Tipificação e fatores associados à ocorrência de violência em pessoas em situação de rua em um município de Minas Gerais, Brasil

Typification and factors associated with violence among the homeless in a municipality of Minas Gerais, Brazil

Gislaine Cristina Moraes de Oliveira Ananda Carvalho Martins Débora de Souza Pazini Eloisa Elena Paschoalinotte De Paula Lélia Cápua Nunes Eulilian Dias de Freitas Sobre os autores

Resumo

O estudo objetivou tipificar a violência sofrida pela população em situação de rua (PSR) e analisar os fatores associados em um município de médio porte de Minas Gerais. Foi efetuado um estudo epidemiológico transversal analítico, que utilizou um questionário estruturado para obter informações sobre dados sociodemográficos, saúde, comportamentos de risco e ocorrência de violência entre a PSR. Realizou-se regressão logística multivariada para verificar a associação entre exposições e desfecho. Dos 85 entrevistados, a maioria era do sexo masculino (75,3%), com idade entre 40 a 59 anos (59,5%), não brancos (86,3%), tabagistas (69,4%), etilistas (80,7%) e usuário de drogas ilícitas (53,6%). A prevalência geral de violência foi de 62,3%. Os tipos de violência mais relatados foram agressão verbal, física e ameaças. Ser mulher (OR 42,1; IC95% 27,8-638,0) e ser de cor não branca (OR 9,02; IC95% 1,33-61,1) estiveram associados ao maior risco de sofrer violência. Não ter morbidade (OR 0,14; IC95% 0,03-0,62) e viver nas ruas por até cinco anos (OR 0,18; IC95% 0,04-0,71) apresentaram associação negativa. Observa-se como a violência encontra-se presente no contexto urbano associada a sexo, raça, morbidade autorreferida e tempo de vida na rua.

Key words:
Homeless people; Violence; Exposure to violence

Abstract

The scope of the study was to typify the violence suffered by the homeless population and analyze the associated factors in a medium-sized municipality in Minas Gerais. A cross-sectional study was conducted and data about sociodemographic status, health, risk behaviors and occurrence of violence among the homeless was collected. Multivariate logistic regression was performed to verify the association between exposure and outcomes. Of the 85 respondents, the majority were male (75.3%), aged between 40 and 59 years (59.5%), non-white (86.3%), smokers (69.4%), alcoholics (80.7%) and drug users (53.6%). The overall prevalence of violence was 62.3%. The types of violence most reported were verbal and physical aggression and threats. Being a woman (OR 42.1; 95%CI 27.8-638.0) and being non-white (OR 9.02; 95%CI 1.33-61.1) were associated with a higher risk of experiencing violence. Having no morbidity (OR 0.14; 95%CI 0.03-0.62) and living on the streets for up to five years (OR 0.17; 95%CI 0.04-0.71) revealed a negative association. It was observed how violence is present in the urban context associated with sex, race, self-reported morbidity and time living on the streets.

Key words:
Homeless people; Violence; Exposure to violence

Introdução

Viver nas cidades foi a maior e mais relevante mudança demográfica ocorrida no último século. Atualmente, mais da metade da população mundial vive em centros urbanos e estima-se que essa proporção chegue a 70% em 205011 United Nations Human Settlements Programme (UN-Habitat). World Cities Report 2022: Envisaging the Future of Cities. Nairobi: UN-Habitat; 2022.. Esse processo trouxe transformações socioeconômicas e culturais, pautadas no processo de globalização da economia capitalista e no avanço tecnológico, gerando consequências negativas, configuradas na reprodução de desigualdades sociais para grande parcela da população22 Costa APM. População em situação de rua: contextualização e caracterização. Textos Contextos 2005; 4(1):1-15.,33 Gomes MA, Pereira MLD. Família em situação de vulnerabilidade social: uma questão de políticas públicas. Cien Saude Colet 2005; 10(2):357-363.. Embora o poder aquisitivo, analisado de forma geral, tenha crescido, a análise individual dos grupos que compõem a pirâmide social evidencia que ele é detido em grande quantidade por restrita parcela da sociedade e em menor quantidade pela chamada classe média. Além disso, na base dessa pirâmide, cresce um grupo pouco reconhecido, que não apresenta poder aquisitivo algum, a população em situação de rua22 Costa APM. População em situação de rua: contextualização e caracterização. Textos Contextos 2005; 4(1):1-15.,33 Gomes MA, Pereira MLD. Família em situação de vulnerabilidade social: uma questão de políticas públicas. Cien Saude Colet 2005; 10(2):357-363..

O viver em situação de rua é um fenômeno mundial e uma das mais extremas manifestações de pobreza e exclusão social44 Panadero S, Guillén AI, Vázquez JJ. Happiness on the street: Overall happiness among homeless people in Madrid (Spain). Am J Orthopsychiatry 2015; 85(4):324-330.,55 Vázquez JJ, Suarez A, Berríos A, Panadero S. Stressful life events among homeless people in León (Nicaragua): Quantity, types, timing, and perceived causality. J Community Psychol 2019; 47(1):176-185.. Compreende-se PSR como aqueles indivíduos que vivenciam uma situação de extrema pobreza, com vínculos familiares inexistentes ou fragilizados, e que não possuem moradia convencional, acabando por utilizarem os espaços públicos ou as unidades de acolhimento, como locais de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente66 Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH). Diálogos sobre a população em situação de rua no Brasil e na Europa: experiências do Distrito Federal, Paris e Londres. Brasília: SDH; 2013.,77 Brasil. Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 24 dez..

A violência compõe a história das pessoas em situação de rua; estudos publicados em diversos países demonstraram alguns mecanismos dos quais essa população é vítima, ao mesmo tempo em que é culpabilizada pela violência88 Faragó L, Ferenczy-Nyúl D, Kende A, Krekó P, Gurály. Criminilization as a justification for violence against the homeless in Hungary. J Soc Psychol 2021; 162(2):216-230.

9 Souza MRR, Oliveira JF, Chagas MCG, Carvalho ESS. Gênero, violência e viver na rua: vivências de mulheres que fazem uso problemático de drogas. Rev Gaucha Enferm 2016; 37(3):e59876.

10 North CS, Smith EM, Spitznagel EL. Violence and the Homeless: An Epidemiologic Study of Victimization and Agression. J Trauma Stress 1994; 7(1):95-110.

11 Kipke MD, Simon TR, Montgomery SB, Unger JB, Iversen EF. Homeless youth and their exposure to and involvement in violence while living on the streets. J Adolesc Health 1997; 20(5):360-367.
-1212 Fazel S, Geddes JR, Kushel M. The health of homeless people in high-income countries: descriptive epidemiology, health consequences, and clinical and policy recommendations. Lancet 2014; 384(9953):1529-1540.. Considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) um problema crescente e importante de saúde pública no mundo, a violência é resultado da integração de fatores individuais, de relacionamento, sociais, culturais e ambientais1313 World Health Organization (WHO). Global consultation on violence and health. Violence: a public health priority. Geneva: WHO; 1996.,1414 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002..

De acordo com o modelo ecológico das raízes da violência, fatores relacionados à vulnerabilidade social, como alta mobilidade residencial, altos níveis de desemprego, isolamento social, pobreza e pouco apoio institucional são alguns fatores que contribuem para o aumento dos níveis de violência em determinados grupos1414 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002.. Nesse sentido, a população em situação de rua (PSR), constituída por pessoas vulneráveis socialmente, está mais sujeita às condições de exclusão e violências urbanas. Estudos demonstram que nos Estados Unidos a prevalência de violência contra a PSR varia de 14% a 21%, enquanto na população geral essa taxa é de aproximadamente 2%1515 Meinbresse M, Brinkley-Rubinstein L, Grassette A, Benson J, Hamilton R, Malott M, Jenkins D. Exploring the experiences of violence among individuals who are homeless using a consumer-led approach. Violence Vict 2014; 29(1):122-136.. Entre os casos de violência notificados no Brasil entre 2015 e 2017, 2,2% (17.386) tiveram por motivação principal a condição de situação de rua da vítima. Este percentual aumenta para 29,1% quando analisados os dados do estado de Minas Gerais (MG), que ocupa o primeiro lugar em frequência de notificações absoluta e relativa no período1616 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Boletim Epidemiológico: População em situação de rua e violência - uma análise das notificações no Brasil de 2015 a 2017. Brasília: MS/SVS; 2019..

Destaca-se que, em nível nacional, o Massacre na Praça da Sé, em 2004, foi o acontecimento que mobilizou a criação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), que busca cobrar e efetivar os direitos dessa população1717 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Saúde da população em situação de rua: um direito humano. Brasília: MS/SGEP; 2014.. Apesar dos avanços alcançados pelo MNPR, como a instituição da Política Nacional da População em Situação de Rua77 Brasil. Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 24 dez., a violência ainda se encontra presente neste grupo. De 2015 a 2017, foram notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) 777.904 casos de violência contra indivíduos em situação de rua, sendo mais frequente contra mulheres e pessoas de pele preta1616 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Boletim Epidemiológico: População em situação de rua e violência - uma análise das notificações no Brasil de 2015 a 2017. Brasília: MS/SVS; 2019..

A pessoa em situação de rua é recorrentemente culpabilizada pelo contexto em que se encontra inserida e responsabilizada por outros problemas de ordem social, como o tráfico, a degradação da cidade e a violência1818 Sicari AA, Zanella AV. Pessoas em situação de rua no brasil: revisão sistemática. Psicol Cienc Prof 2018; 38(4):662-679.. Por ser vista como ameaça, a PSR sofre ações higienistas e excludentes por parte da sociedade em geral e também na procura por serviços públicos1919 Rosa AS, Cavicchioli MGC, Brêtas ACP. O processo saúde-doença-cuidado e a população em situação de rua. Rev Latino-Am Enferm 2005; 13(4):576-582.. Tais atitudes corroboram a manutenção do preconceito e a normalização das violências contra essas pessoas, aumentando sua invisibilidade e perpetuando sua condição de vulnerabilidade, minando suas possibilidades de trabalho e de inserção social2020 Nonato DN, Raiol RWG. Pessoas em situação de rua e violência: entrelaçados em nome da suposta garantia de segurança pública. RDD 2018; 27(49):90-116.,2121 Alves MER. População em situação de rua: a violência contra a mulher em situação de rua como expressão da questão social. VII Jornada internacional de políticas públicas; 2015; São Luiz., perpetuando um ciclo de violência.

Apesar das evidências anteriormente publicadas sobre a violência entre as pessoas em situação de rua, estudos epidemiológicos que evidenciam os tipos de violência sofrida, bem como os fatores associados à ocorrência desse agravo, são escassos na literatura nacional. Partindo do entendimento que esse conhecimento contribui, para subsidiar ações com resultados mais efetivos na mitigação e resolução desse relevante problema de saúde pública, o objetivo do presente estudo foi tipificar a violência sofrida pela PSR e analisar os fatores associados em um município de médio porte de Minas Gerais.

Métodos

Tratou-se de um estudo epidemiológico transversal analítico, que teve como população de estudo as pessoas em situação de rua do município de Governador Valadares - Minas Gerais (MG). Essa cidade está localizada no leste do estado de MG, a 316 km da capital, Belo Horizonte, adstrita à região do Vale do Rio Doce. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população estimada em 2020 é de 281.046 habitantes2222 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico de 2020. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.. O índice de desenvolvimento humano (IDH) do município foi de 0,727, e o do Brasil foi de 0,7522323 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico de 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2010..

Foram incluídos no presente estudo indivíduos com 18 anos ou mais, em situação de rua no momento da entrevista e que concordaram em participar assinando o termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Em caso de dificuldade de leitura e compreensão do mesmo, o termo foi lido para o entrevistado e as dúvidas sanadas. A assinatura foi feita por escrito ou por impressão dactiloscópica quando necessário. Foram excluídos da pesquisa indivíduos que estavam sob influência de álcool ou drogas durante a abordagem dos entrevistadores ou que por qualquer outro motivo estivessem impossibilitados de compreender as perguntas.

Considerando a grande mobilidade dessa população e um levantamento prévio da prefeitura municipal que cadastrou 123 indivíduos em situação de rua em 20162424 Prefeitura Municipal de Governador Valadares. Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS). Diagnóstico da população de Governador Valadares em situação de rua. Governador Valadares: PMGV/SMAS; 2016., optou-se neste estudo pela amostragem por conveniência, estratégia que permitiu abordar toda a população-alvo presente nos pontos de coleta durante o período de entrevistas. A coleta de dados foi realizada em locais de permanência mais frequentes da PSR, definidos a partir de informações obtidas com a equipe Consultório na Rua (ECR) do município. Dada a mobilidade intraurbana da população de estudo, para minimizar o risco de entrevistas duplicadas, a coleta de dados foi efetuada no menor tempo possível e variáveis-chave foram comparadas.

As entrevistas foram conduzidas por entrevistadores previamente treinados, com acompanhamento de um membro da ECR, entre os meses de julho e agosto de 2018. Foi aplicado um questionário estruturado de elaboração própria para obter informações sobre dados sociodemográficos, saúde, comportamentos de risco e ocorrência de violência. As perguntas incluídas no instrumento foram um misto de elaboração própria e questões amplamente utilizadas em inquéritos epidemiológicos prévios2323 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico de 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2010.,2525 Friche AAL, Xavier CC, organizadores. Saúde urbana em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2015.. Conduziu-se um estudo-piloto com três indivíduos em situação de rua para adequação final do instrumento.

A variável dependente foi ser vítima de violência estando em situação de rua, em qualquer momento da vida na rua (sim; não). As variáveis independentes foram: sexo (feminino; masculino), idade (19-39 anos; 40 a 59 anos; 60 anos ou mais), raça (branca; não branca), estado civil (com conjugue; sem conjugue), escolaridade (até o 1º grau; 2º grau ou mais), cidade de nascimento (Governador Valadares; outra), familiares com quem mantem contato (pai; mãe; irmãos; filhos; outros parentes), consumo atual de bebida alcoólica (nunca; quase nunca; uma a duas vezes por semana; três a quatro vezes por semana; cinco a seis vezes por semana; todos os dias), tabagismo atual (sim; não), uso de drogas ilícitas atual (sim; não), considera que a polícia protege contra possíveis violências (sim; não), vítima de violência policial (sim; não), prefere viver sozinho ou em grupo (sozinho; grupo), recebe benefício público (sim; não), morbidade autorreferida (sim; não), comportamento de risco (sim; não), local que dorme (albergado; rua), tempo que vive na rua (1 a 5 anos; 6 ou mais anos).

Os dados coletados foram submetidos à dupla digitação e processados com o software IBM SPSS Statistics 23. Os dados inconsistentes foram verificados e, quando possível, corrigidos, minimizando assim os erros e valores perdidos.

Foi efetuada a estatística descritiva dos dados com apresentação das frequências absolutas e relativas. Para verificar a associação do desfecho (vítima de violência) e as variáveis explanatórias de interesse, foi realizado o teste qui-quadrado ou exato de Fisher quando necessário.

Para ajuste do modelo de regressão logística multivariada, inicialmente foi feita uma regressão logística univariada e variáveis que obtiveram valor-p < 0,20 foram incluídas no modelo de regressão logística, permanecendo no modelo final, ajustado por sexo, apenas aquelas com valor-p < 0,05. O programa utilizado para efetuar as análises foi o SAS, versão 9.4.

Este estudo seguiu os preceitos éticos estabelecidos pela Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (CEP/UFJF), sob o parecer nº 2.698.623, CAAE 86633718.4.0000.5147.

Resultados

Foram entrevistados 85 indivíduos. A Tabela 1 apresenta o perfil sociodemográfico e a prevalência do sofrimento de violência em situação de rua. Do total de entrevistados, 75,3% (n = 64) eram do sexo masculino, 59,5% (n = 50) tinham entre 40 e 59 anos de idade e 86,3% (n = 69) se declararam não brancos. A maioria dos participantes era tabagista (69,4%, n = 67), etilista (80,7%, n = 59) e/ou usuário de drogas ilícitas (53,6%, n = 45).

Tabela 1
Prevalência de violência de acordo com o perfil sociodemográfico da população em situação de rua, Governador Valadares (MG), 2018.

A prevalência geral de violência foi de 62,3% (n = 53), ultrapassando 50% em 17 das 19 categorias estudadas. Entre as mulheres, a taxa de prevalência foi de 76,2%, entre os não brancos foi de 66,7%. As diferenças não foram significativas entre as categorias estudadas (Tabela 1).

A tipificação da violência sofrida em relação ao sexo é apresentada na Tabela 2. A violência foi mais frequente no período diurno (60%), em comparação com o noturno (41,2%). Os tipos de violência mais relatados durante o dia pelas mulheres foram agressão verbal (57,1%) e física (38%), e pelos homens foram agressão física (25%) e ameaças (20,3%). Apenas o tipo agressão verbal apresentou diferença estatística (p = 0,001) entre os sexos nesse turno. As violências sofridas no período noturno pelas mulheres mantiveram os mesmos padrões do período diurno (42,8% e 28,6%, respectivamente). Nesse período, os tipos de violência mais sofridos pelos homens foram agressão física (18,8%) e roubo/furto (17,2%). Encontrou-se diferença significativa entre os sexos para agressão verbal (p = 0,003) e violência sexual (p = 0,012) sofridas durante a noite. Aproximadamente metade da população estudada (48,1%; n = 38) considera que a polícia protege contra possíveis violências e 44,4% (n = 36) afirmaram já ter sido vítimas de violência policial (Tabela 2).

Tabela 2
Prevalência a violência tipificada, por sexo, na população em situação de rua de Governador Valadares (MG), 2018.

Os resultados da análise univariada entre a variável dependente e as variáveis independentes são apresentadas na Tabela 3. Já o modelo final de regressão logística múltipla com as variáveis associadas ao risco de sofrer violência encontra-se na Tabela 4. Ser mulher (OR 42,1; IC95% 27,8-638,0) e ser de cor não branca (9,02; IC95% 1,33-61,1) esteve associado a maior risco de sofrer violência nas ruas. Por outro lado, não ter morbidade (OR 0,14; IC95% 0,03-0,62) e viver nas ruas por até cinco anos (0,18; IC95% 0,04-0,71) apresentou associação negativa em relação a ser vítima de violência.

Tabela 3
Modelo de regressão logística univariada das variáveis associadas a sofrer violência entre pessoas em situação de rua, Governador Valadares (MG), 2018.

Tabela 4
Modelo de regressão logística multivariada das variáveis associadas a sofrer violência entre pessoas em situação de rua, Governador Valadares (MG), 2018.

Discussão

Considerando 123 pessoas em situação de rua cadastradas previamente no município2424 Prefeitura Municipal de Governador Valadares. Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS). Diagnóstico da população de Governador Valadares em situação de rua. Governador Valadares: PMGV/SMAS; 2016., estima-se um alcance 69,1% da população total. Porém, dado o modo de vida característico dessa população - com alta mobilidade intra e intermunicipal, permanência em locais variáveis no território urbano - e a não abordagem dos entrevistadores a pessoas e grupos sob efeito de álcool ou outras substâncias, não foi possível contabilizar o número exato de sujeitos excluídos da pesquisa.

A PSR está imersa em uma condição de vulnerabilidade social, encontrando-se exposta a alto risco de sofrer violência, particularmente as mulheres, pessoas não brancas, que têm alguma morbidade e que vivem há mais de cinco anos em situação de rua. Os dados sociodemográficos revelaram um perfil predominantemente masculino, não branco, imigrante, de baixa escolaridade, usuário de álcool, tabaco e/ou de outras drogas. A violência foi mais frequente durante o dia, com a frequência da tipificação se alterando conforme o sexo. A violência policial é uma realidade para essa população, sendo que menos da metade dos entrevistados alegou se sentir protegido pela instituição.

Apesar de 56,2% da população brasileira se declarar preta ou parda2626 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA [Internet]. 2022. [acessado 2021 nov 16]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/1378
https://sidra.ibge.gov.br/tabela/1378...
, o percentual de pessoas não brancas em situação de rua encontrado neste estudo foi de 86,2%, semelhante ao diagnóstico feito na cidade de Governador Valadares1818 Sicari AA, Zanella AV. Pessoas em situação de rua no brasil: revisão sistemática. Psicol Cienc Prof 2018; 38(4):662-679. e aos dados do Censo de São Paulo2727 Prefeitura de São Paulo. Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS). Pesquisa censitária da população em situação de rua, caracterização socioeconômica da população em situação de rua e relatório temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo. São Paulo: PSP/SMADS; 2019.. O estudo de Silva2828 Silva LB. População negra em situação de rua: um estudo das manifestações da herança escravocrata que perpassam a população usuária da política de assistência social. IX Jornada Internacional de Políticas Públicas 2019; São Luís. elucida a origem dessa prevalência de negros e pardos dentro da PSR: segundo a autora, o Brasil teve sua sociedade estruturada de forma segmentada e desigual entre as raças. Ainda, a violência foi fundamental na constituição da sociedade brasileira, sendo a incorporação de minorias no país repleta de episódios de arbitrariedade e violência, como ocorreu com a dominação dos povos indígenas e a escravidão2929 Velho G. O desafio da violência. Estud Avançados 2000; 14(39):56-60..

A ideologia do branqueamento após a abolição empurrou a população negra para a periferia da cidade e para o trabalho na informalidade3030 Nascimento M. Os privilégios da branquitude e a reprodução de desigualdades sociais na educação brasileira. Educ Cult Soci 2020; 10(2): 21-33.. Enquanto imigrantes europeus eram abrigados e empregados, o povo negro ficou com o estigma de “subdesenvolvido”, “portador de uma inferioridade congênita”, “não qualificado” e “mal trabalhador”, entre outros termos3030 Nascimento M. Os privilégios da branquitude e a reprodução de desigualdades sociais na educação brasileira. Educ Cult Soci 2020; 10(2): 21-33.. Dessa forma, o racismo estrutural presente na sociedade brasileira continua gerando distintas violações ao negro, inclusive ao negro em situação de rua, demandando urgência no debate e nas ações de mudança dessa condição na agenda política.

Cabe ressaltar que a relação entre cor e situação de rua não é um fenômeno restrito à realidade brasileira. Nos Estados Unidos, também de passado escravocrata, estudos demonstram que a população preta está super-representada entre esse grupo vulnerável (40% de pretos entre a PSR e 12% de pretos na população geral) e que aos problemas enfrentados pela população preta nas ruas soma-se o racismo e menores possibilidades de sair da rua3131 Jones MM. Does race matter in addressing homelessness? A review of the literature. World Med Health Policy 2016; 8(2):139-156..

Ainda que a maioria da população brasileira seja composta por mulheres2626 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA [Internet]. 2022. [acessado 2021 nov 16]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/1378
https://sidra.ibge.gov.br/tabela/1378...
, há uma predominância de homens em situação de rua, o que pode ser justificado por uma questão cultural, que aceita mais a presença do homem na rua do que da mulher3232 Vieira MA, Bezerra EMR, Rosa CMM. População de rua: quem é, como vive, como é vista? São Paulo: Hucitec; 1994.

33 Tiengo VM. O Fenômeno população em situação de rua enquanto fruto do capitalismo. Textos Contextos 2018; 17(1):138-150.
-3434 Ruiz CB. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem: (re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Cadernos IHU 2012; 10(39):1-50.. Pela figura tradicional do homem provedor, muitos homens saem de casa na tentativa de obter um trabalho e, ao não conseguirem se inserir no mercado, chegando inclusive a migrar, acabam permanecendo nas ruas por falta de opção ou pela sensação de vergonha devido à ideia de fracasso3232 Vieira MA, Bezerra EMR, Rosa CMM. População de rua: quem é, como vive, como é vista? São Paulo: Hucitec; 1994.,3434 Ruiz CB. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem: (re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Cadernos IHU 2012; 10(39):1-50.. Ao mesmo tempo, a mulher seria responsável, dentro de uma estrutura patriarcal, pela realização de tarefas domésticas e de cuidar da família, sendo mais raro que ela vá para a situação de rua, uma vez que seu papel social é tradicionalmente cuidar da casa, e não a sustentar3232 Vieira MA, Bezerra EMR, Rosa CMM. População de rua: quem é, como vive, como é vista? São Paulo: Hucitec; 1994.,3333 Tiengo VM. O Fenômeno população em situação de rua enquanto fruto do capitalismo. Textos Contextos 2018; 17(1):138-150..

A ocorrência de violência foi mais frequente no período diurno do que no noturno, embora 60% dos entrevistados tenham afirmado não dormir albergados na maioria das noites. Uma possível explicação para a maior prevalência de violência durante o dia é que a interação entre as pessoas em situação de rua com a população geral, a busca por alimento e demais atividades de subsistência, aconteçam durante tal período, aumentando as chances de conflitos3535 Aguiar MM, Iriart JAB. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2012; 28(1):115-124..

Apesar disso, dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome3636 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Meta Instituto de Pesquisa de Opinião. Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua. Brasília: MDSCF/SAGI/MIPO; 2008. confirmam a preocupação dessa população com a violência e revelam que o principal motivo para a preferência pela pernoite em albergues é o risco de ocorrência de violência durante a noite. Segundo Rosa et al.3737 Rosa AS, Brêtas ACP. A violência na vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu); 2015; 19(53):275-285., a violência noturna de maior impacto no cotidiano de pessoas em situação de rua é a de cunho higienista, praticada por policiais, grupos intolerantes, pessoas contratadas por comerciantes ou moradores que se sentem prejudicados pela presença das pessoas em situação de rua nos arredores. Ainda, resultados de Aguiar et al. (2012) apontam que dormir em grupo, ou durante o dia, é uma estratégia de segurança utilizada por essa população3535 Aguiar MM, Iriart JAB. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2012; 28(1):115-124..

A violência física foi o tipo mais frequente, com 28,2% dos casos no período diurno e 21,3% no período noturno. O resultado foi semelhante ao perfil publicado pelo Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável (CNDDH)2020 Nonato DN, Raiol RWG. Pessoas em situação de rua e violência: entrelaçados em nome da suposta garantia de segurança pública. RDD 2018; 27(49):90-116.. Estudo conduzido em cinco cidades dos EUA apontou razões pelas quais a PSR acredita ser a motivação da violência sofrida, sendo as quatro principais: roubos (32%), agressor sobre influência de drogas (28%), crime de ódio (12%) e competição por espaço (5%)1515 Meinbresse M, Brinkley-Rubinstein L, Grassette A, Benson J, Hamilton R, Malott M, Jenkins D. Exploring the experiences of violence among individuals who are homeless using a consumer-led approach. Violence Vict 2014; 29(1):122-136.. Sabe-se que, principalmente entre mulheres em situação de rua, tipos de violência não física, como agressões psicológicas, verbais e negligência são descritas como fatos de menor importância3737 Rosa AS, Brêtas ACP. A violência na vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu); 2015; 19(53):275-285., de modo que outras formas de violência podem ser, de certa forma, subnotificadas. No estudo de Couto et al.3838 Couto RMB, Rizzini I. Acolhimento institucional para crianças e adolescentes em situação de rua: Pesquisa e políticas públicas. Textos Contextos 2021; 20(1):e39173 foi possível inferir que vivendo nas ruas as pessoas experienciam pelo menos três tipos de violência, sendo as agressões física e verbal as de maior prevalência.

A população em situação de rua é vista socialmente como um grupo que oferece ameaça, e não como um segmento que se encontra em situação de vulnerabilidade social3434 Ruiz CB. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem: (re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Cadernos IHU 2012; 10(39):1-50.. A violência, portanto, é consequência das desigualdades sociais que geram insegurança e criminalidade, e não diretamente da pobreza em si2020 Nonato DN, Raiol RWG. Pessoas em situação de rua e violência: entrelaçados em nome da suposta garantia de segurança pública. RDD 2018; 27(49):90-116.,3434 Ruiz CB. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem: (re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Cadernos IHU 2012; 10(39):1-50.. Assim, sob a ótica da sociedade e da política brasileira, a PSR deve ser temida, necessitando ser controlada pela polícia, o que corrobora os dados de violência policial encontrados não só neste estudo, mas também com aqueles estudados pelo CNDDH: o Estado é o principal agente violador de direitos da PSR, sendo os agentes públicos responsáveis por 65% das ocorrências3939 Varanda W, Adorno RCF. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(1):56-69.. Apesar da existência de políticas específicas de combate à violência contra a PSR, inclusive a violência institucional77 Brasil. Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 24 dez.,4040 Brasil. Resolução nº 40, de 13 de outubro de 2020. Dispõe sobre as diretrizes para promoção, proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas em situação de rua, de acordo com a Política Nacional para População em Situação de Rua. Diário Oficial da União 2020; 5 nov., essa é uma realidade que ainda não foi superada.

Cabe ressaltar que esse grupo vulnerável surgiu a partir da urbanização da sociedade, pois a estruturação urbana tem ocorrido de modo desordenado e desestruturado, atendendo a interesses capitalistas, em detrimento ao desenvolvimento social e humano. Em cidades de todo o mundo, como Delhi (Índia), Paris (França) ou São Paulo (Brasil), esse processo provocou uma crise de descampados urbanos, com implantação de projetos de demolição e despejos, que nem sempre foram acompanhados de reassentamento adequado4141 Ghosh S. Understanding homelessness in neoliberal city: a study from Delhi. J Asian African Stud 2020; 55(2):285-297.. Acrescenta-se a esse cenário a ideologia neoliberal, que prega que a produtividade e o crescimento econômico aumentam o bem-estar humano, mesmo que esse ganho seja apenas para grupos restritos e historicamente privilegiados - por gênero, classe, etnia ou relação com o colonialismo -, deixando de fora grupos invisibilizados, como é o caso da PSR22 Costa APM. População em situação de rua: contextualização e caracterização. Textos Contextos 2005; 4(1):1-15.,4242 Donnan ME. Life after neoliberalism in Canada: how policy creates homelessness and how citizenship models fail to provide solutions. Int J Lib Art Sci 2014; 7(5):585-596..

A vulnerabilidade feminina à violência mantém sua posição entre aquelas em situação de rua. Os resultados apontam que a chance de as mulheres em situação de rua sofrerem algum tipo de violência foi 42 vezes a chance dos homens. Em estudo realizado em São Paulo, que investigou as situações de violência vivenciadas por mulheres em situação de rua, cada mulher experienciou no mínimo dois destes aspectos ao longo de sua vida: pobreza, experiência de violências, transtornos mentais, dependência de álcool e outras drogas, falta de amor e rupturas dos vínculos familiares ou sociais3737 Rosa AS, Brêtas ACP. A violência na vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu); 2015; 19(53):275-285.. Dessa forma, a vida dessas mulheres é marcada pela soma de vulnerabilidades, sendo transpassadas por violência, preconceitos e desigualdade de gênero3737 Rosa AS, Brêtas ACP. A violência na vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu); 2015; 19(53):275-285..

No presente estudo, não brancos tiveram chance de ocorrência de violência nove vezes maior em relação aos brancos. Em 2016, o Atlas da Violência4343 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Nota técnica: Atlas da Violência. Brasília: MPOG/IPEA; 2016. demonstrou que na população geral a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros, e entre 2006 e 2016 essa taxa cresceu 23,1%. Se o recorte de gênero for acrescentado, a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de não negras. De acordo com o Boletim Epidemiológico Nacional da Secretaria de Vigilância em Saúde, voltado para a violência contra a PSR entre 2015 e 2017, as notificações de violência foram mais frequentes no sexo feminino e entre as pessoas de cor negra, incluindo pretos e pardos1616 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Boletim Epidemiológico: População em situação de rua e violência - uma análise das notificações no Brasil de 2015 a 2017. Brasília: MS/SVS; 2019..

Observou-se que pessoas sem morbidades autorreferidas apresentam menos relatos de violências do que aquelas com pelo menos uma morbidade autorreferida. De acordo com Antunes et al.4444 Antunes CMC, Rosa AS, Brêtas ACP. From the stigmatizing disease to resignification of living on the streets. Rev Eletron Enferm 2016; 18(1150):e1150., a relativização dos problemas de saúde, aliada à falta de conhecimento, de acolhimento e ao preconceito, cria a visão da doença como uma sentença de morte para tal público, acarretando a falta de autocuidado. Além disso, segundo Arendt4545 Ribeiro KP. Violência e poder em Hannah Arendt. Cad Arendt 2020; 1(1):1-10., a ocorrência de violência é ligada à ausência de poder, de modo que pessoas vulneráveis, entre elas as com alguma morbidade, são mais suscetíveis a violências. Essa situação foi observada em idosos4646 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Estatuto do Idoso. Brasília: MS; 2013., mulheres4747 Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: SPM; 2013., crianças4848 Brasil. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul. e pessoas com deficiência4949 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde (SAS). Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência. Brasília: MS/SAS; 2010..

Estar a menos de cinco anos em situação de rua está negativamente associado a ser vítima de violência. Cerca de 30% das PSR estão nesta condição há mais de sete anos, sendo o tempo médio de permanência de 5,39 anos5050 Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Instituto Nacional de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Texto para Discussão 2246: estimativa da população em situação de rua no Brasil. Brasília: MPDG/IPEA; 2016.,5151 Hungaro AA, Gavioli ACR, Marangoni SR, Altrão RF, Rodrigues AL, Oliveira MLFD. Pessoas em situação de rua: caracterização e contextualização por pesquisa censitária. Rev Bras Enferm 2020; 73(5):e20190236.. Estar em situação de rua cria um estado de vigília e estresse contínuos, o que pode aumentar a reatividade ao conflito ou ao perigo potencial5252 Crawford DM, Whitbeck LB, Hoyt DR. Propensity for Violence among Homeless and Runaway Adolescents: An Event History Analysis. Crime Delinq 2011; 57(6):950-968.. Ainda, comportamentos coercitivos e agressivos são aprendidos e reforçados com o tempo, de forma que quanto maior o tempo de permanência na rua, maior a probabilidade de envolvimento com a violência5353 Aldridge R, Zenner D, White P, Williamson E, Abubakar I, Hayward A. Pre-entry screening of tuberculosis in migrants to the UK: a population-based cohort study. Lancet 2016; 387: S11.. Dessa forma, a transformação de uma situação transitória para permanente consolida a vulnerabilidade social dos indivíduos, limitando sua possibilidade de reinserção social e, consequentemente, aumentando a chance de se tornar vítima de violência.

O uso de álcool e/ou drogas, identificado como comportamento de risco, foi relatado por quase 86% dos entrevistados. Apesar de essa variável não ter permanecido significativa no modelo final, a literatura publicada traz fortes associações entre uso de álcool e drogas e violência. Quando inseridos em uma condição de estigmatização e vulnerabilidade, os usuários podem desenvolver comportamentos mais agressivos, à medida que a maioria dessas substâncias alteram a percepção e as interações sociais, aumentando o risco de desentendimentos5353 Aldridge R, Zenner D, White P, Williamson E, Abubakar I, Hayward A. Pre-entry screening of tuberculosis in migrants to the UK: a population-based cohort study. Lancet 2016; 387: S11.. O uso abusivo de substâncias em si não determina a ação violenta, mas funciona como disparador da violência em indivíduos com pouco ou nenhum recurso de defesa, sendo muitas vezes tais atos uma resposta a frustrações e desagrados5454 Espíndola MI, Bedendo A, Silva EA, Noto AR. Interpersonal relationships and drug use over time among homeless people: a qualitative study. BMC Public Health 2020; 20(1746):1746..

O estudo apresenta como limitações a possibilidade de duplicidade de entrevistas - dado o caráter migratório da população do estudo -, de ocorrência de viés de informação, gerado pela dificuldade de memória, a autocensura, pressa em responder e/ou falta de atenção ou entendimento. Com o intuito de minimizar as limitações, a coleta de dados foi efetuada no menor tempo possível e variáveis-chave foram comparadas para a exclusão de possíveis entrevistas duplicadas. Além disso, as variáveis relacionadas a tempo foram contextualizadas e a confidencialidade foi explicada em linguagem simples e garantida nos termos do TCLE.

Conclui-se que a violência nas suas mais distintas manifestações encontra-se presente no contexto urbano associada a sexo, raça, morbidade autorreferida e tempo de vida na rua. Esses dados representam um aprofundamento da compreensão da violência sofrida pelas pessoas em situação de rua e contribuem para a discussão e a construção de políticas públicas efetivas que atuem nas causas estruturais da violência. São necessários estudos que investiguem a autopercepção da PSR em relação à violência sofrida, bem como analisem, a partir da complexidade da dinâmica de se viver nas ruas, os moldes como as relações se desenvolvem em tal meio, compreendendo o contexto entre ser agressor e vítima.

Agradecimentos

À equipe de Consultório na Rua do município de Governador Valadares, pelo apoio logístico na obtenção dos dados.

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  • ERRATA

    p. 1607
    Onde se lia:
    Débora de Sousa Pazini
    Leia-se:
    Débora de Souza Pazini

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2022
  • Aceito
    15 Nov 2022
  • Publicado
    17 Nov 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br