OPINIÃO

 

Risco de urbanização da febre amarela no Brasil

 

 

José T. Fiusa Lima

Fundação Universidade de Brasília — Brasília-DF

 

 

A Febre Amarela, doença cujo agente etiológico é um togavírus do grupo B, possui duas formas bem características de transmissão: a primeira, através da picada do mosquito Aedes aegypti, ocorre em áreas urbanas e a segunda, através de picadas de mosquitos de hábitos de hábitos silvestre do gênero Haemagogus e S. Cleropterius. No Brasil, a forma urbana da doença está erradicada desde 1942, tendo os últimos casos, em número de três, ocorrido em Sena Madureira, no Estado do Acre. Persiste, no entanto, a ocorrência da forma silvestre, uma vez que o vírus nas matas circula, predominantemente, entre os mosquitos e algumas espécies de macacos. O homem, ao penetrar na mata, sem a devida proteção conferida pela vacina, torna-se susceptível a contrair a doença. No período de 1970 a 1984 (Tabela 1), foram registrados no Brasil 272 casos, com uma letalidade de 77,2%. Nesta tabela, verifica-se que ocorreram duas epidemias: em 1973, com 70 casos, e em 1984, com 45 casos.

 

 

A persistência de casos de febre amarela silvestre não causaria preocupações às autoridades sanitárias, se não ocorresse um fato novo, a presença do Aedes aegypti em vários estados brasileiros e em dezenas de cidades, inclusive capitais como Rio e São Paulo. O vetor da forma urbana foi por duas vezes erradicado do país, em 1958 e em 1973. No entanto, a partir de 1976, começaram a ocorrer sucessivas reinfestações, a partir de países vizinhos da América Latina e mesmo da América do Norte, o que, associado à crônica falta de recursos para combatê-los, permitiu a expansão do vetor a extensas áreas do território nacional.

A ocorrência de casos silvestres da doença e a presença do vetor urbano fazem com que tenhamos de conviver com o risco da urbanização da doença, o que, caso venha a ocorrer, provocaria um verdadeiro retrocesso da Saúde Pública Brasileira.

 

CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS

A partir da compreensão e da análise dos fatos históricos ocorridos é que poderemos melhor entender aqueles fatores que determinam a estratégia de combate à doença em nosso país, e os resultados obtidos.

Odair Franco refere que a primeira epidemia da Febre Amarela registrada no Brasil ocorreu em 1685, no Recife, Pernambuco. Para se ter uma idéia da gravidade, apesar de não existir referência da população sob risco, o número de óbitos no período 25/12/1685 a 10/01/1686 foi de mais de 6005.

Naquele distante momento, desconhecia-se por completo a epidemiologia da doença, e as medidas recomendadas eram de "atacar a infecção do ar, purificando-o por meio de quarentena de fogo em todas as ruas". O regulamento para o controle das epidemias relacionava quatro títulos:

1) da limpeza das casas, ruas e praias;

2) dos que morreram da doença dos males;

3) do que se há de praticar nos navios que entram;

4) sobre o recolhimento dos escravos e demais mulheres de ambas estas povoações do Recife e Santo Antonio.

Estas recomendações ficaram fazendo parte da primeira campanha sanitária posta em prática oficialmente, no novo continente, para o combate à Febre Amarela.

No entanto, a passagem mais importante na história da Febre Amarela está relacionada aos trabalhos de Oswaldo Cruz, no início do século, no Rio de Janeiro, que se confundem com a própria história da Saúde Pública Brasileira. A atividade de Oswaldo Cruz tornou-o famoso não só por ter corretamente utilizado as informações epidemiológicas para combater a doença, mas, também, pela polêmica levantada pela imprensa, na época, e que por pouco não causou um mal maior ao tentar impedir as ações de profilaxia.

Oswaldo Cruz dividiu a cidade do Rio de Janeiro em "zonas", cujos limites eram ditados pela condensação de população, e nessas zonas se exercitava o pessoal da profilaxia, que tinha sido agrupado em duas grandes seções:

1) isolamento e expurgo;

2) polícia de focos.

À 1a seção competia remover para o hospital de isolamento, ou isolar em domicílios, os doentes, e fazer a purificação das habitações, no tocante a mosquitos.

A 2a seção — da política de focos — encarregava-se de visitar periodicamente os domicílios em toda a cidade, assim como lugares e logradouros públicos ou particulares, e destruir os mosquitos na fase larvária1.

Estas atividades tiveram início em 1903 e sofreram todo o tipo de pressões contra sua execução, principalmente através da imprensa. Em 1904, quando o Supremo Tribunal concedeu habeas-corpus, por inviolabilidade do lar, já havia ocorrido o decréscimo da febre amarela, de 469 óbitos no 1o semestre de 1903 para 39 em igual período de 1904; esta redução convenceu parte da imprensa das medidas corretas de profilaxia3.

Finalmente, deve ser referida a participação da Fundação Rockefeller nas atividades de combate à Febre Amarela no Brasil. Esta participação se deu sobretudo através do Dr. Fred Lowe Soper2, a partir de 1916, quando as primeiras tentativas de um acordo para o combate à Febre Amarela entre a Fundação Rockefeller e o Governo do Brasil foram rejeitadas, através de Carlos Chagas que, na ocasião, ocupava a função de Diretor de Saúde. Posteriormente, em 1923, foi firmado o acordo entre o Governo Brasileiro e a Fundação, o qual trouxe como conseqüência, ao longo dos anos, a definição de alguns pontos básicos de combate à doença:

1) opção pela estratégia de erradicação do Aedes aegypti no Brasil, opção essa que persiste até hoje;

2) desenvolvimento da vacina anti-amarílica da cepa 17D;

3) política continental, adotada posteriormente pela OPS de erradicar o mosquito das Américas (XI Conferência Sanitária Pan-Americana, 1942).

Cabem aqui alguns comentários sobre a participação da Fundação nas atividades de combate à febre amarela no Brasil. O início da colaboração não foi um fato isolado, mas decorrente de uma decisão política do governo norte-americano, explicitada de uma forma bastante clara na justificativa de apoio ao combate à malária: "60% de nossas importações provêm de, 40% de nossas exportações vão para países nos quais a malária é um problema. Um programa de erradicação da malária é um empreendimento dramático, que penetrará nas casas do povo e beneficiará política e economicamente os Estados Unidos"4.

Se a Fundação trouxe, com sua atuação, alguns benefícios, tais como a produção de vacina anti-amarílica no Brasil, também é verdade que, tanto em relação à Febre Amarela como à Malária, ao enfocar o problema sob a ótica quase que exclusivamente de combate ao vetor e de erradicação, deixou marcado uma forma de pensar e raciocinar extremamente pragmática, não levando em consideração as variáveis sociais e econômicas que têm um peso tão importante quanto às variáveis biológicas.

 

ESTRATÉGIA DO PROGRAMA

Como já foi referido anteriormente, a erradicação do Aedes aegypti está incorporada às ações de combate da Febre Amarela, com o objetivo de manter erradicada a forma urbana da doença. No entanto, na medida em que esta estratégia foi abandonada por vários países latino-americanos e inclusive os EUA, permitiu que, após sucessivas reinfestações no Brasil, a dispersão do A. aegypti atingisse 15 Estados e 2 Territórios, em dezenas de Municípios (Quadro 1). O Estado que apresentou maior número de infestações foi Sergipe, com 12 episódios (15,3% do total). Um dado importante, que mostra o risco de urbanização, está relacionado com o número de infestações em áreas próximas àquelas onde ocorre a Febre Amarela Silvestre, tais como Pará, Amapá, Mato Grosso do Sul e Roraima, com 22 episódios (28,3% do total). A extensão desta reinfestação torna hoje sua erradicação, a curto e médio prazo, improvável. Esta posição americana atual diverge daquela de William C. Gorgas, em 1916, no segundo Congresso Científico Pan-Americano, onde, como delegado oficial dos EUA, propunha a erradicação da Febre Amarela das Américas, através de eliminação de criadouros de A. aegypti.

 

 

Em anos mais recentes, os EUA2 abandonaram a política de erradicação. Essa posição pode ser melhor entendida pelas observações do anexo 1, uma cópia do "Aide Memoire" enviado pela Embaixada Americana ao Ministério da Saúde, em maio de 1984. Por que esta mudança? No nosso entender, ela decorre do fato de que, a partir do momento em que o risco da introdução da doença naquele país estava praticamente eliminado, não havia necessidade de que se estimulassem os demais países para a erradicação.

No entanto, dois fatores devem ser ressaltados. O primeiro é de que não só o Brasil como outros países latino-americanos possuem a forma silvestre da doença e estão sob constante ameaça de reintrodução, nas áreas infestadas por A. aegypti, da forma urbana da doença. Esta situação esteve a ponto de ocorrer em junho deste ano (1985), quando três pessoas provenientes do estado de Mato Grosso, onde adquiriram a forma silvestre, apresentaram os sintomas na cidade de Presidente Prudente, onde havia a presença de A. aegypti em alta densidade. Riscos como este poderão continuar a ocorrer. O segundo fator é a ocorrência de dengue, doença viral para a qual não existe vacina, e que tem causado várias epidemias nas Américas, sendo a mais grave a de Cuba, durante o ano de 1982, com milhares de casos de forma hemorrágica. O dengue também já foi detectado no Brasil, em 1982, na cidade de Boa Vista, Roraima, atingindo 25% da população.

Além da erradicação do A. aegypti, o programa atual tem os seguintes objetivos6 :

— vigilância entomológica, a fim de manter livres os Estados e Territórios não-infestados.

— vacinação sistemática dos habitantes de área endêmica da Febre Amarela Silvestre.

— diagnóstico precoce dos casos de Febre Amarela e Dengue.

 

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

Pelo que foi descrito, verificamos que a estratégia de erradicação teve uma influência marcada dos EUA, através da Fundação Rockefeller, e que nós absorvemos esta forma de atuação no combate à Febre Amarela no Brasil. Por outro lado, as condições, hoje, das grandes cidades, como o Rio de Janeiro, onde a infestação é elevada, tendo bairros com níveis superiores a 20% de infestação predial, não permite a mesma eficácia, tanto pela extensão das áreas a cobrir como pela insuficiência de recursos.

Em 1981, o Ministério da Saúde, através da SUCAM, enviou um Projeto à SEPLAN, prevendo a erradicação do mosquito de todas as áreas infestadas do Território Nacional, num prazo de 4 anos. A preços daquele ano, o custo total era de cerca de U$ 36,3 milhões de dólares. Infelizmente, as autoridades econômicas da época não aprovaram tais gastos7.

Entendemos que a questão da Febre Amarela no Brasil e de todos os aspectos que envolvem seu controle ou erradicação devem ser objeto de uma ampla discussão com sanitaristas e todos aqueles que, direta ou indiretamente, têm a ver com este problema. A partir de novos pontos de atuação que venham a ser definidos, acrescidos das atividades já desenvolvidas, novas ações poderão tomar mais eficaz o programa, evitando a urbanização da doença. Este deve ser o principal objetivo, pois, além de impedir que centenas ou milhares de pessoas venham a adoecer, estaríamos também resguardando a memória de grandes sanitaristas brasileiros como Oswaldo Cruz, Clementino Fraga e Adolpho Lutz, entre outros, que deram o melhor de suas vidas às causas da Saúde Pública.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. CRUZ, Oswaldo. Prophylaxia da febre amarela: memória: apresentada ao 4o Congresso Médico Latino-Americano. In: Opera omnia. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1972. p. 541-62.

2. DUFFY, John ed. Andanzas por el mundo de la salud: memorias de Fred Lowe Soper. Washington, OPAS, 1979. 387 p. (Publicación Científica, 355).

3. FRAGA, C. Vida e obra de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, José Olympio, 1972.

4. FRANCO-AGUDELO, Saul. Saúde e imperialismo: a ação antimalárica na América Latina e a Fundação Rockefeller. In: Textos de apoio. Rio de Janeiro, PEC/ENSP/ABRASCO, 1984. p. 101-31. Ciências Sociais, 2).

5. FRANCO, Odair. História da febre amarela no Brasil. Brasília, Ministério da Saúde, 1976.

6. SUPERINTENDÊNCIA DE CAMPANHAS DE SAÚDE PÚBLICA. O programa brasileiro de controle da febre amarela e dengue. Brasília, 1985. (mimeo).

7. SUPERINTENDÊNCIA DE CAMPANHAS DE SAÚDE PÚBLICA. Projeto especial de erradicação do Aedes Aegypti no Brasil Brasília, 1981. (mimeo).

 

 

Recebido para publicação em 18/09/85

 

 

ANEXO 1

AIDE MEMOIRE

We support the development and use of vaccines for vector-borne diseases such as yellow fever and dengue.

We support the use of the primary health care system and the self-help concept through education and individual action to remove breeding containers to effect a reduction in the Aedes Aegypti population in areas threatened by disease outbreaks.

Representatives of interested countries might review all aspects of the continental eradication concept from the standpoint of practical, permanent, and cost-effective actions for preventing disease under today's conditions.

Each country should use modern technology to determine vector population levels and relationships on a global basis. This would provide a basis for foci control and useful information on the source and relationship of Aedes Aegypti populations.

We do not believe that eradication of Aedes Aegypti is a pratical goal now.

Embassy of the United States of America, Brasilia, May 16, 1984.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br