PESQUISA

 

Isolamento do Histoplasma capsulatum de animais silvestres no município do Rio de Janeiro

 

 

Rosely Maria Zancopé-Oliveira; Bodo Wanke

Instituto Oswaldo Cruz, Departamento de Micologia. Rio de Janeiro — RJ

 

 


RESUMO

Em um estudo realizado em 103 animais silvestres capturados em Rio da Prata, região periurbana do município do Rio de Janeiro, Histoplasma capsulatum foi isolado de fígado e baço de um roedor Rattus rattus e de dois marsupials Metachirus opossum. Pela primeira vez se descreve a infecção naturalmente adquirida nesta espécie marsupial, popularmente conhecida como cuíca. Os animais infectados não apresentaram sintomas clínicos e alterações histopatológicas.


ABSTRACT

In a survey of 103 sylvatic animals captured from Rio da Prata a rural area situated near the city of Rio de Janeiro, Histoplasma capsulatum was isolated from liver and spleen of one rat Rattus rattus and two marsupials Metachirus opossum, commonly known as cuíca. The infected animals did not show any clinical symptoms or histopathological alterations. The fungus has not preiously been reported in the marsupial's specie.


 

 

INTRODUÇÃO

O isolamento do Histoplasma capsulatum de animais silvestres e domésticos naturalmente infectados tem sido utilizado como método complementar na determinação da distribuição geográfica da histoplasmose indicando a existência de fontes comuns de infecção aos homens e animais em determinada região.

Várias espécies de mamíferos pertencentes às ordens dos roedores, canídeos, felídeos, marsupiais e quirópteros são suscetíveis a esta infecção fúngica1,7,8, mas somente os quirópteros parecem participar ativamente no ciclo epidemiológico desta micose sistêmica, porque são suscetíveis à infecção, podendo disseminar o fungo de um local a outro14, além de adubarem os solos com suas fezes. Hoff & Bigler (1981), em recente revisão, demonstraram que, apesar de certas espécies participarem no ciclo do H. capsulatum como disseminadores ativos deste microorganismo no ambiente, não significa que todas as espécies de morcegos tenham histoplasmose ou sejam capazes de atuarem como disseminadores; com isso, a importância dos morcegos na dinâmica da transmissão da histoplasmose ainda não está totalmente esclarecida.

No Brasil, a histoplasmose em animais tem sido freqüentemente verificada através de estudos direcionados, tanto para a pesquisa do seu agente em animais domésticos e silvestres, como para a pesquisa de agentes de outras parasitoses, como Leishmaniose e doença de Chagas. Além de especies já conhecidas como suscetíveis ao H. capsulatum, foram encontradas outras nunca descritas na literatura médica, como o Proechimys dimidiatus16. Todas as espécies animais que foram encontradas naturalmente infectadas estão descritas em revisões feitas sobre a histoplasmose animal no Brasil16,17. Após estas revisões, Naiff et alii10 demonstraram quatro gambás Didelphis marsupialis e duas pacas Agouti paca infectados, capturados na região Amazônica.

Como contribuição para a determinação da distribuição geográfica da histoplasmose em nosso meio, os autores realizaram um estudo em animais silvestres capturados em região periurbana do município do Rio de Janeiro.

 

METODOLOGIA

Características geográficas da área de estudo

A área escolhida para o estudo é considerada periurbana por apresentar uma região com características exclusivamente rurais (Fig. 1) e uma região urbanizada (Fig. 2), conhecida como Rio da Prata. É considerada distrito periurbano do bairro de Campo Grande, XVII Região Administrativa do município do Rio de Janeiro, situando-se no centro do município, a oeste do maciço da Pedra Branca (Fig. 3), entre os paralelos 22°50' e 23o05' e os meridianos 43°35' e 43°20'.

 

 

 

 

 

 

Captura dos animais

A captura dos animais foi realizada durante 15 meses (maio de 1982 a outubro de 1983) em vários sítios residenciais da serra do Rio da Prata.

Foram utilizados dois tipos de armadilhas: 50 armadilhas de arame, com dimensões de 30cm x 11 cm x 9cm, com isca suspensa, para a captura de roedores de pequeno porte, e 5 armadilhas de madeira, com dimensões de 45cm x 30cm x 25cm, também com isca suspensa. Diferentes iscas foram utilizadas, escolhidas segundo as preferências alimentares dos marsupiais e roedores. Para a captura de marsupiais utilizou-se, principalmente, banana d'água, abóbora, aipim e ovos6, já para roedores, milho verde e milho de pipoca foram as iscas de escolha, além de pão com manteiga de amendoim9.

As armadilhas foram armadas em diferentes ambientes como fumas, bananais e capinzais, geralmente próximos a riachos e corredeiras, e peridomiciliarmente em barracões que servem de depósito de alimentos e de instrumentos utilizados na lavoura, em galinheiros e em pocilgas.

Para facilitar a observação e controle das armadilhas, foram utilizadas bandeirolas vermelhas de plástico, marcadas com o respectivo número da armadilha, presas a suportes de ferro (Fig. 4).

 

 

Procedimentos técnicos

Os animais foram levados vivos ao laboratório (Fig. 5) e necropsiados segundo as normas do Dissection Guides13. Todos foram submetidos a exames sorológico, micológico e histopatológico.

 

 

Estudo sorológico — A obtenção do sangue se deu através das vias cardíaca e intraorbital. O sangue total foi utilizado para a realização de esfregaço e gota espessa corados pelo Giemsa para posterior pesquisa de hemozoários, e o soro foi utilizado em teste sorológico específico para fungos, imunodifusão dupla em gel11. Todos os soros foram testados frente a extratos protéicos solúveis do H. capsulatum e Paracoccidioides brasiliensis e antígeno filtrado de Aspergillus fumigatus, produzidos no Instituto Oswaldo Cruz3.

Estudo micológico — Após a obtenção do sangue, os animais foram necropsiados e fragmentos de fígado, baço, pulmão e intestino foram retirados, semeados em tubo de ensaio contendo meio de Mycosel e Sabouraud e deixados à temperatura ambiente (25-30°C) durante 70 dias. Todos os órgãos restantes, excetuando o cérebro e aparelho gênito-urinário, foram extraídos e fixados em formalina tamponada neutra de Lillie.

O estudo das colônias desenvolvidas sobre os fragmentos de órgãos semeados foi realizado através da observação dos aspectos macro e micromorfológicos do fungo, Após a verificação do tipo de colônia (filamentosa ou leveduriforme) e observação da termotolerância, foram realizadas técnica de montagem em lâmina com lactofenol azul de algodão e técnica de cultivo em lâmina de Ridde12. Colonias termotolerantes, morfologicamente similares ao H. capsulatum, foram repicadas para Agar Infusão-Cérebro-Coração (BHI-Difco), acrescidas de 10 g/1 de glicose e 1 g/1 de L-cisteína4 em tubos posteriormente selados com parafina. Além disso, 108 células destas colônias foram inoculadas intraperitonealmente em hamsters dourados machos de 115g (Mesocrycetus auratus) para a verificação da patogenicidade da cepa isolada.

Estudo histopatológico — Os espécimens fixados foram preparados segundo técnicas rotineiramente utilizadas em histopatologia. Para a observação dos aspectos teciduais, as secções histológicas foram coradas pela Hematoxilina-Eosina (HE) e para evidenciação dos fungos foi empregada a coloração de Grocott, método de impregnação argêntica. Cortes histológicos dos animais de onde H. capsulatum foi isolado em cultura também foram corados pela reação do Ácido Periódico de Schiff (PAS).

 

RESULTADOS

Foram estudados 103 animais, incluindo 77 roedores, dos quais 12 ratos da cana Akodon arviculoides, 01 porco-espinho Coendou prehensilis, 18 ratos do milho Oryzomis eliurus, 02 ratazanas Rattus norvegicus e 44 ratos-pretos Rattus rattus; 24 marsupiais, dos quais 06 gambás Didelphis marsupialis e 18 cuicas Metachirus opossum. H. capsulatum foi isolado de 01 Rattus rattus e de 02 Metachirus opossum, identificados como cepas RP44, RP74 e RP93 (Tabela 1).

 

 

Todas as três cepas isoladas iniciaram seu crescimento entre 7 e 15 dias sobre fragmentos de fígado e baço, apresentando-se sob forma de colônia filamentosa (Fig. 6), sem elementos que caracterizassem a espécie. Após 2 a 3 dias do crescimento inicial, verificou-se, além de hifas septadas, macroconídios tuberculados e microconídios de paredes lisas (Fig. 7).

 

 

 

 

A observação da conversão da fase filamentosa à fase leveduriforme, que levaria ao diagnóstico final do H. capsulatum, não foi obtida em nenhuma das cepas, e a identificação final foi realizada por gentileza do Dr. Libero Ajello, na Division of Mycotic Diseases, Center for Disease Control, Atlanta, USA, através da técnica dos exoantígenos.

Todos os animais capturados apresentavam aspecto saudável, sem lesões macroscópicas que chamassem atenção. Não foram visualizados elementos fúngicos característicos em nenhum dos animais, inclusive naqueles de onde H. capsulatum foi isolado.

O estudo histopatológico dos hamsters experimentalmente infectados com as cepas isoladas evidenciou lesões que freqüentemente são observadas na histoplasmose humana. O fígado apresentou-se com granulomas epitelióides compostos por linfócitos, macrófagos, neutrófilos e raramente células gigantes do tipo de Langhans, sendo visualizadas, também, nas preparações com impregnação argêntica, várias células fúngicas de aspecto leveduriforme, sem brotamento, de tamanho uniforme.

Dos 103 animais, 61 (59,2%) foram estudados sorológicamente e não foram identificadas linhas de identidade em nenhum dos soros quando testados frente aos antígenos fúngicos (Tabela 2), sugerindo não haver doença em atividade na época de estudo destes animais.

 

 

DISCUSSÃO

A estreita relação existente entre o H. capsulatum e um determinado ambiente ecológico, tem sido demonstrada por diversos trabalhos apresentados na literatura mundial. Este fungo, como todo organismo vivo, é afetado diretamente por fatores físico-químicos e biológicos do meio ambiente, fenômeno condicionante, na maioria das vezes, de habitats próprios e muito restritos às diferentes espécies de seres vivos. Nesta situação, observa-se que o H. capsulatum é afetado por animais, plantas e microorganismos com os quais se relaciona com seu habitat natural, o solo, além de também estar condicionado a certos fatores inanimados como a umidade, temperatura, tipo de solo e substratos nutritivos disponíveis. Devido a essa estreita relação entre o ambiente e o parasita, a presença deste em uma determinada área geográfica pode ser averiguada através de seu isolamento do solo, ar ou água ou pela busca de pessoas ou animais infectados, indicando um contato prévio ou atual com o agente infectante.

A demonstração de três espécimes animais naturalmente infectados capturados na serra do Rio da Prata indicou-nos a existência de focos de solo contaminado no local, os quais foram posteriormente demonstrados através da pesquisa do H. capsulatum em seu ambiente natural17. Este resultado confirma o papel dos animais como marcadores geográficos da histoplasmose, permitindo, antes da realização de estudos das fontes de infecção e da população, a sugestão de que áreas que apresentam animais infectados sejam endêmicas de histoplasmose.

O isolamento do H. capsulatum de um roedor e dois marsupiais deve-se principalmente aos hábitos destes animais viverem em locais abrigados, como tocas e/ou ocos de árvores. O maior número de isolamento ocorrido nos marsupiais deve-se possivelmente ao fato destes animais não restringirem suas atividades a uma área particular, percorrendo grandes distâncias6, estando sujeitos, portanto, a maior contato com as fontes infectantes. Os roedores, por outro lado, têm seu habitat restrito normalmente às áreas peridomiciliares.

A análise conjunta dos resultados verificados através dos exames histopatológico e sorológico leva-nos a acreditar que a histoplasmose em animais silvestres desenvolve-se como uma infecção subclínica, mas sugere que testes diagnósticos mais sensíveis devam ser aplicados a estes estudos.

A reversibilidade da fase filamentosa à fase leveduriforme do H. capsulatum nas cepas isoladas foi difícil e laboriosa, corroborando dados da literatura mundial, indicando a necessidade de estudos mais aprofundados sobre os fatores participantes nesta reversão.

A presença de H. capsulatum em marsupiais tem sido freqüentemente demonstrada, principalmente em Didelphis marsupialis2,10 e Philander opossum15, mas ainda não foi descrita em marsupiais do gênero Metachirus. A demonstração de dois Metachirus opossum naturalmente infectados registra uma nova espécie suscetível ao H. capsulatum.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Dr. Libero Ajello pela identificação das cepas de H. capsulatum, ao Dr. Alexandre A. Alencar pela orientação nos estudos histopatológicos, ao Dr. Luís Edmundo Moojen pela classificação das espécies animais e ao Sr. Mauro de Medeiros Muniz pelo auxílio técnico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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3. FERREIRA DA CRUZ, M.F. A importância das técnicas de imunoprecipitação na triagem e no diagnóstico da paracoccidioidomicose, histoplasmose e aspergilose. Estudo em população hospitalar do Rio de Janeiro, 1984. (Tese de Mestrado — Instituto Oswaldo Cruz).        

4.GAUR, P.K. & LICHTWARDT, R.W. Comparative study of a new Chrysosporium species with Histoplasma capsulatum. Sabouraudia, 18:105-14,1980.        

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13. ROWETT, H.G.Q. Dissection Guides. III — The rat with notes on the mouse. 3a ed. London, John Murray, 1972. 64p.        

14. SHACKLETTE, M.H. et alii Histoplasma capsulatum recovered from bat tissues. Science, 135:1135, 1962.        

15. TAYLOR, R.L. & SHACKLETTE, M.H. Naturally acquired histoplasmosis in the mammals of the Panama Canal Zone. Am. J. Trop. Med. Hyg., 11:796-9,1962.        

16. WANKE, B. Histoplasmose. Estudo epidemiológico, clínico e experimental. Rio de Janeiro, 1985. (Tese de Doutorado — Faculdade de Medicina UFRJ).        

17. ZANCOPÉ-OLIVEIRA, R.M. Histoplasmose. Estudo epidemiológico em área periurbana do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1985. (Tese de Mestrado, Instituto Oswaldo Cruz).        

 

 

Recebido para publicação em 04/11/85.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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