas seis áreas. Em cada área da pesquisa foram escolhidos dois ou mais municípios que correspondem ao “município tipo”, ou seja, municípios com características socioeconômicas, demográficas e de saúde mais frequentes no conjunto dos MRR da respectiva área. Ao município tipo se agregou um ou mais município(s) outliers, ou seja, municípios com características mais incomuns na área. Buscou-se assim garantir a inclusão de diferentes realidades dos MRR. Com este procedimento, obteve-se uma amostra composta por 27 MRR distribuídos nas seis áreas previamente definidas. A Figura 1 mostra as áreas da pesquisa com algumas das informações selecionadas para caracterização.

Figura 1
Municípios rurais remotos agrupados nas áreas da pesquisa “Atenção Primária à Saúde em Territórios Rurais Remotos no Brasil” e respectivas médias de habitantes, área geográfica, densidade populacional, cobertura da ESF e internações por condições sensíveis à APS (ICSAPS). Brasil, 2019.

Entre maio e novembro de 2019 foram realizadas entrevistas semiestruturadas com médicos da ESF nos 27 MRR. O roteiro das entrevistas incluiu: perfil do entrevistado, características do território e população, acesso, estrutura da oferta da APS, processo de trabalho, transporte sanitário e rede de urgência, FTS e linhas de cuidado prioritárias.

Foram visitadas UBS das sedes e de áreas distantes destas sedes, denominadas interiores. As entrevistas foram gravadas e transcritas. Foram entrevistados 46 médicos de APS, sendo que 23 trabalhavam na sede dos municípios e 23 nos chamados “interiores”. Os códigos das entrevistas são compostos por: 1) número (1 a 6) relacionado à área da pesquisa; 2) estado; 3) número do município, conforme ordem de realização da pesquisa de campo; e 4) MED1, para UBS da sede municipal, ou MED2, para UBS do interior do município. A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer nº 2.832.559/CAAE 92280918.3.0000.5240.

Procedeu-se análise de conteúdo das entrevistas aos médicos, conforme indicações de Minayo1010 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2014., com três etapas: pré-análise, exploração do material e interpretação dos resultados. Definiu-se, com pressupostos de revisão de literatura sobre saúde rural1111 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária à saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad Saude Publica 2021; 37(7):e00310520., as dimensões de análise: 1) perfil profissional, 2) arranjos para atuação no território e 3) organização das atividades. Foram codificados, com Nvivo®, trechos das entrevistas nessas dimensões, com elaboração de categorias prévias correspondentes: 1) caracterização geral, conformação das equipes, escassez da FTS e Programa Mais Médicos; 2) vínculo de referência e deslocamentos; e 3) carga horária e organização da agenda.

Após leitura horizontal e vertical dos trechos codificados, discriminados por áreas da pesquisa e relação com sede ou interior do município, a interpretação resultou na reestruturação das categorias prévias em categorias emergentes, da seguinte forma: 1) perfil dos entrevistados e conformação das equipes; 2) frágil vínculo de referência com território da UBS e limitados deslocamentos no território de atuação; e 3) flexibilidade e acordos no horário de trabalho e arranjo das ações com ênfase na demanda espontânea. As dimensões também foram adequadas nesta etapa. Complementarmente, para o perfil dos entrevistados, realizou-se contagem e percentual de dados compilados das entrevistas.

Coerente aos objetivos do estudo, a estrutura final da análise se compôs de dimensão de contexto, com perfil dos médicos e sua inserção na ESF em MRR, seguida das duas dimensões principais da análise: arranjos da atuação dos médicos no território e organização das atividades dos médicos na UBS. Os resultados a seguir são dispostos segundo essas dimensões e suas categorias emergentes.

Resultados

Perfil dos médicos e sua inserção na ESF

Perfil dos entrevistados

Na Tabela 1 exibe-se informações de perfil dos entrevistados. Os 46 médicos se distribuíram uniformemente nas áreas da pesquisa, exceto no Norte-águas, que apresentou maior representação (30,4%) (Tabela 1). Os médicos eram, em geral, jovens, sendo quase metade (45,7%) com 24 a 30 anos e a maioria (65,2%) do sexo masculino (Tabela 1).

Tabela 1
Informações sobre perfil e vínculo profissional de médicos da ESF em municípios rurais remotos selecionados. Brasil, 2019.

Quase todos eram brasileiros, exceto um médico cubano e um peruano. Metade possuía graduação na Bolívia, 17 no Brasil e seis em Cuba, Paraguai e Peru (Tabela 1). Vinte e nove (63%) eram do PMM e metade não possuía registro no Conselho Regional de Medicina (CRM). Trinta e dois médicos (69,6%) tinham atuação muito recente, há menos de um ano na equipe. Trinta e três (71,7%) não acumulavam vínculo adicional à ESF (Tabela 1).

Conformações das equipes

Em geral, os médicos atuavam em UBS com apenas uma equipe de ESF, em sua composição mínima. Alguns médicos citaram mais de um técnico de enfermagem por equipe, principalmente para referência e suporte contínuo em pontos de apoio nos territórios. Geralmente os médicos não sabiam precisar quantidade de agentes comunitários de saúde (ACS) em suas equipes, ao que atribuíam ao pouco tempo de atuação e ao maior relacionamento dos ACS com as enfermeiras e com os gestores municipais. Enquanto ACS tinham presença bem definida nos territórios, médicos estavam associados preponderantemente ao espaço da UBS.

Profissionais de saúde bucal compunham a relação da maior parte das equipes. O Núcleo Ampliado da Saúde da Família (NASF), com três ou quatro profissionais, foi citado em 35 entrevistas. Relatou-se dificuldades do NASF em oferecer apoio a todo território, principalmente no interior. Além desses integrantes da ESF, vigias, porteiros e motoristas tinham papel notório no atendimento às urgências nas comunidades, após fim do expediente. Motoristas se destacaram mais ainda pela relevância de importantes e demorados deslocamentos nos MRR.

A saída dos cubanos do PMM provocou crise de desassistência nos MRR durante quatro a seis meses até reposição de vagas, ainda incompleta na época das entrevistas. Vacância de médicos em outras equipes foi relatada em quase todas entrevistas. Os maiores problemas eram relacionados à fixação, principalmente nos interiores. Os entrevistados retrataram insuficiência de profissionais para atender ao volume de demandas e para acesso no território, tanto de médicos quanto de enfermeiros.

Os postos de médicos eram cobertos em grande parcela pelo PMM, mesmo com quantidade ainda insuficiente. As dificuldades na fixação de médicos não se restringiam aos municípios, mas se estendiam às regiões. Escassez de médicos sobrevalorizava esse profissional no mercado de trabalho e possibilitava determinado poder na oferta de serviços de saúde. Comumente médicos com registro no CRM, em geral atuando na sede dos municípios, acumulavam outros vínculos empregatícios. Possibilidade de vínculo adicional contribuía para atração dos médicos e para responder às demandas por pronto-atendimento nos centros de saúde e pequenos hospitais. Na sede dos MRR era comum a presença de uma unidade de funcionamento 24 horas para pronto-atendimento da população de todo município, como pequenos hospitais e centros de saúde, que podiam ou não conter também ESF em seu espaço físico.

Atuação em diferentes pontos da rede de atenção no MRR e região dava alguma facilidade para coordenação do cuidado quando um usuário necessitasse de internação. Porém, comprometia-se a longitudinalidade na ESF e o conhecimento do processo de trabalho de sua própria UBS. Usuários buscavam atendimento por médicos no pequeno hospital da sede municipal no fim de semana ou por conveniência, ao invés da UBS, enfraquecendo vínculo com a APS.

Presença de médicos na ESF em MRR associava-se fortemente ao provimento pelo PMM. Os médicos distinguiam o PMM sobretudo pela regulação profissional, exercida de várias maneiras: exigência de cumprimento de carga horária, supervisão, prestação de contas sobre produção e obrigatoriedade de especialização à distância em Saúde da Família, ademais da exclusividade à ESF para aqueles sem CRM. Essa era principal forma de garantir atenção médica sustentada em MRR, sobretudo nos interiores, e com maior dedicação na APS.

Arranjos da atuação dos médicos no território

Frágil vínculo de referência com território da UBS

A maioria dos médicos não conhecia precisamente a extensão do território adscrito. A maior parte, mesmo atuando na sede, cobria áreas do interior onde os territórios eram extensos e as distâncias podiam chegar até as fronteiras dos municípios, medidas em dezenas ou centenas de quilômetros. Territórios referentes às sedes dos municípios ou das comunidades maiores no interior onde as UBS se situavam eram pequenos e, em geral, facilmente acessíveis.

Nem sempre territórios de atuação das equipes estavam bem definidos e maior parte dos médicos não conhecia distribuição das microáreas, atribuindo essa função ao enfermeiro da equipe. Igualmente, a maioria desconhecia a quantidade de usuários e famílias adscritas ou dava informações pouco precisas, muitas vezes indicando que este conhecimento era função dos enfermeiros. A falta de cadastros dos usuários e sua desatualização, sobretudo nas localidades de difícil acesso, também prejudicava esse domínio.

A relação com território era fragilizada pela referência fluida dos usuários às equipes, principalmente na sede, além do tempo recente na ESF, alta demanda por consultas e pouca participação no planejamento da equipe. Por outro lado, alguns tinham realizado diagnóstico situacional do território por conta da especialização ofertada no PMM. Uma menor parte dos entrevistados realmente demonstrava algum conhecimento sobre a organização da área adscrita, descrevendo abrangência do território, quantidade de microáreas, associação do território ao ACS e localização das comunidades cobertas.

De modo geral, médicos atendiam população sem diferenciar território adscrito. Argumentou-se necessidade de oferecer acesso universal, além de colaboração entre colegas, incluindo cobertura de equipes sem médicos, com assistência médica insuficiente ou de quando outros médicos se deslocavam até as comunidades. Era comum médicos que atuavam na sede atenderem população com referência à ESF do interior ou de outros municípios por causa do acesso mais fácil ou da busca concentrada de serviços variados pelos usuários.

Alguns médicos atraíam usuários de outras equipes pelo maior tempo de atuação no município, maior qualificação e capacidade resolutiva. Municípios do Vetor Centro-Oeste e Norte-estradas relataram atenção frequente à população de distritos sanitários indígenas e usuários estrangeiros por se situarem na fronteira com Bolívia e Peru. Essa forma de atenção à saúde na ESF em MRR, com clientela indefinida e fora do território de atuação, prejudicava conhecer perfil da população, vigilância à saúde e longitudinalidade, conforme os entrevistados.

Maior parcela dos entrevistados relatou que a APS era o serviço de primeiro contato dos usuários. Isso ocorria mais facilmente na sede ou nas áreas próximas das UBS do interior. Porém, insuficiência de medicação, de infraestrutura, substituição recente dos profissionais, localização pouco acessível e centralização de determinados serviços prejudicavam vínculo dos usuários cadastrados à UBS de referência. Uma oferta melhor de atenção à saúde em município vizinho também dispersava população de sua equipe.

Para expressiva parte dos médicos, o centro de saúde ou pequeno hospital para pronto-atendimento na sede municipal era a porta preferencial de muitos usuários, principalmente de áreas do interior sem UBS na comunidade. Essa preferência era ainda atribuída a usuários que consideravam maior resolutividade e acesso à medicação no centro de pronto-atendimento ou que não conseguiam acesso por demanda espontânea numa UBS, por restrição de consultas ou que desconheciam presença do médico recém-contratado, após saída dos cubanos do PMM. A população buscava serviço mais acessível, conforme rota e veículo de transporte disponível, independente da referência para sua área adscrita. Por isso, era comum deslocamento dos usuários do interior através do ônibus escolar gratuito. Os custos de transporte eram altos e a oferta de transporte coletivo muito reduzida.

Apenas onze entrevistados atuavam exclusiva e rotineiramente em UBS localizadas no interior, ainda que a pesquisa selecionasse médicos atuantes em UBS na sede e UBS no interior. Estes, em geral trabalhavam em comunidades maiores, onde outras comunidades menores dispersas também eram atendidas. Predominou cobertura dos territórios dos interiores a partir de unidades na sede, às vezes com equipes dedicadas a essas populações. A distribuição desigual das UBS, com concentração no centro dos municípios ou áreas próximas, inviabilizava acesso de territórios mais distantes, não oferecendo cobertura real e provocando deslocamentos dentro e fora do município.

Limitados deslocamentos no território de atuação

Necessidade de manter assistência nas UBS restringia deslocamentos para o interior. Em geral, enfermeiras e ACS se deslocavam com mais frequência que médicos. Deslocamento ao interior ocorria em visitas às comunidades e domicílios até determinado alcance, com frequência variável, e em ações eventuais como campanhas. Atenção itinerante nas comunidades era baseada em pontos de apoio, como postos avançados ou locais próprios das comunidades. Em comunidades maiores, que contavam com unidade de saúde, o deslocamento era mais usual, com visitas agendadas algumas vezes na semana ou no mês, porém nas outras, quanto mais difícil o acesso, mais espaçados eram os retornos.

Complicadas vias de acesso demandavam longo tempo de viagem, veículos especiais e eram passíveis de diversos problemas no percurso, argumentando-se maior aproveitamento com assistência na UBS que nas ações itinerantes. Era necessário planejamento, considerando disponibilidade e tipo de veículo, combustível, equipamentos, insumos e refeições, não sendo possível ofertar práticas mais integrais de assistência como na UBS, segundo os entrevistados. Ações nas comunidades eram limitadas pelas condições improvisadas, falta de materiais e tempo de percurso, mas possibilitavam identificar casos para melhor atendimento nas UBS.

Ações itinerantes, como nas UBS fluviais, exigiam logística para período de dez dias dentro da embarcação. No Norte-águas, as entrevistas apontaram que poucos profissionais chegavam até comunidades do interior, no mais das vezes em ações com UBS fluviais infrequentes. Alguns entrevistados reportavam que era comum cancelar ações comunitárias ou não conseguir dar atenção às necessidades de todo território por falta de transporte ou combustível. Um condutor do veículo acompanhava as viagens, conformando mais um membro da equipe. O carro era o principal veículo utilizado, mas diversos outros foram mencionados, desde ambulâncias e caminhonetes a balsas no Norte-águas.

A maioria dos médicos reportou programação semanal para visitas domiciliares. Visitas às comunidades e, mais preponderantemente, aos domicílios, junto à integração com ACS, eram principal forma de reconhecimento do território para os médicos. Favoreciam compreensão sobre território, condições de vida e dificuldades de deslocamento da população, possibilitando flexibilizar padrões de conduta.

Organização das atividades dos médicos na UBS

Flexibilidade e acordos no horário de trabalho

Acordos sobre dias de trabalho e autonomia sobre horário, ademais diferenças entre médicos e enfermeiros, mostraram-se generalizados, ainda que formalmente os médicos possuíssem carga horária de 40 horas para atuação na APS todos os dias da semana. Enfermeiros geralmente permaneciam todos os dias na ESF, enquanto entre médicos podia ser relativamente comum casos de somente dois dias por semana na ESF e presença irregular, além dos médicos do PMM cumprirem quatro dias na semana, por possuírem um dia previsto de folga para estudos.

Médicos com mais tempo de atuação no município e qualificações variadas obtinham vantagens no arranjo da carga horária. Em troca de maior volume de atendimentos e de atender aqueles que seriam destinados à atenção especializada, eram liberados para realizar cursos ou contrabalançavam horário estendido com dia adicional de folga, considerando questões pessoais e familiares desses profissionais.

Um entrevistado argumentou que a carga horária precisava ser flexível para incluir dificuldades de percurso na chegada ao trabalho e nas visitas domiciliares, evitar assédio em horário de pausa, compensar sobrecarga e adequar-se a uma agenda voltada para demanda espontânea. Outro médico relatou horário variável de chegada e saída por causa de plantão no pequeno hospital do município.

As UBS localizadas no interior nem sempre possuíam equipe fixa para funcionamento regular ao longo da semana, assemelhando-se a pontos de apoio nestes casos, com equipe completa apenas alguns dias por semana, quinzenal ou conforme cronograma mensal. Nos interiores, mesmo quando UBS tinham expediente diário, duas entrevistas apontaram que o horário podia ser reduzido para somente um turno.

Arranjo das ações com ênfase na demanda espontânea

Predominava entre os médicos uma agenda voltada para atendimento em demanda espontânea, sobretudo naqueles residentes no interior dos municípios. Poucos priorizavam marcação de consultas na UBS para grupos prioritários. Argumentava-se necessidade de organizar atendimentos em demanda espontânea se orientando pelas possibilidades de acesso. Usuários de áreas distantes constavam como prioridade no atendimento à demanda espontânea.

Dificuldades de deslocamento, pelo tempo de percurso, desgaste no transporte e custos financeiros dos usuários, determinavam agenda mais aberta. Uma organização maleável para atendimentos era requerida por acúmulo de demandas que impedia seguir rotina programada de consultas e ocorria por diversos fatores, como deslocamentos da população com barcos ou nos horários dos ônibus escolares e baixa disponibilidade de médicos com períodos de desassistência.

A programação de consultas era preferível para os médicos, mas havia dificuldade dos usuários se adaptarem, com maior procura de atendimento por adoecimento agudo que para controle de doenças crônicas. Outros motivos citados foram a falta de planejamento com equipe, recomendações de um modelo de agenda acessível no PMM e longos intervalos de atenção à saúde em cada comunidade.

Embora os usuários fossem orientados sobre retorno, as entrevistas sugeriam pouco acompanhamento dos usuários nas linhas de cuidado, exceto no caso das gestantes. Problemas de acesso nos interiores impediam a volta para consulta no devido tempo. Na sede, onde era mais propícia organização da agenda por linhas de cuidados, parecia haver controle um pouco maior sobre o acompanhamento dos grupos prioritários.

Enfermeiros tinham papel importante no estabelecimento da agenda e costumavam marcar pacientes para outras linhas de cuidado não atendidas pelos médicos, como saúde da mulher ou puericultura. Apesar de alguns médicos se colocarem apenas em posição de suporte aos enfermeiros no planejamento das ações de cuidado, houve falas de que o PMM contribuiu para incrementar ações de vigilância na ESF.

Relatou-se desigualdades no conhecimento sobre estado de saúde de populações de áreas mais distantes, principalmente aquelas sem presença de ACS. ACS possuíam papel fundamental no acompanhamento dos usuários e visitas domiciliares indicaram ser estratégias-chave para vigilância em saúde. Atividades comunitárias, como as próprias visitas domiciliares, faziam parte da agenda da maioria dos médicos, mas com pouco peso. Ações coletivas, com exceção dos “grupões” de atendimento coletivo para hipertensão e diabetes e grupos de salas de espera, eram irregulares. Atenção itinerante nas comunidades era melhor definida com a própria organização da agenda.

Reuniões de equipe eram inusuais, argumentando-se que esta atividade não ocorria mais rotineiramente para evitar limitar acesso à assistência. Poucos médicos participavam das reuniões, quando existiam. Apesar de pouco incorporadas no processo de trabalho, reuniões de equipe tinham amplos propósitos de importância para ESF, como: planejamento da agenda, de visitas domiciliares, das necessidades de transporte; avaliação sobre vigilância à saúde no território; discutir territorialização; construir projetos terapêuticos singulares; e integração dos profissionais da ESF, especialmente com ACS.

O Quadro 1 traz uma síntese dos principais achados e categorias emergentes sobre arranjos da atuação dos médicos da ESF em MRR, nas duas dimensões. Falas ilustrativas de suas categorias emergentes são apresentadas nos Quadros 2 e 3.

Quadro 1
Síntese dos principais achados sobre arranjos da atuação dos médicos da ESF no território e organização das suas atividades na Unidade Básica de Saúde em municípios rurais remotos. Brasil, 2019.
Quadro 2
Falas ilustrativas da dimensão dos arranjos da atuação dos médicos no território em municípios rurais remotos, segundo categorias emergentes. Brasil, 2019.
Quadro 3
Falas ilustrativas da dimensão da organização das atividades dos médicos na Unidade Básica de Saúde em municípios rurais remotos, segundo categorias emergentes, Brasil, 2019.

Discussão

A perspectiva de médicos na ESF em MRR mostra que atuação com base no território foi um evidente desafio. Independente do vínculo de referência no território da ESF, populações dispersas e pequenas tinham oferta de serviços da APS principalmente na sede municipal, com limitado alcance dos médicos aos interiores dos MRR. Devido às barreiras geográficas e dinâmica de deslocamentos nos interiores, a assistência se desvinculava do território adscrito, buscando garantir acesso ao máximo de usuários, inclusive de áreas mais afastadas. Ao mesmo tempo, os médicos tinham obscurecida noção dos territórios de sua responsabilidade, obstaculizando ações de vigilância. Tal desenho não é comum a outras realidades que enfrentam a remoticidade e rarefação da população, por exemplo na Austrália, onde deseconomias de escala na saúde rural são abordadas com modos diferentes de organização, em que territórios mais remotos tendem a ter conformações mais integradas e integrais da APS1212 Wakerman J, Humphreys JS, Wells R, Kuiper P, Entwistle P, Jones J. Primary health care delivery models in rural and remote Australia - a systematic review. BMC Health Serv Res 2008; 29(8):276..

Outros estudos1313 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(11):e00255020.,1414 Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMS, Seidl H. A sustentabilidade da Atenção Primária à Saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Cien Saude Colet 2022; 27(4):1605-1618. mostram que, em vez de territórios contíguos às UBS, administram-se territórios extensos na ESF em MRR, com populações de difícil acesso geográfico, espalhadas sobretudo em pequenas comunidades nos interiores dos MRR. Algumas entrevistas revelavam que parte dos usuários transpassava suas equipes, corroborando resultados de estudos internacionais de saúde rural sobre by-pass de serviços locais de saúde22 Whitehead J, Pearson AL, Lawrenson R, Atatoa-Carr P. Spatial equity and realised access to healthcare - a geospatial analysis of general practitioner enrolments in Waikato, New Zealand. Rural Remote Health 2019; 19(4):5349..

Nesta pesquisa, o trabalho com integração da equipe se verificou pouco valorizado. Pelo prisma dos médicos, nas equipes da ESF em MRR se nota uma divisão do processo de trabalho, atribuindo a enfermeiros e ACS papel de compreensão do território, de vigilância em saúde e de ações comunitárias, enquanto o foco do trabalho médico estava na assistência à demanda espontânea. Equipes baseadas em atendimento por demanda espontânea, muitas vezes com alto fluxo e sem distinção de territórios, somadas às dificuldades de deslocamento da população e de oferta de serviços, minimizavam ações preventivas da ESF, priorizando-se ações diagnósticas, terapêuticas medicamentosas e adoecimento agudo, semelhante aos achados de Garnelo et al.1515 Garnelo L, Parente RCP, Puchiarelli MLR, Correia PC, Torres MV, Herkrath FJ. Barriers to access and organization of primary health care services for rural riverside populations in the Amazon. Int J Equity Health 2020; 19(1):54..

Essa restrição da atuação, em cenário com tão proeminente determinação social de saúde como o meio rural33 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA, organizadores. Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. Brasília: Editora UnB; 2017.,1515 Garnelo L, Parente RCP, Puchiarelli MLR, Correia PC, Torres MV, Herkrath FJ. Barriers to access and organization of primary health care services for rural riverside populations in the Amazon. Int J Equity Health 2020; 19(1):54., remete a um modelo de queixa-conduta, diminuindo abrangência das ações e necessária perspectiva de clínica ampliada66 Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira Junior N, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu) 2014; 18(Supl.1):983-995.. O processo de trabalho na ESF se desenvolvia com acentuada dissociação dos espaços da UBS e território adscrito, expressa na relação frágil e distante entre médicos, que tinham maior domínio na UBS, e ACS, atuantes nos territórios. Essa cisão converge com ameaças a um modelo territorializado de APS em curso no país, a partir de uma inflexão explicitamente voltada a uma agenda neoliberal desde o governo Temer1616 Faria RM. A territorialização da Atenção Básica à Saúde do Sistema Único de Saúde do Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(11):4521-4530.,1717 Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1475-1482..

A territorialização é diretriz prevista na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), que define os modos de estruturação de seus serviços, considerando princípios como longitudinalidade, resolutividade, ordenação em rede, entre outros55 Brasil. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2017.. Contudo, a PNAB carece da afirmação de modelos flexíveis e integrados nas redes de atenção à saúde, em que a territorialização se adequa aos movimentos, como tão necessário a MRR44 Bousquat A, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Sousa ABL, Seidl H. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saude Publica 2022; 56:73.,1616 Faria RM. A territorialização da Atenção Básica à Saúde do Sistema Único de Saúde do Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(11):4521-4530.. Não se trata de impedir os fluxos entre interior e sede nesses municípios e o acolhimento à demanda espontânea, mas de conciliar a atuação no consultório e no território, para que se possa enxergar necessidades de saúde além das demandas, de cuidar no contexto da comunidade e da extensão do tempo, não apenas do indivíduo e do momento.

A atuação do médico quase sempre desconectada da equipe, com atendimento à demanda espontânea para condições agudas de saúde, “desterritorializada”, era ainda acompanhada da superposição de funções desses médicos com outros pontos de atenção, como o trabalho também desempenhado nos prontos atendimentos desses municípios. O perfil dos profissionais médicos foi indicativo da dificuldade de alocação de médicos nos MRR do Brasil. Como em outros países11 World Health Organization (WHO). WHO guideline on health workforce development, attraction, recruitment and retention in rural and remote areas. Genebra: WHO; 2021., os MRR no Brasil tinham fragilidades em manter a FTS. O processo de trabalho na ESF era atravessado pela intermitência do trabalho médico. Aos médicos registrados no CRM, havia estrutura de múltiplos empregos, configurando poder médico na oferta dos serviços de saúde e reforçando imaginário de práticas com base hospitalar.

Embora se apontasse que atuação em múltiplos locais favorecesse coordenação da atenção, não se constituía uma rede de serviços onde a APS fosse ordenadora, provocando seu enfraquecimento em vez de posição central. Ney e Rodrigues1818 Ney MS, Rodrigues PHA. Fatores críticos para a fixação do médico na Estratégia Saúde da Família. Physis 2012; 22(4):1293-1311. revelam que constrangimentos dos municípios em expandir ESF sem contrapartida de FTS induzem a expedientes precários e acúmulo de vínculos que prejudicam qualidade do trabalho, além de resultarem da ampliação da APS desacompanhada da visão sobre uma prática médica específica e da baixa regulação da atividade médica, dando força às corporações médicas.

A grande inserção nos MRR de médicos formados no exterior, destacadamente na Bolívia, toca em fenômenos migratórios complexos relacionados aos médicos no Brasil e seu mercado de trabalho. Restrições à carreira médica, que induzem formação em países com menores custos educacionais1919 Villen P. O recrutamento de médicos-imigrantes pelo Programa Mais Médicos e a particularidade do caso cubano. In: Baeninger R, Bógus LM, Moreira JB, Vedovato LR, Fernandes DM, Souza MR, Baltar CS, Peres RG, Waldman TC, Magalhães LFA, organizadores. Migrações Sul-Sul. Campinas: Nepo/Unicamp; 2018. p. 218-230., e o desmonte do PMM enfraquecem em sentido contracorrente das políticas de provisão ao das forças de mercado nos movimentos da FTS88 Separavich MA, Couto MT. Programa Mais Médicos: revisão crítica da implementação sob a perspectiva do acesso e da universalização da atenção à saúde. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl.2):3435-3446.,1919 Villen P. O recrutamento de médicos-imigrantes pelo Programa Mais Médicos e a particularidade do caso cubano. In: Baeninger R, Bógus LM, Moreira JB, Vedovato LR, Fernandes DM, Souza MR, Baltar CS, Peres RG, Waldman TC, Magalhães LFA, organizadores. Migrações Sul-Sul. Campinas: Nepo/Unicamp; 2018. p. 218-230., as quais agravam iniquidades entre territórios do nível global ao local11 World Health Organization (WHO). WHO guideline on health workforce development, attraction, recruitment and retention in rural and remote areas. Genebra: WHO; 2021.. No Brasil, onde corporações médicas têm estrito controle sobre o mercado de trabalho, com favorecimento da prática privada-liberal1818 Ney MS, Rodrigues PHA. Fatores críticos para a fixação do médico na Estratégia Saúde da Família. Physis 2012; 22(4):1293-1311.,1919 Villen P. O recrutamento de médicos-imigrantes pelo Programa Mais Médicos e a particularidade do caso cubano. In: Baeninger R, Bógus LM, Moreira JB, Vedovato LR, Fernandes DM, Souza MR, Baltar CS, Peres RG, Waldman TC, Magalhães LFA, organizadores. Migrações Sul-Sul. Campinas: Nepo/Unicamp; 2018. p. 218-230., MRR se colocam à margem do ethos médico e se tornam lugar para aqueles formados no exterior, através do PMM.

Por sua vez, o PMM nos MRR estudados mostrou consequências consonantes a pesquisas que indicam ampliação do acesso e fortalecimento dos atributos da APS88 Separavich MA, Couto MT. Programa Mais Médicos: revisão crítica da implementação sob a perspectiva do acesso e da universalização da atenção à saúde. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl.2):3435-3446.. Contudo, ainda que o PMM tivesse êxito na provisão de médicos para MRR, discute-se o quanto pudesse faltar compreensão sobre necessidade de atuação no território e com maior equilíbrio entre acolhimento à demanda e cuidado integral longitudinal pelo próprio perfil dos médicos, em geral iniciando prática aventureira tanto na saúde rural quanto na APS. Os cubanos predominantes no PMM antes, distintamente, tinham formação especializada em APS, maior experiência e notabilizaram-se em ações comunitárias88 Separavich MA, Couto MT. Programa Mais Médicos: revisão crítica da implementação sob a perspectiva do acesso e da universalização da atenção à saúde. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl.2):3435-3446..

A perda de vínculo com território se contrapõe a uma das características mais essenciais da ESF55 Brasil. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2017.,1616 Faria RM. A territorialização da Atenção Básica à Saúde do Sistema Único de Saúde do Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(11):4521-4530.,1717 Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1475-1482.. O que se percebe é que a falta de um arranjo territorializado de práticas na ESF próprio a cenários rurais e empecilhos de FTS servem de justificativa para delinear um processo de trabalho na APS conforme modelo hospitalocêntrico. Não há compreensão de um conceito de saúde com necessidade de serviços contínuos e baseados na oferta, mas sim de serviços pontuais e baseados na demanda, determinados pela lógica da doença.

Estratégias para superar dilemas presentes no processo de trabalho na ESF em MRR podem ser extraídas dos resultados. Ao invés de concentrar serviços na sede municipal, adscrevendo grandes territórios, as entrevistas mostraram que usuários têm facilidade de acesso a uma UBS e equipe instalada em suas comunidades ou próximas a elas. Não basta posicionar UBS nos interiores dos MRR, é necessária territorialização que considere acessibilidade, com efetiva participação popular. Outros estudos reafirmam distinções de espaços nos MRR e necessidade de distribuição mais equitativa de serviços de saúde em favor dos interiores1313 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(11):e00255020.,1414 Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMS, Seidl H. A sustentabilidade da Atenção Primária à Saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Cien Saude Colet 2022; 27(4):1605-1618..

As imensas dificuldades de transporte apontam ser imprescindível sua oferta de forma regular e acessível para deslocamento até UBS, assim como são difundidos ônibus escolares para acesso à educação básica. Demanda-se garantias de transporte para a população e equipe da ESF. As entrevistas indicam importância de melhorar condições para prática territorializada dos profissionais de saúde, destinando mais recursos à frota, pontos de apoio e vias de acesso. Arranjos alternativos da ESF, como ESF ribeirinha e fluvial, apesar de pouco implantados33 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA, organizadores. Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. Brasília: Editora UnB; 2017., são bons exemplos de processos de trabalho que se adequam à realidade de seus territórios, mantendo a APS sob perspectiva do modelo da ESF e prevendo condições diferenciadas33 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA, organizadores. Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. Brasília: Editora UnB; 2017.,1515 Garnelo L, Parente RCP, Puchiarelli MLR, Correia PC, Torres MV, Herkrath FJ. Barriers to access and organization of primary health care services for rural riverside populations in the Amazon. Int J Equity Health 2020; 19(1):54..

É necessário associar à agenda para demanda espontânea a agenda para ações programadas de vigilância em saúde e de prevenção de problemas específicos do território. Denotou-se as visitas domiciliares como proeminente meio de acompanhar as linhas de cuidado, de reconhecer o território e de integração com ACS. Contato próximo com ACS no processo de trabalho se abre como caminho para superar cisão entre UBS e território. Estudos nacionais e internacionais destacam relevância da atuação integrada às equipes de APS de agentes comunitários, com fundamental ampliação do escopo de práticas em áreas rurais1111 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária à saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad Saude Publica 2021; 37(7):e00310520.,1414 Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMS, Seidl H. A sustentabilidade da Atenção Primária à Saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Cien Saude Colet 2022; 27(4):1605-1618..

A atenção itinerante pode ser estratégia pertinente na APS em MRR. Na Austrália algumas formas para esse itinerário no território em áreas rurais e remotas já vem sendo observadas, como modelos hub-and-spoke - remontando a padrões da aviação, de distribuição de viagens a partir de um centro (hub) - e fly-in-fly-out - semelhante à atuação em campos de petróleo e mineração, de períodos integrais de trabalho compensados após com tempo livre1212 Wakerman J, Humphreys JS, Wells R, Kuiper P, Entwistle P, Jones J. Primary health care delivery models in rural and remote Australia - a systematic review. BMC Health Serv Res 2008; 29(8):276.. A necessidade de manter atendimento nas UBS leva a pensar na possibilidade de equipes expandidas, com profissionais ora em atuação fixa, ora em atuação itinerante, destacando estreita articulação e responsabilidade conjunta pelo cuidado integral no território.

A flexibilidade de horário e compensação pelos deslocamentos precisam ser formalizadas nas condições de trabalho, de modo a não perder de vista suas finalidades. Presença de técnicos de enfermagem nos pontos de apoio no interior foi relevante estratégia, para além do cuidado a problemas agudos de saúde dos usuários. Motoristas e pilotos de embarcações precisam ser incorporados como membros da equipe da ESF em MRR. Uma maior participação do NASF para além das sedes dos MRR foi outra necessidade verificada.

A pesquisa corrobora importância de programas federais de provisão de profissionais na ESF. O PMM prova ser estratégia ampla e bem-sucedida, que deve ser reforçada e desenvolvida, em vez de desmontada, como no governo Bolsonaro com o Programa Médicos pelo Brasil, que prevê mecanismo privatizante na APS, quantidade restrita de médicos - apenas registrados no CRM - e indica retrocessos à universalidade do SUS/ESF99 Anderson MIP. Médicos pelo Brasil e as políticas de saúde para a Estratégia Saúde da Família de 1994 a 2019: caminhos e descaminhos da Atenção Primária no Brasil. Rev Bras Med Fam Comunidade 2019; 14(41):2180.. Proposição de um arranjo diferenciado da ESF para MRR requer incrementar disponibilidade de médicos, garantindo oferta para APS sem competir com pequenos hospitais e centros de pronto-atendimento e mantendo regulação para boas práticas, incluir provisão de enfermeiros e dentistas, diminuir rotatividade e sustentar ações itinerantes das equipes. Considerar um modelo assistencial apropriado implica necessariamente em observar a gestão da FTS1818 Ney MS, Rodrigues PHA. Fatores críticos para a fixação do médico na Estratégia Saúde da Família. Physis 2012; 22(4):1293-1311.. A OMS11 World Health Organization (WHO). WHO guideline on health workforce development, attraction, recruitment and retention in rural and remote areas. Genebra: WHO; 2021. recomenda para atração e fixação de FTS em áreas rurais e remotas a consecução de políticas baseadas em educação, regulação, incentivos e suporte, destacando que as intervenções devem ser interconectadas, agregadas e ajustadas ao contexto local.

Este estudo apresenta algumas limitações para análise da atuação dos médicos na ESF em MRR. O foco neste artigo recaiu sobre atuação dos médicos em âmbito nacional, sem diferenciar por áreas da pesquisa. Ressalta-se a grande diversidade de MRR e as distintas realidades rurais, demandando modelos particulares entre vários municípios e regiões. A perspectiva dos médicos sobre seu próprio processo de trabalho nas equipes era parcial, com pouco tempo de atuação, podendo-se compor ângulos distintos de análise com outros sujeitos de pesquisa, como gestores, usuários, enfermeiros e ACS.

Contribuindo com informações e discussões sobre regiões que não têm sido o campo prioritário das investigações em Saúde Coletiva, a interpretação dos resultados trouxe à tona desafios da atuação dos médicos na ESF em MRR e determinada noção sobre as disposições organizacionais dos quais derivam. Em populações urbanas, a atuação desvinculada do território e organizada a partir da demanda espontânea também ocorre, mas para populações rurais rarefeitas se constituem em desafios adicionais, sem políticas próprias para atuação nessas realidades. Levantam-se possibilidades de novos modelos, condizentes com propósitos da ESF de uma APS comunitária e territorializada.

Referências

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  • Financiamento

    Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Fundação Oswaldo Cruz, Ministério da Saúde.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2022
  • Aceito
    01 Set 2022
  • Publicado
    03 Set 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br