ANÁLISE

 

Uma Amazônia que não existe mais

 

 

Mario B. Aragão

Pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública

 

 

Cunha, Euclides da, Um paraíso perdido (Ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazônia). Rio de Janeiro: José Olímpio; Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos, da Cultura e do Desporto do Acre, 1986.

Em boa hora a Fundação do Acre resolveu reunir num mesmo volume todos os escritos de Euclides da Cunha sobre a Amazônia. "Contrastes e confrontos" e "A margem da história", dificilmente são encontrados e muitos documentos reunidos nesse livro, ainda estavam inéditos. Acresce notar que a Amazônia descrita por Euclides da Cunha é o atual Estado do Acre. O mais é o percurso a partir de Belém e a cidade de Manaus.

Assim como "o sertanejo é antes de tudo um forte" consagrou o nordestino, "terra ainda quente do Gênesis" caracteriza as margens do Amazonas, onde os sedimentos trazidos dos Andes vão, a cada enchente, construindo e, às vezes, destruindo as várzeas. Ou como diz Euclides: "Cada enchente que passa, é uma esponja molhada sobre um desenho mal feito: apaga, modifica ou transforma." Essa grande capacidade de construir frases dificulta a leitura, pois, o leitor fica na dúvida se presta atenção à forma ou ao conteúdo do texto. Em compensação, uma releitura é sempre um prazer.

Certas definições são perfeitas. Seringueiro: "Homem que trabalha para escravizar-se"; "Eterno hóspede dentro de sua própria casa." Sobre o povoamento: "Colonização à gandaia do Acre". Sobre a tomada do Acre: "100 mil sertanejos ou 100 mil ressuscitados, apareciam inesperadamente e repatriavam-se de um modo original e heróico; dilatando a pátria até os terrenos novos que tinham desvendado". Sobre a ocupação de terras virgens: "Toda aclimação é um plebiscito permanente em que o estrangeiro se elege para a vida. Nos trópicos é natural que o escrutínio biológico tenha um caráter gravíssimo". Como diz Leandro Tocantins na Introdução, "As páginas escritas por Euclides da Cunha sobre a natureza, o homem e a sociedade na Amazônia, em particular do Acre, não encontram paralelos na Literatura Brasileira".

Estávamos na época das ferrovias e ele propõe a construção de um estrada de ferro interligando os diversos rios, que não é mais do que a atual BR-364, que vai de Rondônia para o Acre. Na realidade os habitantes da região já faziam todo esse trajeto, passando de um rio para outro pelos varadouros.

No Acre de Euclides da Cunha a exploração do caucho já estava declinando. É que derrubavam as árvores para colher o máximo de látex. Hoje ela não existe mais. A borracha estava no apogeu e hoje em franco declínio. A rodovia abala o alicerce do seringal, que é o seu isolamento. Como o seringueiro pode vender algumas bolas de borracha para um caminhoneiro que passe, a escravidão vai chegando ao fim.

Na natureza as modificações também são sensíveis. Em 1952, quando conheci a Amazônia, impressionava a quantidade de aves vistas durante o dia e o número de jacarés que o farol da embarcação mostrava à noite. Entre 1974 e 1976, quando trabalhei na região, isso não era mais visto.

Da metade do livro em diante estão reunidos os seus relatórios e a sua correspondência, principalmente, como Barão do Rio Branco. Agora é outro escritor, não é mais o Euclides de "Os Sertões" ou de "Contrastes e Confrontos", é um técnico relatando apenas fatos, com um estilo da maior simplicidade. Chama a atenção, também, a objetividade das cartas. Esta parte é muito importante. Sem ela não se ficaria sabendo das dificuldades que tiveram que ser vencidas, para que a Expedição conseguisse chegar às cabeceiras do rio Purus, pelo leito do rio, numa época de máxima estiagem.

Ainda sob a emoção dessa narrativa maravilhosa, vem à mente uma terrível indagação. Será que a epopéia dos caboclos nordestinos, liderados por Plácido de Castro, na conquista do território, os inauditos esforços de Euclides da Cunha para conseguir fazer o reconhecimento geográfico e a competência diplomática do Barão do Rio Branco para legalizar a posse do Acre, terão um epílogo triste? Infelizmente é o que ainda estamos assistindo. Se não for posto um cobro na atual política de queimar a floresta para formar pasto, o Acre continuará a ser uma terra sem gente.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br