PESQUISA

 

Distribuição etária do sarampo e vacinação: considerações sobre alguns dados do município do Rio de Janeiro

 

 

Paulo C.R. Barata; Maria do Carmo Leal

Escola Nacional de Saúde Pública — FIOCRUZ — Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

São apresentados alguns dados sobre a distribuição etária dos casos notificados de sarampo no Município do Rio de Janeiro entre 1964 e 1982, observando-se a modificação ocorrida nesta distribuição entre o período pré-vacinação e o período pós-vacinação. Estes dados são comparados com dados de alguns outros países e é feita uma breve discussão sobre a influência da vacinação na epidemiologia do sarampo.


ABSTRACT

Some data are presented on the age distribution of the reported cases of measles in the Município do Rio de Janeiro, Brazil, between 1964 and 1982, focusing on changes in this distribution between the prevaccination and postvaccination years. These data are compared with those of some other countries and a short discussion is made about the influence of vaccination on the epidemiology of measles.


 

 

INTRODUÇÃO

Neste trabalho apresentaremos alguns dados sobre a distribuição etária dos casos notificados de sarampo no Município do Rio de Janeiro entre 1964 e 1982, procurando ressaltar a modificação ocorrida nesta distribuição etária desde a introdução da vacinação anti-sarampo no município. Várias observações a este respeito têm sido feitas em diversos países, algumas das quais serão apresentadas no decorrer da discussão, procurando chamar a atenção do leitor para uma questão que parece se repetir em diversos lugares. A discussão compreenderá, ainda, uma breve revisão sobre os possíveis mecanismos e efeitos desta relação entre a vacinação, a distribuição etária e, de forma geral, a epidemiologia do sarampo, questões que têm sido já objeto de diversos estudos1,2,12 e que deveriam ser consideradas no planejamento e análise de programas de imunização.

 

MÉTODOS

Os dados referentes ao número de casos para o período 1964-1974 foram fornecidos pela Divisão de Fatos Vitais do Departamento de Análise de Dados da Secretaria de Estado de Saúde e Higiene do Rio de Janeiro, e os dados para o período 1975-1982, assim como o número de doses de vacina anti-sarampo aplicadas em menores de 1 ano foram fornecidos pela Divisão de Epidemiologia e Controle de Doenças da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.

A cobertura vacinal em menores de 1 ano foi calculada estimando-se a população de menores de 1 ano pelo método geométrico15, a partir das populações de 1970 e 1980 publicadas pelos Censos Demográficos do IBGE4,5.

 

RESULTADOS

Os Dados do Município do Rio de Janeiro

As tabelas 1 e 2 apresentam a distribuição etária dos casos notificados de sarampo no Município do Rio de Janeiro (população: 5.090.723 habitantes em 19805) em diversos períodos de tempo. Observa-se que, enquanto os períodos 1964-1967 e 1969-1972 têm uma distribuição bastante aproximada, a partir de 1973 a distribuição etária dos casos notificados vai sofrendo uma nítida modificação, com uma tendência a um aumento na idade média em que ocorrem os casos da doença.

 

 

 

 

Segundo informações (não publicadas) colhidas junto à Divisão de Epidemiologia e Controle de Doenças da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, a vacinação anti-sarampo no município começou, de forma experimental, em 1968, passando a ser realizada de forma regular apenas a partir de 1973. A tabela 3 mostra a cobertura vacinal estimada para os menores de 1 ano entre 1970 e 1982 (não se dispõe de dados sobre vacinação em menores de 1 ano para 1968 e 1969). Pode-se observar que esta cobertura vacinal apresenta uma tendência crescente neste período, passando de 18,8% em 1973 para 76,8% em 1982.

 

 

Assim, das tabelas 1 e 2 vemos que, se antes da introdução da vacinação cerca de 25% dos casos notificados ocorriam em maiores de 5 anos, no período 1979-1982 tínhamos quase 50% dos casos notificados ocorrendo neste grupo etário. O grupo dos maiores de 15 anos, que representava no período 1969-1972 2,6% dos casos notificados, passou, no período 1979-1982, a incluir mais de 10% do total de casos notificados.

 

DISCUSSÃO

Existe, é claro, a possibilidade de que esta modificação na distribuição etária dos casos notificados de sarampo no Município do Rio de Janeiro seja o efeito de alguma mudança no sistema de notificação. Por exemplo, uma melhor notificação por parte das escolas contribuiria para um aumento da idade média dos casos notificados. Sabe-se que a notificação de sarampo no município era, e é ainda, bastante deficiente, Com base na igualdade que, na ausência de vacinação, deve aproximadamente haver entre o número médio anual de casos de sarampo e o número médio anual de nascimentos, estimamos que, no Município do Rio de Janeiro, cerca de 2% a 3% dos casos de sarampo eram notificados nos anos imediatamente anteriores ao início da vacinação. No período 1979-1982, quando a vacinação em menores de 1 ano foi em média de cerca de 65%, estimamos que cerca de 6% dos casos eram notificados. O conhecimento da distribuição etária real dos casos de sarampo que ocorrem no município exigiria a realização de estudos especiais.

No entanto, mudanças na idade em que ocorrem os casos de sarampo têm sido observadas também em outros países onde a vacinação tenha atingido níveis significativos.

Nos Estados Unidos, a vacinação anti-sarampo foi iniciada em 19636. Em 1980, 96% das crianças que entravam pela primeira vez na escola tinham prova de imunidade ao sarampo (atestado de vacinação ou atestado médico de que teve a doença)7. No período 1960-1964, anterior à vacinação, quando a notificação era estimada em cerca de 10%6, em quatro das 52 áreas de notificação do país (New York City, District of Columbia, Illinois e Massachusetts) 37,2% dos casos notificados ocorreram em menores de 5 anos e 3,4% ocorreram em maiores de 15 anos8. No período 1976-1978, quando a notificação era estimada como sendo virtualmente completa6, em 45 áreas de notificação 15,5% dos casos notificados ocorreram em menores de 5 anos e 23,7% ocorreram em maiores de 15 anos6. Esta mudança na distribuição etária ocorria juntamente com uma queda no número total de casos notificados no país, que passou de cerca de 438.000 no período 1960-19648 para cerca de 42.000 no período 1976-19786.

Na Inglaterra, incluindo Gales, o programa nacional de imunização foi iniciado em 19682, e a cobertura vacinal manteve-se desde então praticamente estável em cerca de 50% dos nascidos de cada ano3. É estimado que cerca de 60% dos casos de sarampo eram notificados no período anterior à vacinação, tendo este percentual se mantido no período posterior ao início da vacinação2. O número médio anual de casos notificados passou de cerca de 385.000 no período 1965-1968 para cerca de 124.000 no período 1975-19782. A idade média dos casos notificados passou de cerca de 4,5 anos em 1968 para cerca de 5,5 anos no período 1978-198.03, tendo havido assim uma reversão na discreta tendência decrescente da idade média dos casos notificados observada entre 1958 e 19682,3.

No Simpósio Internacional sobre Imunização contra o Sarampo, realizado em Washington, D.C., U.S.A., em março de 19821 foram apresentados relatos, com informações mais ou menos completas, sobre a ocorrência de modificações na estrutura etária dos casos notificados de sarampo em outros países, como Canadá, Polônia, Inglaterra, China e Tcheco-Eslováquia.

É claro que estas alterações na distribuição etária dos casos de sarampo estão relacionadas ao fato de se estar vacinando principalmente crianças, o que faz com que diminua o número de suscetíveis e, portanto, o número de casos da doença, nos grupos etários cobertos pela vacinação. Em conseqüência, os casos que ocorrem em jovens e adultos passam a representar um percentual maior do total de casos notificados.

No entanto, além da proteção conferida aos indivíduos vacinados, a vacinação produz um outro efeito, qual seja a diminuição do nível de transmissão do vírus do sarampo na comunidade, o que possibilita um certo nível de proteção mesmo àquelas pessoas não vacinadas. Se uma criança não vacinada está cercada, na sua vizinhança, na escola, etc., por outras crianças já imunizadas em relação ao sarampo, a probabilidade de que ela venha a contrair a doença será menor. Este efeito, o chamado efeito de proteção indireta da vacinação, fará com que, em média, uma pessoa não vacinada leve mais tempo até encontrar o agente da doença, o que fará com que ocorra um aumento na idade média em que o sarampo é contraído, aumento que será tanto maior quanto maior for o nível de cobertura vacinal da comunidade. Para uma discussão mais detalhada sobre o efeito de proteção indireta proporcionado pela vacinação, ou sobre a assim chamada imunidade de grupo (herd immunity, em inglês), e suas implicações na epidemiologia e no controle do sarampo, veja as referências1,2,12.

Uma outra conseqüência da redução do nível de transmissão do sarampo causada por um programa de vacinação que não chegasse a erradicar a doença seria um acúmulo de pessoas chegando à idade adulta sem terem tido contato, natural ou via vacinação — que, além de tudo, não é 100% eficaz — com o sarampo, o que abriria mesmo a possibilidade de epidemias de sarampo em adultos. Um outro fator que poderia contribuir para esta possibilidade seria a perda da imunidade induzida pela vacina, questão em relação à qual existe divergência entre diversos autores: enquanto alguns estudos sugerem que a proteção proporcionada pela vacina é duradoura10,19, outros trabalhos, com observações de casos de sarampo em pessoas previamente vacinadas com vacina de vírus atenuado, indicam a possibilidade de perda da imunidade induzida pela vacina11,20. Surtos de sarampo em adolescentes e adultos, incluindo pessoas previamente vacinadas, têm sido documentados nos Estados Unidos9,20. Na Inglaterra, um estudo realizado por Fine e Clarkson2 encontrou evidências de estar havendo na população uma proporção crescente de adultos suscetíveis ao sarampo.

Estas alterações no padrão etário do sarampo poderiam ter algumas conseqüências de relevância na epidemiologia da doença. Existem evidências, na Inglaterra13 e nos Estados Unidos14 , de um aumento com a idade do risco de encefalite devida ao sarampo. Um aumento da idade média dos casos de sarampo poderia ainda causar um aumento do risco da ocorrência da doença durante a gravidez. Existem evidências, nos Estados Unidos18, de um aumento da freqüência de prematuridade e de baixo peso ao nascer como um efeito do sarampo durante a gravidez. Um estudo realizado na Groenlândia16 encontrou um alto risco de morte fetal e de malformações congênitas em mulheres infectadas com o sarampo no primeiro trimestre de gravidez. Por outro lado, a ocorrência do sarampo durante a gravidez em mulheres ainda suscetíveis à doença — conforme foi discutido anteriormente, um aumento da proporção de adultos suscetíveis seria um possível efeito de um programa de vacinação — resultaria no nascimento de crianças sem a proteção de anticorpos maternos, tendo a possibilidade de contrair o sarampo com muito pouca idade, com os conhecidos riscos que isto acarretaria.

Quanto à possibilidade de prevenção do sarampo pela vacinação de adultos, existem, nos Estados Unidos9, indicações de que a vacinação em adultos pode apresentar uma maior incidência de reações, como febre, exantema e outras.

A discussão apresentada sugere que as alterações na composição etária dos casos de sarampo no Município do Rio de Janeiro sejam um fenômeno real, devido possivelmente à introdução da vacinação no município. Um programa de vacinação criteriosamente planejado pode inegavelmente trazer benefícios significativos, com a redução da morbidade e da mortalidade devidas ao sarampo. No entanto, os dados apresentados, do Município do Rio de Janeiro e de outros países, assim como os argumentos teóricos e os diversos estudos mencionados na discussão, indicam que os efeitos da vacinação sobre a epidemiologia desta doença devem ser acompanhados com atenção. No Brasil, em particular, os dados sobre a incidência do sarampo e sobre a incidência de suas complicações são notoriamente precários, existindo a necessidade de melhoria do sistema de notificação e da realização de estudos especiais que permitissem um melhor conhecimento da epidemiologia desta doença. Um país como a Tcheco-Eslováquia realiza anualmente um inquérito sorológico em uma amostra da população entre 0 e 19 anos, como uma forma de avaliar o próprio programa nacional de imunização17. Deve-se notar ainda que as características clínico-epidemiológicas do sarampo, inclusive os efeitos da vacinação, podem variar de país para país, de região para região, dependendo de hábitos sociais, situação nutricional da população, etc., o que torna clara a necessidade de estudos locais quanto ao comportamento desta virose.

Finalmente, os dados e a discussão apresentados sugerem que a vacinação, além de atuar sobre o indivíduo, representa uma intervenção sobre um sistema ecológico vírus-homem-ambiente que tem suas próprias leis e seus próprios pontos de equilíbrio. A eficácia desta intervenção irá depender do conhecimento que se tenha deste sistema e dos dados disponíveis sobre a sua situação a cada momento.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Dra. Rosalina Jorge Koifman, Chefe da Divisão de Epidemiologia e Controle de Doenças da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, pelos dados colocados a nossa disposição e, especialmente, por todo o apoio que nos deu no estudo deste aspecto da epidemiologia do sarampo. Agradecemos também ao Dr. Luiz Carlos Ferreiro Lait, Chefe da Divisão de Fatos Vitais do Departamento de Análise de Dados da Secretaria de Estado de Saúde e Higiene do Rio de Janeiro, pelos dados fornecidos para este trabalho.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Rev. Infect. Dis., vol. 5 (3), 1983.

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