EDITORIAL

 

A hora da verdade nas atividades de saneamento

 

 

Szachna Eliasz Cynamon

 

 

Considera-se hoje, como indiscutível, a influência das ações de saneamento sobre a saúde da população.

Nos seus múltiplos aspectos de abastecimento d'água, destino de dejetos e esgotos, lixo, habitação e sua proteção, drenagem entre outras, o saneamento, é um dos condicionantes da boa ou má saúde das populações e tem, por outro lado, influência direta sobre a qualidade de vida.

É bom lembrar que com as ações de saneamento só se conseguem resultados sanitários desejados quando as medidas para cada item de saneamento, água e esgoto, por exemplo, atingem toda uma população.

A fim de vencer o atraso histórico no campo do saneamento em que chegou o Brasil colocado em situação vexatória em relação a outros países da América Latina, o governo instituiu, em passado recente, no B.N.H. o PLANASA: Sistema financeiro do saneamento.

O plano se desenvolveu com seus méritos e seus defeitos. Partindo de uma concepção centralizadora, e tendo a experiência do passado indicado a dificuldade e precariedade de recursos para o setor como sendo os principais óbices, o PLANASA baseou-se num plano de financiamento com retorno dos investimentos pagos, com juros e correção monetária de modo a formar um fundo independente do erário público, e em estruturas estaduais baseadas em companhias estaduais de saneamento.

O plano desenvolveu-se em detrimento da autonomia municipal e ausência de participação comunitária, procurando absorver todo e qualquer sistema existente e no caso dos que ofereciam resistência opor-lhes todas as dificuldades até obrigá-los à adesão.

Arquitetado sobre as experiências anteriores, de falta e irregularidade de recursos necessários aos empreendimentos vindos dos orçamentos Federal, Estadual e Municipal, montou-se um esquema financeiro baseado na criação de fundos estaduais, os FAE, formados com dotações estaduais e financiamento do B.N.H. e com o retorno do pagamento dos empréstimos concedidos pelo fundo, acrescidos dos juros e correção monetária.

Na montagem do sistema foram instituídas em cada Estado as Empresas Estaduais de Saneamento com tendências nitidamente monopolistas. A condição imposta aos municípios para participar era a de arrendar os seus serviços às empresas estaduais, abdicando integralmente da sua autonomia e ingerência nos mesmos.

Durante as décadas de 70 e 80 a fórmula funcionou, com a implantação de estruturas estaduais, treinamento de pessoal, execução de montante elevado de obras, passando o programa como rolo compressor sobre tudo e sobre todos.

As estatísticas oficiais engrossavam a cada ano os resultados obtidos na execução de sistemas de água (em esgoto não se indicavam avanços) em direção ao alcance das metas estabelecidas.

Em relação aos programas de pequenas cidades, vilas, povoados, áreas periféricas e carentes, quando algum concorrente quisesse neles intervir ou quando a pressão política se tornou forte, tinham como resposta os famosos Pró: Pró isso, Pró aquilo.

Como complemento o sistema executivo alijou do mercado as pequenas e médias empresas.

O rolo compressor tentou passar por cima dos focos de resistência, materializados nos Serviços Autônomos de Água e Esgotos dos Municípios, SAAE que, junto com a Fundação SESP,resistiram bravamente.

O sistema de financiamento apresentou desde o início a sua contradição: seus fundos eram obtidos a partir dos depósitos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço dos empregados e das cadernetas de poupança, portanto originários da bolsa do povo. Com os recursos assim obtidos deveriam ser financiadas obras de liquidez de retorno, rendendo juros e correção monetária, portanto obras de custo de dinheiro caro.

Na realidade, o financiamento serviu para garantir os serviços destinados às classes mais favorecidas deixando de fora as áreas carentes.

Outro ponto importante é o fato da tarifa ter sido de início e, durante muitos anos, uniforme por Estado fixando-se o preço por metro cúbico de água consumida. Método extremamente injusto para o pequeno consumidor que, deste modo, subsidia os maiores consumidores, já que, quem gasta menos água por ex. 80 l/hab.-dia poder-se-ia contentar com um sistema menos avantajado próprio para 80 l/hab.-dia ao invés de ter que financiar sistema de 200 ou 300 l/hab.-dia para os que consomem mais e muito mais caros, pagando por um investimento maior e operação mais cara.

As tarifas de início e durante muito tempo não diferenciadas, segundo consumo, afastaram durante muito tempo o pequeno consumidor, tornando em conseqüência as tarifas mais caras.

Todo este quadro levou a que o súbito fechamento do B.N.H. não provocasse nenhuma reação de protesto por parte da população.

No momento continua a perplexidade diante do evento. A população não tem um endereço a quem se dirigir e projetos de vital importância para a população se encontram parados e sem definição e mais, sem fórmula alternativa de execução.

As empresas de saneamento, junto com o seu precioso acervo de recursos humanos, estão sendo sucateadas e nem por isso os serviços autônomos de água e esgotos, antagonistas do sistema PLANASA, estão sendo beneficiadas.

Qual seria a solução?

Entre outras colocam-se as seguintes questões:

  1. Em termos de política administrativa vincular de novo estas atividades à área da saúde?
  2. Como proceder quanto a um sistema de financiamento?

Experiência recente, anterior ao PLANASA, mostra que o casamento puro e simples das ações de saneamento com o Ministério da Saúde, se bem que do ponto de vista teórico possa parecer ideal e seria um passo definitivo para unificação tão sonhada da Saúde Pública, esbarra no terreno prático com o espírito corporativista do "medicalismo". Este espírito corporativista do "medicalismo", como de outras profissões, que por mais surpresa que possa parecer em pleno último quartel do séulo XX, permanece na realidade mais forte do que as amizades pessoais, a convergência ideológica e a sintonia política.

Os medicalistas, de um lado, desprezam a ação de saneamento e são exemplos de facciosismo profisional, a teimosia em resolver o problema de esquistossomose só com tratamento, e as diarréias infantis com reidratação. Por outro, pretendem mantê-la debaixo da bota do dominador. Só a mudança urgente desta mentalidade, poderá impedir maiores prejuízos à população e propiciar as condições de um trabalho em comum.

Ao lado de uma política de reaproximação e participação da população em todos os níveis de decisão da política e da escolha de soluções técnicas alternativas válidas; a quebra desta verdadeira guerra surda ou aparente deve cessar, mas só pode cessar, quando houver o respeito profissional mútuo, e que a ação de saúde comandada por profissionais habilitados se faça com o concurso de profissionais competentes para cada caso.

E só pode fazer parar o mal quando se o detecta e aponta e se age em sua direção.

A arte da engenharia sanitária não é, não pode, nem deve ser submissa, a não ser a profissionais de sua especialidade e ao povo para quem trabalha.

No plano financeiro é necessário recompor um sistema de financiamento: é na análise de erros ou insucessos e sucessos do passado que se vão buscar as bases da reformulação.

No passado o sistema de dotações orçamentárias mostrou-se inadequado pelo seu pequeno volume e ainda pela irregularidade na provisão de fundos. Também, o sistema de autofinanciamento, através dos FAE, contraditório como já se indicou, mostrou-se incapaz de receber os primeiros embates de um antagonismo político indo praticamente à guerra, devido ao alto custo financeiro do dinheiro e à inadimplência impune dos estados ao B.N.H.

A história mostra entre nós a necessidade de um sistema financeiro próprio. Pensamos na possibilidade de um sistema no qual se possa fugir ao alto custo financeiro, decorrente em parte do sistema inflacionário no qual se debate o país.

Cremos que restabelecida a confiança nos serviços de saneamento, com a participação popular nos diversos níveis, possa-se recorrer ao sistema de carnês com pagamento antecipado das cotas pelos usuários e simultaneamente pelas prefeituras.

As cotas mensais devem ser diferenciadas de acordo com faixas da população e o número de parcelas variável de acordo com o ingresso do usuário (10% da população paga em 1 ano a sua parte, 20% em 3 anos, 20% em 5 anos, 50% em 10-20 anos).

Tendo uma dupla fonte de ingressos: de um lado a prefeitura e do outro os usuários em número de parcelas escalonadas por faixa de população, prova-se que 80% do custo da obra pode ser obtido em até 3 anos, reduzindo o custo financeiro dos recursos, já que as obras levam mais ou menos 3 anos.

Finalmente, a reeducação dos serviços e dos recursos humanos, com boa formação técnica e sensibilização social, deverá ser o motor de qualquer nova política.

É a oportunidade que se apresenta de unificar e dinamizar as ações sobre a saúde, voltando o Saneamento a seu caráter de conteúdo Sanitário e Social, em benefício da população.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br