ARTIGO

 

Educação, participação, urbanização: uma contribuição à análise histórica das propostas institucionais para as favelas do Rio de Janeiro, 1941-1980

 

 

Victor Vincent Valla

Escola Nacional de Saúde Pública — FIOCRUZ, Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Por quase meio século, instituições governamentais e religiosas vêm implementando programas técnico-administrativos e educacionais nas favelas do Rio de Janeiro. A análise que se desenvolve desses programas mostra que, embora os contextos históricos possam variar, há fortes semelhanças na maneira em que estas instituições se vêem e na maneira que vêem suas relações com as populações das favelas. A análise é desenvolvida utilizando-se categorias tais como urbanização, participação, responsabilidade, moral e cidadania.


ABSTRACT

For almost half a century, governmental and religious institutions have been implementing technical-administrative and educational programs in the favelas of Rio de Janeiro. An analysis of these programs demonstrates that, although the historical contexts may vary, there is a striking similarity in the way these institutions view themselves and their relations with the favela populations. The analysis is developed utilizing categories such as urbanization, participation, responsability, moral and citizenship.


 

 

INTRODUÇÃO

A origem desse trabalho é a investigação intitulada Para uma formulação teórica da educação extra-escolar no Brasil: educação, ideologia e as favelas do Rio de Janeiro, 1930-1980. Essa pesquisa visava a dois objetivos: contribuir para a compreensão histórica do fenômeno "favela" na cidade do Rio de Janeiro e, no interior desse objetivo, procurar entender as múltiplas intervenções de instituições governamentais e religiosas nas favelas durante o período compreendido.

No trabalho que segue pretendemos nos deter em uma discussão das várias propostas desenvolvidas por essas instituições com respeito às favelas e seus moradores. É nossa hipótese de que essas propostas tendem a reproduzir um discurso cujos componentes principais se assemelham, independente do período em questão. Acreditamos que há presente nessas propostas, além do seu conteúdo técnico-administrativo, uma concepção implícita de história, tanto quanto uma postura com relação às necessidades educacionais dessas populações. Como conseqüência dessas concepções de história e educação, há definições implícitas de conceitos tais como urbanização, participação, responsabilidade, moral e cidadania.

 

AS PROPOSTAS INSTITUCIONAIS

O Relatório Moura, 1940

Em novembro de 1940, Dr. Vitor Tavares de Moura, diretor do Albergue da Boa Vontade, apresenta ao Secretário-Geral de Saúde do Governo Henrique Dodsworth um plano para o estudo e solução do problema das favelas. O estudo de Moura é baseado na premissa de que faltam os dados corretos para chegar a uma solução. Daí a grande preocupação no relatório, com dados os mais detalhados e mais precisos possíveis. Nesse relatório, quando chega a prever o trabalho prático que deveria ser executado, sugere os locais para construir casas "modestas e higiênicas": aquelas áreas muito pouco habitadas que separam os bairros entre si. Isto enfeitará tais zonas e depois, com a evolução da cidade, acontecerá como em todas as grandes cidades do mundo, os tipos de casas modestas irão dando lugar a melhor construção, enquanto que os mais humildes se encaminharão para a periferia da cidade.

Em 1941, a Comissão sugerida por Moura para estudar a solução das favelas entrega o seu relatório, contendo sugestões preventivas e realizadoras. A ação preventiva sugere: "a) o controle de entrada no Rio de Janeiro de indivíduos de baixa condição social; b) o recâmbio de indivíduos de tal condição para os seus Estados de origem; c) a fiscalização severa quanto às leis que proíbem a construção e reconstrução de casebres; d) a fiscalização dos indivíduos acolhidos pelas instituições de amparo; e) promover forte campanha de reeducação social entre os moradores das favelas, de modo a corrigir hábitos pessoais de uns e incentivar a escolha de melhor moradia". Quanto à ação realizadora, sugere: "Casas provisórias, pelo menos do tipo mínimo permitido pela lei, serão imediatamente construídas e para elas transferidos os moradores dos casebres, tendo em vista as suas condições de saúde, de trabalho e de defesa contra a varíola, difteria, doenças do grupo colitífico, além de inspeção torácica e apurações de conduta social"8.

Os Parques Proletários, 1942

Em 1942, o Dr. Moura, numa palestra na Academia Carioca de Letras, anuncia que, dentro em breve, as casas populares serão ocupadas. O governo inicia a concretização de um plano que eventualmente deveria abrigar mais de 300.000 habitantes. A primeira favela removida é a do Largo da Memória (parte da Praia do Pinto). Formando um abrigo provisório para os operários que construíram o canal da Avenida Visconde de Albuquerque, a Favela do Largo da Memória se consolidou com novas obras, tais como o Estádio do Flamengo. Dos 300 barracos dessa favela construídos nos terrenos da Prefeitura, apenas 13 foram alugados, havendo poucos moradores desempregados7.

No mesmo mês, esse primeiro grupo de casas recebe o nome de Parque Proletário da Gávea ou Parque no 1 e, logo depois, foi inaugurado o Parque Proletário no 2, no Caju, e um terceiro, no Leblon. Pouco mais de 4.000 pessoas foram abrigadas nesses três conjuntos: 2.500 na Gávea, oriundas do Largo da Memória, Olaria e Capinzol; 720 no Caju, oriundas de um terreno da Central do Brasil; 3.800 no Leblon, ex-moradores da Favela do Jockey Clube, mais famílias dos pracinhas que lutavam na Itália7.

Fundação Leão XIII, 1947

Entra em cena neste momento a Igreja Católica, que até então assistia os moradores de favelas apenas localizadamente, através das paróquias. Encabeçado por D. Jaime de Barros Câmara, um setor expressivo na Igreja preocupado com os avanços dos comunistas nas favelas procura as autoridades federais, propondo a criação de uma Fundação que atuasse nas favelas. O Governo Federal encampa a idéia: "É necessário subir o morro, antes que dele desçam os comunistas"10.

A finalidade declarada da instituição em seus estatutos era de "dar assistência material e moral aos habitantes dos morros e favelas do Rio de Janeiro". Para operacionalizar esta proposta, a Fundação Leão XIII propôs-se a manter ''escolas, ambulatórios, creches, maternidades, cozinhas e vilas populares"5.

Cruzada São Sebastião, 1955

Ainda sob a presidência do Sr. João Café Filho (1955), surge da parte da Igreja, mais precisamente do então bispo auxiliar, D. Helder Câmara, uma nova proposta para o equacionamento do problema das favelas. A construção do conjunto habitacional do Leblon foi o empreendimento mais significativo da Cruzada.

Colocando lado a lado as finalidades declaradas nos Estatutos da Fundação Leão XIII e a Cruzada São Sebastião, evidenciam-se algumas mudanças. Na primeira, a finalidade era dar assistência material e moral à população favelada, através da manutenção de escolas, ambulatórios, creches, maternidades, cozinhas e vilas populares. Já na segunda, a finalidade perseguida era "dar solução racional, humana e cristã ao problema das favelas do Rio de Janeiro". Para tanto, traçou como objetivo desenvolver "uma ação educativa de humanização e cristianização no sentido comunitário, partindo da urbanização como condição mínima de vivência humana e elevação moral, intelectual, social e econômica"3.

O Relatório SAGMACS, 1958

O estudo Aspectos Humanos da Favela Carioca, uma análise sócio-econômica elaborada pela Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (SAGMACS), foi encomendado pelo Estado de São Paulo, levou dois anos para ser concluído e foi efetuado por uma equipe de mais de 20 técnicos. Publicado no próprio Estado de São Paulo, em abril de 1960, como suplemento especial, teve sua orientação imprimida principalmente pelo Padre Louis Joseph Lebret e José Arthur Rios, com a colaboração de Carlos Alberto de Medina.

SERFHA, 1958

Propõe o Relatório SAGMACS, nas suas recomendações, que seja formulada uma política mais flexível em relação às favelas, onde o SERFHA (Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas) seria o órgão naturalmente indicado para implementá-la.

Quase coincidindo com a criação da Cruzada São Sebastião, o governo do Distrito Federal instituiu o SERFHA, nos fins do ano de 1956. Inicialmente sem recursos, o SERFHA funcionou, na realidade, apenas apoiando iniciativas da Fundação Leão XIII e da Cruzada São Sebastião.

Ação Comunitária do Brasil (ACB), 1967

De certa forma, a Ação Comunitária do Brasil (ACB) é parte da concretização da proposta do desenvolvimento comunitário da USAID, nas favelas do Rio de Janeiro.

Esta instituição é filial da Acción Internacional, fundada em Nova Iorque, em 1965, atuando em vários países das Américas, inclusive nos Estados Unidos. A própria ACB se define como "uma entidade fundada e dirigida por empresários, organizada em moldes empresariais e patrocinada pelo comércio e pela indústria. Seu objetivo é criar o espírito de auto-ajuda entre os favelados e capacitá-los para a solução dos seus problemas com esforço próprio. Para isso, utiliza técnicos treinados dentro de uma metodologia apropriada, para motivar e assessorar a execução pelos favelados de projetos comunitários"1.

CHISAM, 1968

Em 1968 foi criada, a nível federal, a Coordenadoria da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM), responsável pelas grandes remoções de moradores até 1973. Subordinada ao Ministério do Interior e ao BNH, a CHISAM foi justificada através da idéia de que as favelas constituem um problema nacional.

A CHISAM detalhou as razões para a sua criação: 1) a população favelada era alienada da sociedade por causa da sua habitação; 2) a população favelada não tem os benefícios de serviços porque não paga impostos; 3) a família favelada necessitaria de uma reabilitação social, moral, econômica e sanitária; 4) é necessária a integração dos moradores à comunidade, não somente no modo de habitar, mas também no modo de pensar e viver; 5) é necessário alterar o panorama urbano deformado.

Administração do Prefeito Klabin, 1979

O Prefeito Israel Klabin, assessorado pelo Secretário Marcos Candau, da SDS (Secretaria de Desenvolvimento Social), desde o início da sua administração, deu uma ênfase toda especial às favelas. A equipe da Secretaria realizou um estudo sobre o problema: Diretrizes para o Estabelecimento de uma Política de Ação para as Favelas do Município do Rio de Janeiro.

O texto direciona-se no sentido de realizar uma afirmação ousada, em se tratando de um órgão oficial: critica violentamente não apenas o caráter autoritário das políticas anteriores, como toda a legislação que rege essas comunidades, taxando-as de coibidoras e denunciando a incapacidade, ou melhor, a incompetência de qualquer um dos órgãos responsáveis para tratar o assunto.

Secretaria Municipal de Obras, FEEMA/COMLURB, 1979

"Klabin inaugura esquema de coleta de lixo nas favelas. Na limpeza de seis. . (favelas) entre a Avenida Brasil e a Baía de Guanabara, foram utilizados 300 garis e 12 caminhões, que retiraram várias toneladas de lixo. Através de campanhas educativas, que utilizarão filmes e cartazes, além de palestras, a Secretaria Municipal de Obras e a FEEMA pretendem conscientizar os favelados para o problema da sujeira"6.

"Continua recolhimento de lixo na favela da Rocinha".

Engenheiros da COMLURB, comentando o pessimismo dos moradores em relação à eficiência da limpeza, lembraram que o plano da Prefeitura inclui também orientação da comunidade favelada sobre como manter limpo o local. Isso é feito com apresentação de slides e esclarecimentos sobre as más conseqüências do acúmulo de lixo e da falta de saneamento em geral2.

PROMORAR e Projeto Rio, 1979

O Ministério do Interior, através do Ministro Andreazza, anuncia o PROMORAR, demonstrando que o governo federal também estava preocupado e atento ao problema habitacional. O PROMORAR (Programa de Erradicação de Favelas), aprovado pelo Presidente da República em 28.06. 79, visa a solucionar o problema das habitações sub-humanas, as favelas e as palafitas, urbanizando-as quando possível, e erradicando-as, quando for "caso perdido", foram palavras textuais do Ministro, ao anunciar o projeto.

O projeto se inicia pela região da Maré, no Rio de Janeiro, estendendo-se posteriormente a outras capitais. Ficou conhecido como o Projeto Rio e teve amplíssima divulgação na imprensa, principalmente a lida pela classe média, Jornal do Brasil e O Globo2,6.

Administração do Prefeito Júlio Coutinho, 1980

Em maio de 1980, houve a demissão de Israel Klabin e, um mês após, a demissão de Candau e sua equipe. No dia 04.06.80 o novo prefeito, Júlio Coutinho, assume. Por essa época, o projeto SDM/UNICEF (iniciado na gestão de Klabin) estava em pleno andamento e, de acordo com o documento Propostas para Ação nas Favelas Cariocas9, de autoria do grupo de trabalho UNICEF/SDM, a continuidade do processo estava garantida.

 

1940-1980: PROPOSTAS DIFERENTES, IDEOLOGIA COMUM

Independente do período da sua formulação, as propostas institucionais para as favelas tendem a ver a favela a partir das mesmas categorias, embora os objetivos de cada proposta fossem diferentes. A partir das categorias, "Responsabilidade/Moral", "Relatórios/Estudos", "Educação", "Urbanização" e "Participação", oferecemos uma análise das propostas acima descritas.

Responsabilidade/Moral

"O povo, quando bem orientado, tem capacidade de resolver seus problemas", mas é necessário "dar às populações faveladas o sentido moral da vida e criar-lhes o senso de responsabilidade"4 "O sentimento de independência, o senso de responsabilidade seriam passos importantes para a educação dos favelados"10. Vinte anos depois da publicação do relatório SAGMACS, o grupo de trabalho, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social/UNICEF9, notou que "a formalização de tarefas comunitárias permitirá estabelecer a responsabilidade local".

Nos Parques Proletários, o administrador "falava num microfone aos moradores sobre acontecimentos do dia e aproveitava a oportunidade para as lições morais que eram necessárias". Poucos anos depois, a Fundação Leão XIII especificou sua finalidade como sendo a de "dar assistência material e moral aos habitantes dos morros e favelas do Rio de Janeiro".4 A Cruzada São Sebastião propôs "uma ação educativa de humanização e cristianização no sentido comunitário, partindo da urbanização como condição mínima de vivência humana e elevação moral, intelectual, social e econômica". Seus assistentes sociais "procuravam conscientizar moradores acerca do 'valor moral e social do Conselho de Moradores' ". No Decálogo dos Cavalheiros de São Sebastião, o primeiro mandamento é: "Palavra de homem é uma só".5 No relatório SAGMACS, Dr. Geraldo Moreira, então Secretário da Agricultura do Governo Negrão de Lima, declarou que "o papel das autoridades é esse: orientar e dar apoio moral a essa gente, dar-lhe responsabilidade moral".10 O relatório da CHISAM explicou sua criação porque "a família favelada necessitaria de uma reabilitação social, moral, econômica e sanitária".

Relatórios/Estudos

Na medida em que a questão das favelas se tornava importante para os governos e outras instituições, apareciam relatórios e estudos fornecendo análises e soluções. Em 1940, o Dr. Vitor Tavares de Moura apresenta ao Secretário-Geral da Saúde do Governo Henrique Dodsworth um plano para o estudo e solução do problema das favelas. Em 1941, uma comissão escolhida por Moura elabora um relatório que sugere como acabar com as favelas. A Fundação Leão XIII, além dos seus muitos relatórios, pretendia chegar ao ponto de fazer um dossier verídico de cada favelado, cuja condição conhecida indicará os rumos que se devem dar à solução do problema que se quer resolver. Nos Parques Proletários, a exigência da carteira de identificação significava a existência de um fichamento detalhado dos moradores.

O Relatório SAGMACS levou dois anos para ser concluído e foi efetuado por uma equipe de mais de 20 técnicos. Mais de vinte anos depois, o documento Propostas para Ação nas Favelas Cariocas disseca praticamente a estrutura social da região, com um levantamento minucioso, que inclui fotografias da favela Rocinha, análise das condições de saneamento dos principais bairros e ruas, cadastramento sócio-econômico, condições de solo, tipologia das edificações, acesso a serviços como educação e saúde, levantamento das formas de organização social e das principais experiências de trabalho comunitário.

Educação

A Comissão que surgiu a partir da proposta de Vitor Moura propôs, no seu relatório, que se promovesse uma "forte campanha de reeducação social entre os moradores das favelas, de modo a corrigir hábitos pessoais de uns e incentivar a escolha de melhor moradia".8 Por sua vez, a Fundação Leão XIII achava necessário ganhar "a confiança dos favelados na base da educação social, com um seguro critério de sinceridade. Estabelecer no coração da favela um Centro Social que atenda às necessidades de saúde, educação". Assim, seria necessário que fosse planejada uma norma de reeducação e adaptação (...) com a disciplina, com o espírito de solidariedade e com o respeito às opiniões alheias. "O Serviço de Educação é a base sobre a qual repousa a Ação Social do CAS. Doenças, analfabetismo, ideologias exóticas, crimes, contravenções, prostituição, etc., são males de um povo que vem vivendo, anos a fio, sem o benefício de uma palavra esclarecedora e amiga que só a Escola, na sua mais alta concepção, pode dar"4.

Para o estudo do grupo SAGMACS, é na organização de "grupos auto-suficientes (que) radica-se todo o problema educacional".10 "Sente-se a grande falta de educação de adultos, não no sentido restrito, superando a analfabetização, mas no de adaptação dos favelados à vida urbana e nacional". Para a professora da escola Barreira do Vasco, "o problema das disciplinas é ter energia (...) Quando o aluno não sabe, pergunto a outro. Se este responde certo, tem direito de aplicar a palmatória naqueles que não souberam responder a pergunta".10 Os melhores alunos se entregaram ao crime, mas a professora não soube explicar por que.

Para aqueles que elaboraram o relatório da CHISAM, era "necessário a integração dos moradores à comunidade, não somente no modo de habitar, mas também no modo de pensar e viver".

O objetivo da Ação Comunitária do Brasil é "criar o espírito de auto-ajuda entre os favelados e capacitá-los para a solução dos seus problemas com esforço próprio". "Procura mostrar que, educando, tem-se condições de resolver seus próprios problemas".1

A questão do lixo e da limpeza é essencialmente uma questão de "campanhas educativas que utilizarão filmes e cartazes, além de palestras", diz a Secretaria Municipal de Obras e FEEMA, enquanto a COMLURB lembra que é uma questão de "orientação da comunidade favelada sobre como manter limpo o local".

O grupo de trabalho da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social/UNICEF lembra que o "planejamento de serviços básicos nas áreas de baixa renda deve dar ênfase a programas de Divulgação e Educação e deve incluir um componente educacional em todas as atividades técnicas".9

Urbanização

A Fundação Leão XIII considerava que seu programa pretendia "dar orientação prévia para a urbanização".4 A Cruzada São Sebastião, por sua vez, achava que a "urbanização (era) condição mínima de vivência humana e elevação moral, intelectual, social e econômica".5

Descrevendo as atividades da Fundação Leão XIII, no entanto, o grupo SAGMACS percebeu que, quando os moradores pensaram em "construir casas de alvenaria, seus líderes acabam aconselhando-os a não fazê-lo porque, se vier a urbanização da favela, pouco deverão aproveitar do material demolido, ao passo que, sendo seus barracos de tábuas, poderão aproveitá-las e construir novamente em outro lugar. A urbanização tornou-se uma espécie de bicho-papão do favelado".10

Os termos de acordo entre as Associações de moradores e a Coordenação dos Serviços Sociais incluem o item que diz: "Cooperar na urbanização da favela, recolhendo quaisquer contribuições dos residentes para a melhoria local, responsabilizando-se pela utilização de tais contribuições e submetendo-se à supervisão da coordenação".18

O grupo de assessoria do Secretário de Desenvolvimento Social, Marcos Candau, no seu documento que nunca foi reconhecido como oficial, nota que "os primeiros passos concretos nessa direção serão a legalização da propriedade de terra e a promulgação de legislação especial para as áreas faveladas no que toca ao uso e parcelamento do solo e às condições de edificação, sem o que nenhum programa de urbanização das referidas áreas será completo".9

Quase simultaneamente, o Governo Federal lançou seu programa PROMORAR que visava a solucionar o problema das habitações sub-humanas, as favelas e as palafitas, urbanizando-as quando possível, e erradicando-as, quando for "caso perdido".

Participação

A Fundação Leão XIII afirmava que "a participação do povo é sempre possível de ser obtida, através de organizações locais". Nesse sentido, achava que "as associações (de moradores) desenvolvem iniciativas capazes de mitigar, se não puder resolvê-los, os problemas que angustiam as famílias da favela". Assim, "a maneira mais acertada e possível de resolver o problema das favelas" seria com "o dinheiro e trabalho do povo".4 O objetivo dos encontros promovidos pela Cruzada São Sebastião era "o estudo em comum dos problemas do conjunto, necessidades e aspirações dos moradores, para, através daí, levá-los a descobrir os recursos ao seu alcance, (relacionando-os com as necessidades existentes), planejar a solução dos problemas e melhorias a empreender ou recursos a criar".5

O grupo SAGMACS achava que nem a Fundação Leão XIII, nem a Cruzada São Sebastião poderiam resolver a questão da favela, e que a solução "deve ser procurada pelo próprio favelado". Nesse sentido, deve-se "confiar a ele a tarefa de sua própria recuperação". As sociedades de melhoramentos que fossem desenvolvidas deveriam ser "imunes à influência política". Dessa maneira, as autoridades poderiam "delegar tarefas, desobrigando-se de encargos custosos e de reduzida eficácia".10

O documento SAGMACS chama a atenção para um ponto interessante nesse sentido: enquanto a Fundação Leão XIII oferecia cursos noturnos no Centro Social, de alfabetização de adultos e artesanato para adolescentes, os moradores construíam seus barracos para escapar à vigilância da Fundação, que proibia novas construções. Na medida que a vigilância da Fundação não permitia a construção de novos barracos, "os favelados recorreram aos políticos. Os demagogos organizaram associações para pleitear melhoramentos, na realidade para arregimentar eleitores".10 A Ação Comunitária do Brasil toca no mesmo assunto, quando diz que "as razões psicológicas da miséria, incentivadas pelos políticos desonestos (...) fazendo com que o favelado acostume-se a receber e não lutar".1

A Coordenação de Serviços Sociais, nos termos de acordo elaborado com as Associações, menciona o compromisso das Associações de Moradores: "Contribuir para a substituição progressiva dos barracos por construções mais adequadas e cooperar, através de mobilização de trabalho, para a realização de outros trabalhos de emergência na favela — Operação Auto-Ajuda (...) Impedir a construção de novos barracos, vindo, quando necessário, a esta coordenação para o apoio policial".10

A ACB se define como uma entidade fundada e dirigida por empresários cujo objetivo é criar o "espírito de auto-ajuda entre os favelados e capacitá-los para a solução dos seus problemas com esforço próprio, (...) a execução pelos favelados de projetos comunitários". Diz a ACB que "antes, os moradores, quando precisavam de alguma coisa, recorriam ao governo e ficavam esperando os benefícios que porventura lhes fossem dados".1

Finalmente, o grupo de trabalho da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social acentua a necessidade da participação da população, quando afirma que "o processo de desenvolvimento enfatiza o significado da participação na definição de necessidades específicas, na adaptação de recursos e na organização de esforço humano para servir tais necessidades". Como prova dessa afirmação, declara que a comunidade da Rocinha "tem comprovado sua capacidade de planejar, divulgar e levar a cabo programas comunitários de saúde (...) habilidade em levantar recursos externos e mobilizar recursos humanos locais". Sugere a formalização de tarefas comunitárias que "servirão para motivar participação mais ampla da comunidade e sua contribuição na resolução de questão locais".9

 

CONCLUSÕES

Foi intencional nossa proposta de não enfatizar as conjunturas dentro das quais surgem os projetos institucionais para as favelas. Procuramos colocar uma proposta depois da outra, com o intuito de demonstrar que, embora distintas, guardam uma unidade na sua relação uma com a outra. A pesquisa original desenvolveu as diferenças, isto é, procurou demonstrar que as propostas de Moura e dos Parques Proletários se relacionam mais com a da CHISAM, enquanto as da Fundação Leão XIII e da Cruzada São Sebastião se relacionam com as do período de 1979-1980. Pois, em períodos de fechamento político, as propostas tendem a ser mais autoritárias e ocorrem mais remoções, enquanto nos chamados períodos de "abertura", as propostas procuram desenvolver mais atividades de "educação" e "participação".

Na busca dessa unidade no discurso das instituições, reconhecemos também a direção de "mão única" das instituições para as populações faveladas, fazendo com que apareçam pouco as respostas dos moradores às propostas das instituições. Mesmo assim, acreditamos que o grande número de propostas (que somam muito mais do que aquelas que apresentamos) já demonstram uma dialética implícita, onde as instituições são obrigadas a criar novas propostas porque as velhas foram mal-aceitas (vide o exemplo da Fundação Leão XIII no Relatório SAGMACS).

Mas o que então seria esse discurso das instituições? Haveria, a nosso ver, nas várias propostas, uma postura implícita, de medo da desordem e do caos e a intenção de intervir a fim de reordenar o que seria "anormal". Haveria, da parte das instituições, a necessidade de "fazer alguma coisa", com o receio de que o problema fique fora do controle das autoridades. Embora poucos ainda aceitassem a velha imagem de "hordas de moradores de favelas invadindo a cidade", haveria, no íntimo das populações abastadas, o receio de que algo semelhante poderia acontecer.

O primeiro ponto a destacar no discurso institucional é a sua concepção implícita de História. De certa maneira, os discursos freqüentemente assumem uma postura que poderíamos chamar de "História Oficial" das favelas. Esta postura teria como seu ponto de partida o contato da instituição com os moradores. Dessa maneira, a "história" da favela teria seu início a partir do contato institucional, fazendo com que as possíveis "soluções" propostas pelas instituições sejam o eixo principal da discussão. Metodologicamente, então, a origem da favela é deslocada para o "presente" (o contato com a instituição), criando assim outras conseqüências.

Sem ter uma clareza de como se construiu a favela, há o contato com a "miséria", a "passividade", a "ociosidade", desencadeando, dessa forma, o discurso da responsabilidade e da moral: o que faltaria então é a responsabilidade, a moral, um discurso que acaba incluindo as propostas dos Parques Proletários até a da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social/UNICEF. Em suma, "bem orientados, com apoio moral, os moradores seriam capazes de resolver seus próprios problemas". Um raciocínio que ignora o fato de que, se alguém já estaria resolvendo seus próprios problenas, é o próprio morador da favela. Mas é um raciocínio que também ignora a obrigação e "responsabilidade" do Estado na solução da favela.

Uma vez desencadeado o discurso da "falta de responsabilidade e de moral", obrigatoriamente surge a necessidade de uma forma de ação, de "fazer alguma coisa". Aí a razão das muitas pesquisas e estudos que têm sido realizados, cada um na sua época, partindo do princípio de que falta uma análise mais precisa das favelas para poder dar uma solução.

A solução principal que se apresenta em quase todas as propostas é a da "educação". Quem não tem responsabilidade ou moral precisa se educar. Quem de nós já não ouviu o comentário de que "os problemas do Brasil passam pela educação do seu povo", "quando o povo tiver educação...". É interessante que, de todas as categorias destacadas, a da educação é a mais presente, da administração Dodsworth à administração Coutinho. Interessante também é o verbo "reeducar", significando que a população favelada já teve "educação" uma vez, mas "desaprendeu". Ensinar "autosuficiência", ganhar a confiança dos moradores, ensinar a "viver e pensar" são termos que implicitamente traduzem concepções de passividade e ociosidade. Assim, há pouca diferença entre "corrigir hábitos pessoais e incentivar a escolha de melhor moradia"8, e a "integração dos moradores à comunidade do modo de habitar, viver e pensar" (CHISAM, 1968). Na discussão da questão do lixo, subentende-se que há acúmulo de lixo nas favelas porque a população não foi esclarecida, educada. A questão do espaço físico, por exemplo, não é levantada como variável.

As categorias de "urbanização" e "participação" surgem nas propostas, a partir de 1947. São intimamente relacionadas, pois "a urbanização das favelas se consegue com a participação dos moradores". De todas as categorias destacadas nesse trabalho, a de urbanização é a mais importante. O termo "urbanização" suscita uma imagem técnica, de burocratas e tecnocratas, fazendo estudos de como dotar as favelas com a infra-estrutura urbana. Assim, dentro da perspectiva da "História Oficial" da favela, há uma postura de atividade, planejamento e iniciativa, que é a dos técnicos, e uma postura de passividade, falta de iniciativa e ociosidade, que é a dos moradores. A iniciativa de urbanizar as favelas, no entanto, historicamente pertence aos próprios moradores de favelas, como bem demonstra os casos do Largo da Memória e, especialmente, a Fundação Leão XIII e seus esforços de inicialmente impedir as melhorias e, mais tarde, de incentivar a proposta cooperativista na Barreira do Vasco.

Não é por acaso que os moradores de favelas, enquanto insistem na sua "urbanização", temem as propostas de "urbanização" que vêm das instituições. Se a urbanização era o bicho-papão no período de 1940-1950, continua sendo até hoje. E significativo que, no período de eleições de 1982, no Rio de Janeiro, os setores mais progressistas do movimento favelado criticaram as plataformas de todos os partidos, incluindo o PDT, PMDB e PT, por se terem colocado "pela urbanização das favelas": primeiro, porque propõem implicitamente que a "urbanização" começa e, segundo, porque não especificam quem controla a continuação do processo de urbanização. Bem que sabiam os moradores entrevistados pelo grupo SAGMACS, em 1958, que há, quase sempre, prejuízos para os moradores, quando as instituições falam em urbanização.

Historicamente, há resultados concretos a serem analisados: menos de 5.000 moradores abrigados nos Parques Proletários, apenas 790 famílias pela Cruzada São Sebastião, 100.000 removidos, com prejuízos, entre 1968-1973. Em cada caso, um grande estardalhaço na imprensa e uma pequena amostra como resultados. Não deixam de ser significativas duas imagens, separadas por um período de mais de quarenta anos: a dos Parques Proletários, onde "a diferença que os moradores encontraram entre a habitação original e a que lhes era oferecida era praticamente nenhuma" e a do Projeto Rio (1983), onde os móveis dos barracos não cabiam nos novos apartamentos dos conjuntos habitacionais. No primeiro caso, o projeto técnico das casas foi a única intervenção dos arquitetos em todo o plano, enquanto, no último, a surpresa dos técnicos do BNH ao verem que o espaço físico dos apartamentos não correspondia aos planos traçados por eles.

A categoria "participação" é parte integral da proposta de urbanização nos discursos das instituições e também conseqüência da "reeducação" proposta pelo mesmo discurso. Já o fato de ter lançado a idéia de "participação" revela uma imagem de uma população que "não participa". Novamente um corte no processo histórico, fazendo com que a história da favela comece com a intervenção das instituições. Assim, a ocupação de uma área abandonada, a construção do barraco, a busca da implantação de uma infra-estrutura urbana e a manutenção permanente desse empreendimento não são vistos como participação. A proposta do discurso institucional é, na realidade, o reconhecimento que as autoridades não pretendem dispor de recursos suficientes para solucionar a questão das favelas.

Assim, se formula o apelo permanente à formação de organizações locais, onde o próprio morador procure solucionar seus problemas com o seu próprio trabalho e dinheiro. Ou, como diz o Relatório SAGMACS: "delegar tarefas e se desobrigar de encargos custosos".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. AÇÃO comunitária. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 jun. 1969, supl. especial.        

2. CONTINUA recolhimento de lixo na favela da Rocinha. O Globo, Rio de Janeiro, 4 maio de 1979.        

3. CRUZADA São Sebastião: duas experiências de promoção humana. CONGRESSO BRASILEIRO DE SERVIÇO SOCIAL, 3. Rio de Janeiro, out. 1965. Anais. Rio de Janeiro, 1965.        

4. FUNDAÇÃO LEÃO XIII. Como trabalha a Fundação Leão XIII. Notas e relatórios de 1947 a 1954. Rio de Janeiro, 1955. p. 516.        

5. FUNDAÇÃO LEÃO XIII. Estatutos da Fundação Leão XIII: artigo 1o. Rio de Janeiro, 2 fev. 1947.        

6. KLABIN inaugura esquema de coleta de lixo nas favelas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 abr. 1979.        

7. KLEIMAN, Mauro. Acabar com as favelas: parques proletários provisórios uma intervenção na prática. R. Arquit., 2: 18, jun./ago. 1978.        

8. PARISSE, Luciano. Favelas do Rio de Janeiro: evolução, sentido. Rio de Janeiro, Cadernos do CENPHA, 5: 35, 1969.        

9. RIO DE JANEIRO (cidade). Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Proposta para ação nas favelas cariocas. Rio de Janeiro, 1980. p. 60.        

10. SOCIEDADE DE ANÁLISES GRÁFICAS E MECANOGRÁFICAS APLICADAS AOS COMPLEXOS SOCIAIS. Aspectos humanos da favela carioca. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 abr. 1960. p. 38, col. 4, supl. especial.        

 

 

Recebido para publicação em 05/09/84.

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