Resolutividade no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS): análise em um serviço de referência no Amazonas, Brasil

Problem-solving in the Indigenous Health Care Subsystem (SASI-SUS): analysis in a reference service in Amazonas, Brazil

Bahiyyeh Ahmadpour Ruth Natalia Teresa Turrini Pilar Camargo-Plazas Sobre os autores

Resumo

A resolutividade é um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, com sua capacidade de resolver os problemas da população nos diferentes níveis de complexidade da saúde. O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS) integra este sistema, respeitando as especificidades das populações indígenas. O objetivo deste artigo é analisar a percepção dos profissionais e gestores de uma Casa de Saúde Indígena (CASAI) a respeito da resolutividade no subsistema quanto às circunstâncias da pandemia. Pesquisa qualitativa, de caráter descritivo, à luz da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) e da teoria hermenêutica de Paul Ricoeur. Foram realizadas entrevistas entre os participantes a fim de registrar as experiências no processo de trabalho dos atores que cuidam dos indígenas referenciados à Manaus, Amazonas. Foram identificadas, pelas entrevistas, quatro temáticas essenciais: cuidado cultural; educação permanente em saúde & educação em saúde; negociação & improviso e; acolhimento & infraestrutura. A CASAI é uma instituição que vai além de um centro de apoio ou alojamento, sendo ponto de articulação entre os diferentes níveis de atenção aos indígenas e local de produção de cuidados e de saberes, tal como da construção de suas relações, resultando em um espaço resolutivo.

Palavras-chave:
Sistema de Saúde Indígena; Serviços de saúde; Resolução de problemas

Abstract

Problem-solving is one of the principles of the Unified Health System (SUS) in Brazil, with its ability to solve the health problems of the population at different levels of complexity. The Indigenous Health Care Subsystem (SASI-SUS) is part of this service, respecting the specificities of indigenous populations. The scope of this article is to analyze the perception of professionals and managers of an Indigenous Health Center (CASAI) regarding its ability to cope with the circumstances of the pandemic. It involved qualitative and descriptive research under the National Health Care Policy for Indigenous Peoples (PNASPI) and Paul Ricoeur’s hermeneutic theory. Interviews were conducted with participants in order to record the experiences in the work process of the actors who assist the indigenous people housed at CASAI. Four essential themes were identified in the interviews: cultural care; permanent education in health & health education; negotiation & improvisation; and reception & infrastructure. CASAI is an institution that is more than a support center or accommodation, being a crossover point between the different levels of care and knowledge production of the indigenous people, as well as a place for establishing a relationship, resulting in a problem-solving space.

Key words:
Indigenous Health System; Health services; Problem-solving

Introdução

No Brasil, a resolutividade é uma das diretrizes da Atenção Primária à Saúde (APS) e um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), que articula diferentes tecnologias tanto para o cuidado individual como coletivo, através de um trabalho clínico ampliado e centrado na pessoa que é capaz de construir vínculos positivos e intervenções de maneira clínica e sanitariamente efetivas11 Brasil. Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª ed. Brasília: MS, FUNASA; 2002..

O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), implementado na Lei Orgânica de Saúde em 1999, é gerido pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). As diretrizes desse subsistema são preconizadas pela Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI). Tal política tem como propósito a garantia do acesso dos povos indígenas aos serviços de saúde, respeitando os princípios e diretrizes do SUS e contemplando a diversidade cultural, geográfica, histórica e política desses povos, reconhecendo a eficácia de sua medicina e o direito destes à manutenção de sua cultura22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde indígena: análise da situação de saúde no SasiSUS. Brasília: MS; 2019.,33 Pontes ALC, Rego S, Garnelo L. O modelo de atenção diferenciada nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(10):3199-3210..

A SESAI executa ações através dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), ofertando ações e serviços da APS nas terras indígenas. O DSEI é responsável pela articulação da rede de saúde do SUS, tendo como fluxo para a resolutividade do cuidado em saúde os seguintes serviços de saúde: Posto de Saúde (PS), Polo Base de Saúde (PB), Casa de Saúde Indígena (CASAI) e Unidade de Referência em Saúde do SUS22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde indígena: análise da situação de saúde no SasiSUS. Brasília: MS; 2019.,33 Pontes ALC, Rego S, Garnelo L. O modelo de atenção diferenciada nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(10):3199-3210..

Sendo assim, a organização dos DSEI abrange diferentes níveis de resolutividade e articulação com o SUS em toda rede de saúde que o indígena é referenciado. A fim de prestar apoio para esse usuário encaminhado à rede de saúde, a CASAI foi criada para alojar o indígena e para realizar a articulação dos diferentes níveis de atenção11 Brasil. Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª ed. Brasília: MS, FUNASA; 2002..

Esta articulação entre os níveis de atenção requer uma boa comunicação e uma interação dinâmica para que uma melhor resolutividade, podendo esta ser avaliada sob dois aspectos: 1) Pela capacidade de atendimento da demanda dos usuários no serviço de saúde e; 2) No Sistema Único de Saúde, que se estende da consulta inicial até a solução do problema do usuário44 Turrini RNT, Lebrão ML, Cesar CLG. Resolutividade dos serviços de saúde por inquérito domiciliar: percepção do usuário. Cad Saude Publica 2008; 24 (3):663-674.

A resolutividade pode ser então analisada dependendo do avaliador ou do avaliado nos diversos níveis de atenção à saúde, e envolve diversos aspectos, tais como: a satisfação do usuário, tecnologias dos serviços de saúde, formação de recursos humanos, adesão do usuário ao tratamento, sistema articulado de referência e contrarreferência, acesso aos serviços, necessidades da população, aspectos culturais e socioeconômicos44 Turrini RNT, Lebrão ML, Cesar CLG. Resolutividade dos serviços de saúde por inquérito domiciliar: percepção do usuário. Cad Saude Publica 2008; 24 (3):663-674,55 Rosa RB, Pelegrini AHW, Lima MADS. Resolutividade da assistência e satisfação de usuários da Estratégia Saúde da Família. Rev Gaucha Enferm 2011; 32(2):345-351..

Portanto, analisar a resolutividade em uma unidade de referência para a saúde indígena no estado do Amazonas, além de essencial para a articulação dos serviços e para a melhoria da organização de saúde nessa região, trata-se de uma temática necessária e pouco explorada e que se pretende trabalhar neste artigo. Para isso, se faz necessário explorar as experiências do processo de trabalho dos profissionais de saúde, e identificar elementos essenciais que servem como facilitadores ou nós críticos para o alcance da resolutividade no SASI-SUS.

Método

Este é um estudo de caráter descritivo-qualitativo, realizado sob a luz da PNASPI11 Brasil. Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª ed. Brasília: MS, FUNASA; 2002. e a teoria hermenêutica crítica de Paul Ricoeur66 Missel M, Birkelund R. Ricoeur's narrative philosophy: A source of inspiration in critical hermeneutic health research. Nursing Philosophy 2020; 21:e12254.. Tal campo de estudo pressupõe que compreender as condições do modo de vida sempre envolve interpretar palavras e ações. Na visão de Ricoeur, explicar e compreender são processos dialéticos necessários na interpretação de textos, que não consistem somente na combinação de símbolos e estruturas explicáveis, mas requerem interpretação para serem compreendidos66 Missel M, Birkelund R. Ricoeur's narrative philosophy: A source of inspiration in critical hermeneutic health research. Nursing Philosophy 2020; 21:e12254..

O estudo abrangeu a investigação da dinâmica de trabalho de 18 profissionais de saúde e gestores que fazem parte da CASAI-Manaus e do DSEI-Manaus, com formações em diferentes áreas do conhecimento. Entre os entrevistados, seis eram indígenas pertencentes ao estado do Amazonas. Os entrevistados indígenas foram identificados na pesquisa como “EI” e os demais como “E”. As falas dos participantes foram mantidas na estrutura textual em que foram expressas nas entrevistas.

Entre os 18 entrevistados, apenas dois eram concursados pelo Ministério da Saúde (MS), e os demais foram contratados pela instituição filantrópica chamada “Missão Evangélica Caiuá”. A maior parte dos entrevistados era do corpo de enfermagem, pois esta é a área com o maior quantitativo de profissionais na CASAI-Manaus. A CASAI-Manaus fica situada na área rural na rodovia AM 010 - km 25, a 35 km do centro de Manaus.

Para explorar o objeto da pesquisa a partir das experiências de profissionais e gestores desse ponto de atuação, foi criado pelos pesquisadores um questionário com perguntas abertas e semiabertas sobre as vivências e os processos de trabalho desses atores. Como trata-se de uma pesquisa qualitativa, optou-se por seguir os critérios de confiabilidade propostos por Lincoln e Guba77 Lincoln Y, Guba EG. Naturalistic inquiry. Newbury Park: Sage; 1985. (Quadro 1).

Quadro 1
Critérios de confiabilidade.

A análise dos dados foi realizada através da análise temática guiada pelo trabalho de Max van Manen88 Van Manen M. Researching Lived Experience. In: Van Manen M. Human Science for an Action Sensitive Pedagogy. 2ª ed. New York: Routledge; 2016. p. 77-131., que propõe categorizar os principais achados do objeto estudado através das falas e percepções dos participantes do estudo. A análise dos dados incluiu as seguintes etapas:

A) Descrições escritas das experiências diretas dos participantes, transcritas das entrevistas gravadas. A transcrição foi realizada logo após as entrevistas, enquanto a experiência ainda estava vívida. Em seguida, foi realizada a leitura mais aprofundada das transcrições, posteriormente estruturadas em seções de descrições e histórias e, por fim, como frases e palavras.

B) As temáticas foram desenvolvidas a partir da leitura e releitura das transcrições, assim como também da reprodução dos áudios para que fosse garantido ao desenvolvimento da pesquisa o retorno à essência da experiência vivida.

C) Refletindo sobre temas essenciais: o pesquisador era estimulado pelo objeto em um sentido pleno e humano em que as superficialidades não eram permitidas99 Van Manen M. By the Light of Anecdote. Phenomenol Pedag 1989; 7:232-253.. Os temas desenvolvidos tornaram-se as estruturas centrais e significativas da experiência. No entanto, foi levado em consideração que a descrição era apenas uma possibilidade entre muitas para a interpretação da experiência humana, portanto os pesquisadores buscaram trabalhar suas mentes para que as descrições dos temas encontrados fossem potencialmente mais ricas ou profundas.

D) Escrever e reescrever: escrever na fenomenologia hermenêutica é uma atividade artística em que o autor, assim como o artista, vai e vem entre o todo e as partes99 Van Manen M. By the Light of Anecdote. Phenomenol Pedag 1989; 7:232-253.. É um processo que o todo é tão importante quanto cada uma das partes do fenômeno para finalizar numa peça trabalhada que reflita a assinatura pessoal do autor99 Van Manen M. By the Light of Anecdote. Phenomenol Pedag 1989; 7:232-253.. Assim, o ato de escrever aumenta a compreensão de mundo sobre a resolutividade. Neste sentido, eventos que não eram nítidos anteriormente tornaram-se mais aparentes a partir deste estudo.

Este estudo é parte do projeto de doutorado intitulado “Resolutividade dos problemas de saúde indígena em uma unidade de referência no estado do Amazonas”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas (CEP/UFAM) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) sob o parecer nº 4.356.413, respeitando assim normas éticas estabelecidas na Resolução 466/2012 e 304/2000 da CONEP (CAAE: 37321520.4.0000.5020).

Resultados e discussão

Foram identificados, no processo de trabalho dos profissionais e gestores da CASAI-Manaus, temas essenciais para a resolutividade no SASI-SUS. Desse modo, para o presente estudo, destacam-se quatro temas: cuidado cultural; educação permanente em saúde & educação em saúde; negociação & improviso; acolhimento & infraestrutura.

Tema 1: Cuidado Cultural

A PNASPI prevê a importância da sensibilidade cultural nas ações e serviços de saúde indígena, prevendo a atenção diferenciada na política de saúde para estes povos1010 Garnelo L, Sampaio SS, Pontes AL. Atenção diferenciada: a formação técnica de agentes indígenas de saúde do Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2019.. Menéndez1111 Menéndez E. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Cien Saude Colet 2003; 8(1):185-207. refere-se à existência de diversas formas de atenção e afirma que o pluralismo médico tem sido descartado. Nesse sentido, a coesão entre o saber tradicional e o biomédico é imprescindível para o cuidado na saúde indígena, permitindo um diálogo entre estes campos e a compreensão do processo saúde-doença, com respeito à diversidade cultural dos povos indígenas.

Nas entrevistas, relatos apresentaram uma relação importante acerca do uso da medicina tradicional e o tempo de chegada do paciente indígena a Manaus. A busca pela medicina tradicional na aldeia pode representar uma forma de valorizar os saberes tradicionais, bem como uma alternativa que facilita o acesso à resolução do problema de saúde em seu meio. Nessas entrevistas, percebeu-se que o indígena demora em aceitar o deslocamento até Manaus, pois este movimento pode estar relacionado com a insegurança do indígena em ir à capital, possivelmente pela sua preferência em estar perto de casa, da sua família e de suas atividades rotineiras, podendo ser este o último recurso escolhido pelo usuário. Porém, em situações de tratamento de pacientes oncológicos, essa conduta pode resultar no agravamento dos problemas de saúde desses usuários, como expresso por um dos profissionais entrevistados:

Nós temos muitos pacientes oncológicos [...] e eles as vezes chegam aqui já muito graves, porque eles preferem ainda fazer a estratégia cultural, fazer as pajelanças e quando vê que realmente não tem condições é que ele chega aqui, mas já com a doença muito avançada (E-15).

Na CASAI-Manaus, é oferecido um espaço denominado “KUMU” que se trata de um espaço físico nas dependências da instituição para a realização de práticas tradicionais, onde eram realizadas as pajelanças. Estas práticas ocorrem através do diálogo principalmente com a enfermagem, pois caso o paciente esteja com complicações nos pulmões, a prática da “fumaça” era orientada para que não fosse praticada, como relatado:

[...] antes do pajé realizar o ritual, que usava fumaça ou com algumas coisas, esse paciente era avaliado pela equipe de enfermagem e aí vinha com as restrições que ele podia e eu passava para o pajé (E-3).

Em Cuiabá, os serviços especializados garantem a prática de rituais indígenas, desde que seja solicitada sua realização ao DSEI. Porém, os rituais que envolvem fumaça não são permitidos, principalmente em pacientes com problemas respiratórios1212 Gomes SC, Esperidião MA. Acesso dos usuários indígenas aos serviços de saúde de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(5):e00132215.. Devido à pandemia, esse espaço para a realização da pajelança na CASAI-Manaus foi transformado em área de isolamento para a COVID-19, e as festividades ou exercício de práticas tradicionais foram interrompidas, comprometendo essas atividades culturais nesse período.

Porém, o uso de chás é rotineiro por parte dos usuários, pois o acesso é irrestrito a plantas nas dependências da CASAI. Havia um projeto para criação de uma horta no local, porém com a pandemia isto não foi possível de ser realizado a contento, como relatado a seguir: “[...] a gente tentou fazer uma hortinha com chá ali, mas ela não foi pra frente porque logo em seguida veio a Covid” (E-4). Esse reconhecimento das diferentes formas de atenção à saúde indígena permite unir saberes em vez de negar umas em função de outras, pois em nossas sociedades há diversos meios para resolver problemas de saúde1313 Schweickardt JC, Silva JMBF, Ahmadpour B. A Saúde indígena no contexto da interculturalidade no cotidiano do trabalho. In: Schweickardt JC, Silva JMBF, Ahmadpour B, organizadores. Saúde indígena: práticas e saberes por um diálogo intercultural. Porto Alegre: Rede Unida; 2020. p. 14-15..

Em relação à alimentação oferecida na CASAI-Manaus, este é um dos principais pontos negativos trazidos pelos usuários indígenas. Apesar de haver um profissional da área da nutrição e uma empresa terceirizada para ofertar uma alimentação que possa suprir as necessidades nutricionais, na perspectiva dos entrevistados, não há ressonância com os hábitos culturais dos usuários:

[...] o índio, ele chega aqui ele como um frango, come uma carne, mas sempre ele vai querer comer a comida que é da cultura dele, o peixe, né, por exemplo, de manhã é uma tapioca, é cará, batata, coisas que a gente sabe que o indígena come (EI-18).

Essa insatisfação também é vista em estudo realizado em Santarém-PA, em que relatos apontam que, diferentemente da CASAI, os indígenas na aldeia têm acesso à prática da pesca e da caça, podendo se “alimentar bem” segundo suas preferências dietéticas1414 Silva DM, Nascimento EHS, Santos LA, Martins NVN, Sousa MT, Figueira MCS. Dificuldades enfrentadas pelos indígenas durante a permanência em uma Casa de Saúde Indígena na região Amazônica/Brasil. Saude Soc 2016; 25(4):920-929.. Já em estudo realizado em Cuiabá, as instituições hospitalares ocasionalmente recorrem à CASAI da capital mato-grossense, caso seja necessária uma alimentação diferenciada do indígena internado1212 Gomes SC, Esperidião MA. Acesso dos usuários indígenas aos serviços de saúde de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(5):e00132215.. Nesse caso, a CASAI torna-se um local para o apoio à estrutura cultural e a uma assistência diferenciada para os povos indígenas na rede de saúde.

A presença de profissionais indígenas parece ser um facilitador para a comunicação e compreensão do processo saúde-doença dos diversos povos alojados na CASAI-Manaus, como destacado no depoimento a seguir:

[...] quando a gente é indígena, a gente tem a visão e a vontade de querer ajudar os parentes, pois a gente já conhece a vivência dele, a cultura, a dificuldade de se comunicar com quem não é indígena, então a gente tem a facilidade de ter um diálogo (EI-6).

Sendo assim, a presença dos profissionais indígenas na CASAI contribui para a comunicação entre os diversos atores envolvidos, pois esse processo vai além da tradução para a língua portuguesa. Este se manifesta também, no compartilhamento do contexto de saúde do indígena para os demais profissionais, e no esclarecimento para este usuário dos termos técnicos trazidos pelas instituições hospitalares.

Além disso, ao perguntar sobre a presença de um profissional intérprete na CASAI, destaca-se a contribuição desses profissionais indígenas: “Não tem um intérprete aqui, mas tem o indígena que acaba falando a língua base deles e acaba entendendo. Muitas vezes o colega aqui, o outro indígena entende e fala” (E-4). Porém, quando o profissional indígena não fala a língua, é realizada a solicitação do intérprete da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA): “[...] agora que a gente recebeu um paciente do Suruahá que é do Médio Purus e ele não falava português, aí veio o pessoal da FUNAI com eles e ficaram aqui na CASAI” (E-13).

Capacitações de cunho antropológico, que traga o contexto intercultural e especificidades das etnias indígenas, foram relatados pelos entrevistados como essenciais para a melhoria dos processos de trabalho e, consequentemente, para a resolutividade. Porém, o depoimento a seguir afirma que não estão mais sendo realizadas:

[...] a gente nunca mais teve capacitação para todo mundo. Tem alguns que não sabem a diferença de um índio para o outro. Porque cada etnia é diferente do outro (EI-10).

O saber no contexto da interculturalidade vai além de respeitar, tolerar ou reconhecer a diversidade, sendo este um processo de transformação política e social mais amplo da sociedade. Este é, portanto, um processo vivo, ativo e permanente de negociação1515 Diehl EE, Pellegrini MA. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cad Saude Publica 2014; 30(4):867-874..

A inserção de disciplinas específicas nos currículos acadêmicos de graduação na área da saúde, como a saúde indígena e/ou internato rural com foco na saúde indígena, pode melhorar a compreensão de futuros profissionais a respeito do trabalho do SASI-SUS. Um exemplo a ser apresentado trata-se da experiência de acadêmicos da área da enfermagem, que descrevem a vivência através do estágio em área indígena, como uma experiência ímpar e marcante para a formação, ressaltando a aprendizagem interdisciplinar para a compreensão do processo saúde-doença entre as populações indígenas1616 Silva NC, Gonçalves MJF, Lopes Neto D. Enfermagem em Saúde Indígena: aplicando as Diretrizes Curriculares. Rev Bras Enferm 2003; 56(4):388-391..

Tema 2: Educação Permanente em Saúde e Educação em Saúde

A Educação Permanente em Saúde (EPS) é essencial para a melhoria das ações e dos serviços de saúde à população, assim como para o diálogo intercultural e adequação das práticas sanitárias na saúde indígena1515 Diehl EE, Pellegrini MA. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cad Saude Publica 2014; 30(4):867-874.. A EPS deve compreender os aspectos pedagógicos, contemplando a aquisição ou atualização de conhecimentos e habilidades, levantar os problemas no processo de trabalho e buscar soluções conforme a realidade de cada contexto1717 Brasil. Portaria GM/MS nº 1.996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2007..

Os DSEI são os responsáveis em ofertar a capacitação aos profissionais que atuam na saúde indígena11 Brasil. Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª ed. Brasília: MS, FUNASA; 2002.. Desde o início da pandemia da COVID-19, uma série de notas técnicas para o enfrentamento da COVID-19 foi criada pela SESAI/MS e disponibilizada publicamente no site oficial do MS, bem como em diversos cursos online. Profissionais da CASAI-Manaus buscaram estar a par dessas notas técnicas e dessas capacitações:

Eu fiz umas capacitações via online que o DSEI recomendou pra gente, alguns sites, e eles também mandavam muita nota técnica (E-15).

Além da capacitação dos profissionais da CASAI, foi identificada entre os entrevistados, a necessidade de profissionais da rede do estado e usuários compreenderem o funcionamento do SASI-SUS. Percebe-se o desconhecimento do trabalho da CASAI, como no relato a seguir:

[...] muita gente tinha a visão de que a CASAI era um hospital, então que a gente tinha que resolver tudo dentro desse hospital, né. (E-2).

Vale destacar que a CASAI-Manaus possui uma ampla diversidade de profissionais de saúde, em sua maioria profissionais de enfermagem de nível técnico ou superior. Porém, não há profissionais médicos e nem dentistas no local, uma vez que se trata de um serviço de apoio aos pacientes encaminhados à rede do SUS, como definido pela PNASPI11 Brasil. Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª ed. Brasília: MS, FUNASA; 2002.. Ainda assim, a CASAI-Manaus abriga moradores que dependem de uma assistência prolongada, tais como os pacientes renais e oncológicos.

Portanto, a CASAI-Manaus não é considerada apenas como um local de apoio, mas para alguns trata-se de uma residência, como apresentado a seguir: “[...] às vezes as pessoas acham que aqui é só uma casa de apoio, mas não é, nós temos moradores” (E-13). Essa realidade apresenta a deficiência da oferta de serviços como hemodiálise em municípios fora da capital, fazendo com que seja necessário ao indígena residir na CASAI-Manaus quando precisa fazer tais tratamentos nas capitais.

Em relação à educação em saúde, que traduz nos indivíduos, em sua autonomia, terem o cuidado individual e coletivo, é uma atividade que deve ser incluída no processo de trabalho na CASAI, além da promoção de produção artesanal e lazer, tanto para os acompanhantes quanto para os pacientes que estejam em condições11 Brasil. Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª ed. Brasília: MS, FUNASA; 2002.,1818 Machado MFAS, Monteiro EMLM, Queiroz DT, Vieira NFC, Barroso MGT. Integralidade, formação de saúde, educação em saúde e as propostas do SUS: uma revisão conceitual. Cien Saude Colet 2007; 12(2):335-342.. Essas atividades são desenvolvidas principalmente pela psicologia, nutrição e serviço social na CASAI-Manaus. Porém, com a pandemia, a educação em saúde teve que ser modificada, como retratado neste depoimento:

Antes eu conseguia fazer palestras com o público todo, agora não, eu tenho que fazer por partes nos alojamentos, nas enfermarias (E-2).

Foi trazido, em relato, que atividades de educação em saúde na pandemia trouxeram resultados significativos acerca da compreensão dos usuários indígenas sobre a vacinação da COVID-19, entendendo a importância da imunização para o indivíduo e o coletivo. Tal atividade, conduzida pela psicóloga da CASAI, trouxe avanços para a promoção da saúde dos indígenas no contexto pandêmico, superando um dos desafios relatados por um dos entrevistados no quesito da vacinação contra a COVID-19 entre estes povos: as fakenews.

Tema 3: Negociação e Improviso

Algo que é rotineiro na dinâmica de trabalho dos profissionais da CASAI-Manaus diz respeito à arte de negociar e improvisar, entre outras coisas, materiais, medicamentos e encaixes de consultas para agilizar a situação do usuário indígena. O termo “negociação” aqui descrito pode ser o mesmo apresentado por Dias da Silva1919 Dias da Silva C. De Improvisos e Cuidados: a saúde indígena e o campo da enfermagem. In: Teixeira C, Garnelo L, organizadores. Saúde Indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 181-212. referente ao “improviso” nas ações e serviços de saúde indígena.

Para Dias da Silva1919 Dias da Silva C. De Improvisos e Cuidados: a saúde indígena e o campo da enfermagem. In: Teixeira C, Garnelo L, organizadores. Saúde Indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 181-212., o “improviso” poderia ser uma categoria negativa, apontando a precarização dos materiais ofertados pelo DSEI. Porém, em seu estudo, a autora apresenta a perspectiva dos profissionais sobre o assunto, na qual “o improviso era vivido como um valor capaz de afirmar suas identidades diferenciadas e estabelecer profícuas relações com os Munduruku e com enfermeiras”1919 Dias da Silva C. De Improvisos e Cuidados: a saúde indígena e o campo da enfermagem. In: Teixeira C, Garnelo L, organizadores. Saúde Indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 181-212..

Exemplo desse empenho são os medicamentos ofertados na CASAI, os disponíveis na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). Porém, há situações que os medicamentos necessários não se encontram nessa relação:

[...] nós recebemos esses pacientes da média e alta [complexidade] e consequentemente eles utilizam medicações, então as vezes não tem a medicação no RENAME e a farmacêutica tem que fazer permuta (E-13).

Além da prática de “permutas” de medicamentos, há situações que se faz necessária a compra de medicamentos, porém as condições financeiras desfavoráveis entre os indígenas estão entre os desafios enfrentados pela equipe de saúde e os usuários para o alcance da resolutividade. Desafios como esse são uma realidade encontrada entre as mais variadas etnias ao redor do mundo2020 King M, Smith A, Gracey M. Indigenous health part 2: the underlying causes of the health gap. Lancet 2009; 374(9683):76-85.. O relato a seguir apresenta o movimento da equipe da CASAI-Manaus na busca de resolver este desafio quanto a compra de medicamentos:

Quando a medicação é comprada, o próprio paciente compra, quando tem o dinheiro. Quando não tem [o dinheiro], às vezes, eu tiro do meu bolso, não só eu, tem alguns profissionais que ajudam, tiram do próprio bolso pra comprar as medicações pra ajudar (EI-16).

Outro grande desafio mencionado entre os entrevistados é a demora na marcação de consultas e exames, que depende da fila do Sistema de Regulação (SISREG) do SUS. Esta foi criada com o objetivo de organizar os fluxos assistenciais no âmbito do SUS, buscando maior resolubilidade e respostas adequadas aos problemas clínicos, além da satisfação do usuário2121 Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). A Regulação no SUS - Alguns conceitos [Internet]. [acessado 2022 maio 4]. Disponível em: https://www.conass.org.br/guiainformacao/a-regulacao-no-sus-alguns-conceitos/.
https://www.conass.org.br/guiainformacao...
. Porém, esse sistema não contém priorização para as populações indígenas, dificultando o processo de resolução do problema de saúde desses povos. Essa demora é uma realidade também enfrentada pelos usuários indígenas alojados na CASAI de Santarém, no Pará1414 Silva DM, Nascimento EHS, Santos LA, Martins NVN, Sousa MT, Figueira MCS. Dificuldades enfrentadas pelos indígenas durante a permanência em uma Casa de Saúde Indígena na região Amazônica/Brasil. Saude Soc 2016; 25(4):920-929..

Neste sentido, a equipe da CASAI-Manaus busca negociar o encaixe dos usuários indígenas para serem atendidos em um período menor, fazendo parte da dinâmica de trabalho desses atores, a arte da negociação para uma maior resolutividade na rede de atenção:

Tem várias dessas situações que a gente lida no dia a dia, que você vê que o paciente necessita de tratamento, mas tem essa fila toda do SUS, o serviço social daqui intervém, a gerente [de enfermagem] intervém, muitas vezes dá certo, mas as vezes continua demorando para o paciente começar o tratamento (E-13).

Os profissionais compreendem que é desafiador para o indígena aguardar a fila, pois o percurso para a resolutividade deste usuário é demorado. Este sai da aldeia, chega à capital, e se depara com o fluxo deste sistema para ser atendido:

Quando eu preciso de algo, mesmo tendo fluxo, eu ainda burlo o fluxo pelo quadro clínico (E-5).

Nas cidades, os povos indígenas não têm uma assistência ou uma atenção diferenciada como acontece nas aldeias, pois este subsistema ainda é uma especificidade para as populações aldeadas11 Brasil. Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª ed. Brasília: MS, FUNASA; 2002., e ao chegar aos centros urbanos estes são inseridos no mesmo fluxo dos não-indígenas.

No período pandêmico da COVID-19 houve prejuízos no quadro de profissionais, além de superlotação de usuários na CASAI-Manaus, sendo estes os principais fatores que ampliaram os desafios assistenciais, comprometendo a resolutividade dos problemas de saúde nesta instituição. A ausência de vagas em hospitais pela ocupação dos leitos por pacientes com COVID-19 em Manaus, resultou na necessidade de aumento do quadro funcional da CASAI para que esta fosse capaz de assistir e alojar todos os pacientes que tiveram suas consultas médicas canceladas.

Medidas foram tomadas para organização deste cenário: foi reformado um prédio da CASAI-Manaus, que foi destinado ao isolamento de pacientes da COVID-19, e foi cedido um espaço da escola pública ao lado desta unidade para o alojamento e tratamento dos indígenas. Profissionais tiveram que ser divididos, uns para atender exclusivamente pacientes com COVID-19, e outros para atender às demais demandas nas enfermarias e nos alojamentos.

Os pacientes que não eram crônicos, ou seja, que não dependiam de um tratamento prolongado, foram enviados de volta para suas casas, de modo a evitar aglomeração. Porém, à medida que a vacinação avançava e medidas protetivas foram inseridas, os encaminhamentos à rede do SUS foram normalizando, como relatado:

[...] como teve a questão da COVID foram suspensos todos os procedimentos, né. Ficou mesmo só o atendimento dos pacientes crônicos [...] Agora já retornou tudo de novo (E-11).

Neste sentido, os indígenas retornaram para suas aldeias, enfrentando outros desafios provocados pela COVID-19, na qual intensificou as iniquidades profundamente arraigadas entre essas populações2222 Santos RV, Pontes Al, Coimbra Jr CEA. Um "fato social total": Covid-19 e povos indígenas no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(10):1-5..

Tema 4: Acolhimento e Infraestrutura

O acolhimento refere-se a um pilar da Política Nacional de Humanização (PNH). Este pilar vai além da criação de um espaço de recepção e triagem: deve ser compreendido como diretriz ética/estética/política dos modos de se fazer saúde, incluindo trabalhar ferramentas tecnológicas de intervenção na escuta qualificada, construção de vínculos, garantia do acesso com responsabilização e resolutividade nos serviços2323 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2ª ed. Brasília: MS; 2006..

O acolhimento, como ação técnica-assistencial, permite a análise do processo de trabalho em saúde com foco nas relações2323 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2ª ed. Brasília: MS; 2006.. Neste sentido, um fator que merece destaque é a motivação e a escolha do profissional em trabalhar na saúde indígena, principalmente dos trabalhadores indígenas entrevistados. O olhar sensível pelas necessidades dos indígenas que são os usuários da CASAI, é retratado nas falas desses participantes:

Eu sempre falo aqui na CASAI com os colegas: trabalhar na saúde indígena você tem que gostar, principalmente, e tem que saber entender eles naquilo que estão precisando [...] querer trabalhar com os indígenas teria que ter a primeira coisa: gostar e saber se colocar no lugar deles (EI-18).

O MS propõe que, para o pleno alcance do acolhimento no tratamento do paciente assistido, requer-se uma escuta qualificada por parte dos profissionais de saúde, de modo a atender as reais necessidades dos usuários2424 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2ª ed. Brasília: MS; 2010.. Na CASAI-Manaus, a escuta qualificada é praticada em relato do profissional indígena:

Os pacientes querem repassar o que eles tão sentindo [...] muitas vezes a gente vira como psicólogo quando os pacientes precisam (EI-16).

Tanto os profissionais indígenas, quanto aqueles que abraçam a causa da saúde indígena na CASAI-Manaus, se empenham no diálogo intercultural, promovendo ações para alcançar a resolução dos problemas de saúde e se esforçando para garantir uma resposta satisfatória às demandas apresentadas.

Um fator encontrado na CASAI que difere quanto à realidade nas aldeias indígenas é a baixa rotatividade de profissionais de saúde. Tal cenário pode estar relacionado ao fato da CASAI-Manaus estar em um grande centro, facilitando o acesso a serviços essenciais, como também à jornada de trabalho, pois em muitas realidades o profissional que atua na EMSI passa dias em área indígena2525 Freitas FPP, Luna WF, Bastos LOA, Ávila BT. Experiências de médicos brasileiros em seus primeiros meses na Atenção Primária à Saúde na Terra Indígena Yanomami. Interface (Botucatu) 2021; 25:e200212.. A alta rotatividade dos profissionais nas EMSI nas aldeias é um dos fatores que desafiam a efetividade da PNASPI, refletindo negativamente na qualidade dos serviços nos territórios indígenas, na continuidade da assistência do cuidado, no reconhecimento das especificidades culturais e no fortalecimento de vínculos²66 Missel M, Birkelund R. Ricoeur's narrative philosophy: A source of inspiration in critical hermeneutic health research. Nursing Philosophy 2020; 21:e12254..

Em relação à infraestrutura, a CASAI-Manaus é composta por 16 setores, com capacidade de alojar pouco mais de 200 pacientes em enfermarias, isolamentos ou alojamentos2727 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Saúde Indígena. 3º Informe Anual (2020) da Casai de Saúde Indígena de Manaus. Brasília: MS; 2021.. Mesmo com essa estrutura física, a CASAI-Manaus acaba muitas vezes superlotando:

Aqui foi pensada só para Manaus [DSEI]. Só que a gente recebe de vários estados. Tem época que a gente não consegue, vem muita gente e os profissionais que estão aqui são poucos, é muita gente aqui [...] tem dia que tá superlotado (EI-9).

A falta da infraestrutura pode gerar insegurança quando os pacientes são encaminhados para os centros urbanos, como relatado por indígenas do DSEI Alto Rio Negro, pois mesmo com o apoio dos profissionais de saúde indígena, há um desconforto, sendo submetidos a condições precárias longe do seu lar2828 Pontes ALM, Garnelo L, Rego S. Reflexões sobre questões morais na relação de indígenas com os serviços de saúde. Rev Bioet 2014; 22(2):337-346.. Faz-se, portanto, essencial que a distribuição de recursos para a CASAI-Manaus seja compartilhada e dividida com os demais distritos do estado, para garantir melhor assistência às populações que necessitam deste espaço para a continuidade do cuidado em saúde.

Mesmo a CASAI-Manaus possuindo uma ampla infraestrutura, esta unidade também necessita de investimento e apoio dos demais DSEI, além de readaptar o espaço físico, a fim de suprir as necessidades dos usuários indígenas alojados, de modo a não desmotivá-los, evitando assim desistências ao tratamento de saúde.

Conclusão

A dinâmica de trabalho dos profissionais e gestores na CASAI-Manaus é realizada através de um conjunto de processos capazes de solucionar e compreender problemas de saúde que estão dentro do esperado no cenário da saúde indígena no estado do Amazonas, como também aqueles desafios que chegam sem avisar, tal como uma pandemia.

Enfim, a CASAI vai além de um alojamento, sendo um espaço de trocas de saberes entre quem cuida e quem é cuidado, uma escola de arte para produção de telas que reflete a prática da atenção diferenciada e um campo de negociação para oferecer melhores serviços para aqueles que estão distantes de suas casas. Além disso, a interconexão entre a APS e a rede de saúde do estado do Amazonas, exercida na dinâmica de trabalho da CASAI-Manaus, conduz uma complexa e sinfônica orquestra no processo da resolutividade da saúde indígena.

Dentre as limitações do presente estudo, apontam-se os seguintes fatos: 1) Não ter sido realizada a observação participante dos profissionais de saúde e gestores durante o processo de trabalho, pela coleta de dados ter sido realizado em meio a um período pandêmico e, 2) Não ter sido realizada entrevistas com trabalhadores da rede de saúde. Sendo assim, se sugere que futuros estudos possam realizar o acompanhamento destes trabalhadores para uma análise mais profunda no processo da resolutividade no SASI-SUS no estado do Amazonas.

Referências

  • 1
    Brasil. Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª ed. Brasília: MS, FUNASA; 2002.
  • 2
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde indígena: análise da situação de saúde no SasiSUS. Brasília: MS; 2019.
  • 3
    Pontes ALC, Rego S, Garnelo L. O modelo de atenção diferenciada nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(10):3199-3210.
  • 4
    Turrini RNT, Lebrão ML, Cesar CLG. Resolutividade dos serviços de saúde por inquérito domiciliar: percepção do usuário. Cad Saude Publica 2008; 24 (3):663-674
  • 5
    Rosa RB, Pelegrini AHW, Lima MADS. Resolutividade da assistência e satisfação de usuários da Estratégia Saúde da Família. Rev Gaucha Enferm 2011; 32(2):345-351.
  • 6
    Missel M, Birkelund R. Ricoeur's narrative philosophy: A source of inspiration in critical hermeneutic health research. Nursing Philosophy 2020; 21:e12254.
  • 7
    Lincoln Y, Guba EG. Naturalistic inquiry. Newbury Park: Sage; 1985.
  • 8
    Van Manen M. Researching Lived Experience. In: Van Manen M. Human Science for an Action Sensitive Pedagogy. 2ª ed. New York: Routledge; 2016. p. 77-131.
  • 9
    Van Manen M. By the Light of Anecdote. Phenomenol Pedag 1989; 7:232-253.
  • 10
    Garnelo L, Sampaio SS, Pontes AL. Atenção diferenciada: a formação técnica de agentes indígenas de saúde do Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2019.
  • 11
    Menéndez E. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Cien Saude Colet 2003; 8(1):185-207.
  • 12
    Gomes SC, Esperidião MA. Acesso dos usuários indígenas aos serviços de saúde de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(5):e00132215.
  • 13
    Schweickardt JC, Silva JMBF, Ahmadpour B. A Saúde indígena no contexto da interculturalidade no cotidiano do trabalho. In: Schweickardt JC, Silva JMBF, Ahmadpour B, organizadores. Saúde indígena: práticas e saberes por um diálogo intercultural. Porto Alegre: Rede Unida; 2020. p. 14-15.
  • 14
    Silva DM, Nascimento EHS, Santos LA, Martins NVN, Sousa MT, Figueira MCS. Dificuldades enfrentadas pelos indígenas durante a permanência em uma Casa de Saúde Indígena na região Amazônica/Brasil. Saude Soc 2016; 25(4):920-929.
  • 15
    Diehl EE, Pellegrini MA. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cad Saude Publica 2014; 30(4):867-874.
  • 16
    Silva NC, Gonçalves MJF, Lopes Neto D. Enfermagem em Saúde Indígena: aplicando as Diretrizes Curriculares. Rev Bras Enferm 2003; 56(4):388-391.
  • 17
    Brasil. Portaria GM/MS nº 1.996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2007.
  • 18
    Machado MFAS, Monteiro EMLM, Queiroz DT, Vieira NFC, Barroso MGT. Integralidade, formação de saúde, educação em saúde e as propostas do SUS: uma revisão conceitual. Cien Saude Colet 2007; 12(2):335-342.
  • 19
    Dias da Silva C. De Improvisos e Cuidados: a saúde indígena e o campo da enfermagem. In: Teixeira C, Garnelo L, organizadores. Saúde Indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 181-212.
  • 20
    King M, Smith A, Gracey M. Indigenous health part 2: the underlying causes of the health gap. Lancet 2009; 374(9683):76-85.
  • 21
    Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). A Regulação no SUS - Alguns conceitos [Internet]. [acessado 2022 maio 4]. Disponível em: https://www.conass.org.br/guiainformacao/a-regulacao-no-sus-alguns-conceitos/.
    » https://www.conass.org.br/guiainformacao/a-regulacao-no-sus-alguns-conceitos
  • 22
    Santos RV, Pontes Al, Coimbra Jr CEA. Um "fato social total": Covid-19 e povos indígenas no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(10):1-5.
  • 23
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2ª ed. Brasília: MS; 2006.
  • 24
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2ª ed. Brasília: MS; 2010.
  • 25
    Freitas FPP, Luna WF, Bastos LOA, Ávila BT. Experiências de médicos brasileiros em seus primeiros meses na Atenção Primária à Saúde na Terra Indígena Yanomami. Interface (Botucatu) 2021; 25:e200212.
  • 26
    Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2018; 42:e184.
  • 27
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Saúde Indígena. 3º Informe Anual (2020) da Casai de Saúde Indígena de Manaus. Brasília: MS; 2021.
  • 28
    Pontes ALM, Garnelo L, Rego S. Reflexões sobre questões morais na relação de indígenas com os serviços de saúde. Rev Bioet 2014; 22(2):337-346.

  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2022
  • Aceito
    10 Nov 2022
  • Publicado
    11 Nov 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br