RESENHA/REVIEW

 

 

Fernando Dias de Avila-Pires

Bolsista do CNPq

 

 

O Tempo e a Ordem: sobre a Homeopatia. Ricardo Lafetá Novaes. São Paulo, Editora Cortez, 1989.

Ricardo Lafetá Novaes publicou, sob o título "O Tempo e a Ordem: sobre a Homeopatia", sua tese de doutorado, apresentada em 1986 ao Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, orientada por Sérgio Arouca. A obra, bem organizada e com boa apresentação gráfica, foi editada por Cortez, S. Paulo, em 1989.

Considerando a natureza histórica da análise feita das origens, evolução e fundamentação científica da homeopatia, seria desejável que o autor tivesse recorrido às fontes bibliográficas originais. A interpretação das idéias de Hahnemann esbarra na sua imprecisão, quase sempre agravada pelas traduções disponíveis. A Bibliografia ressente-se, também, da falta de referência às edições princeps. No caso da obra de Kent, por exemplo, os que não estão familiarizados com ela ficam em dificuldade para localizá-la na seqüência cronológica dos acontecimentos. A discussão sobre miasmas e contágio poderia ter sido ampliada de maneira a permitir uma visão mais aproximada da confusão conceitual reinante, especialmente no século XIX.

Esses pequenos senões não comprometem a estrutura do livro, que é de valor indiscutível para a análise científica e sociológica de uma prática médica — não chega a ser uma teoria — que ganha adeptos no Brasil enquanto os perde na Europa.

O autor inicia pela descrição dos primórdios da homeopatia no continente europeu, relata sua introdução no Brasil e traça a biografia de seus principais cultores de lá e de cá. Ressalta a formação profissional de Hahnemann, sua reduzida experiência clínica e sua crescente e justa insatisfação com os recursos terapêuticos disponíveis, em geral drásticos e pouco eficazes.

Novaes abordou a questão da existência de um "sistema oficial" entre nós e da discriminação da prática homeopática. Com apoio na documentação da época do segundo império, comprovou a condição de legalidade e legitimidade da sua prática e concluiu que, se o Estado não a transformou em "medicina oficial", nunca opôs obstáculos à sua prática e à formação acadêmica e profissional de homeopatas.

Ao analisar os fundamentos da homeopatia, Novaes resumiu os princípios do sistema:

1. A proposição de que similia similibus curantur, que não é de Hahnemann e sim da escola hipocrática, em oposição ao uso de medicamentos e tratamentos com propriedades ou características contrárias às das enfermidades e seus sintomas. De acordo com a concepção de Hahnemann, os remédios provocam no organismo as mesmas doenças que podem curar. Suas propriedades devem, portanto, ser testadas em indivíduos sadios. Questões éticas à parte, as dificuldades metodológicas levaram à conclusão de que o quinino, por exemplo, seria responsável por 1.140 manifestações distintas. Por outro lado, admitem os homeopatas que a ação dos medicamentos seria diferente do processo imunogênico das vacinas, pois em homeopatia empregam-se substâncias dissemelhantes, em diluições extremas.

2. A terapêutica homeopática visa estimular a "força vital" do organismo e permitir que o poder curativo da natureza atue no sentido de restabelecer o equilíbrio. Hahnemann comparava a força vital ao magnetismo e ao mesmerismo, em voga na sua época. Para ele, o poder terapêutico das diferentes substâncias dependeria de ação mecânica, conseguida pela agitação em um recipiente. A dinamização é obtida através de diluições sucessivas, e a ação seria tanto mais controlável e eficaz quanto menor a dose, ou seja, quanto maior a diluição, que vai além do número de Avogadro, quando sua presença deixa de ser detectável.

Em sua análise dos princípios, Novaes levanta questões e dúvidas importantes: "... o doente, portador de uma doença natural, ao se submeter a um tratamento homeopático, usando portanto uma medicação homeopática, passa a ter uma outra doença concomitante. ... Assim, no caso de uma prescrição incorreta, o doente passa a ter duas doenças: uma natural e uma artificial, induzida pelo médico."

Em seguida, questiona o processo pelo qual a suposta "força vital", perturbada por um agente morbígeno natural, reagiria de forma positiva com a introdução de um novo agente morbígeno, agora artificial. Ora, "por que reaje só a um dos dois estímulos de mesma natureza?".

A prática, limitada aos consultórios clínicos, nunca favoreceu o desenvolvimento da pesquisa, utilizando metodologia científica, nem o ensino. Novaes aponta as profundas divergências entre os médicos homeópatas no tocante à preparação dos medicamentos, especialmente quanto ao número de vezes que uma substancia deve ser agitada e quanto às doses prescritas. Como não se podem dosar substâncias em altas dinamizações, não se pode realizar um controle de qualidade dos medicamentos.

Novaes conclui que a proposta da homeopatia não é científica e que não tem consistência teórica. Se o efeito homeopático ocorre realmente, isso não está satisfatoriamente demonstrado.

Na apresentação, Amélia Cohn não resiste a apelo polêmico da obra, contida na afirmação de que a homeopatia é doutrinária e não uma proposta teórica.

A introdução já utiliza o método histórico para situar o leitor no tempo.

O primeiro capítulo inicia-se com a contribuição da Escola Hipocrática à medicina e prossegue com um apanhado da evolução das idéias e teorias, no mundo ocidental. Seria interessante comparar a homeopatia a certas práticas orientais, que se baseiam em dogmas análogos.

Segue-se uma biografia de Hahnemann, muito adequada para permitir avaliar-se sua possível contribuição médica.

Sob o título de Teoria e Doutrina, o autor discute o cerne de sua tese e coloca a questão que provocou o comentário da apresentadora sobre a posição da homeopatia.

O quinto e último capítulo aborda a introdução da homeopatia no Brasil, com uma análise bastante completa dos seus aspectos sociais e legais, concluindo pela afirmação de que, se não foi incorporada como prática oficial e institucionalizada pelos órgãos do governo, nada há que impeça sua aceitação pela livre escolha dos pacientes.

As referências bibliográficas restringem-se às obras e edições consultadas.

O sumário não traz os subtítulos e não há índice remissivo.

 

COMENTÁRIOS À MARGEM DO LIVRO DE NOVAES

Na virada do século XVIII a medicina, como as demais áreas do conhecimento, buscava organizar e sistematizar a grande quantidade de fatos descobertos e descritos nos séculos renascentistas, de contestação da formação escolástica. A análise objetiva da natureza, a descoberta de novos continentes, os relatos dos viajantes que circunavegavam o globo, produziram uma quantidade de informações novas, que exigiam a proposição de novas sínteses. O século XVIII foi o século dos sistemas — taxonômicos, químicos, clínicos, matemáticos, filosóficos — que tentavam refletir as leis da natureza. Na medicina, preponderou a ênfase na descrição minuciosa dos sintomas e da evolução da doença, desprezando-se a contribuição possível das "ciências auxiliares" como a química e a física. Abandonou-se a pesquisa das causas e dos processos. A terapêutica disponível era escassa e ineficiente, e a farmacologia ainda não havia nascido. Tratamentos brutais, sangrias desatadas, cirurgias a frio seguidas freqüentemente de choques ou sepsia eram comuns.

Hahnemann, escrevendo e praticando no século XIX, foi um produto intelectual do século XVIII. Desencantado com os recursos disponíveis, buscou criar um sistema, baseado nos princípios hipocráticos, desprezando a iatroquímica e iatrofísica então em voga.

O que procuramos interpretar, agora, é a popularidade da homeopatia no Brasil de hoje, quando declina no resto do mundo.

Levak (A caça às bruxas na Europa moderna. Campus, 1988), ao discutir a mesma questão com referência à superstição, conclui que "O ceticismo em relação ao sobrenatural é muito mais difícil de instilar nas pessoas do que a credulidade, e a maioria do clero e dos médicos provavelmente não estavam suficientemente confiantes em seus pontos de vista, céticos de base científica a ponto de organizar alguma espécie de ataque efetivo à credulidade e superstição das classes inferiores."

No caso da homeopatia, entre nós, sua popularidade não se limita às "classes inferiores", mas vigora em todas as camadas sociais. Além disso, vem surgindo uma tendência marcada de se admitirem técnicas e procedimentos eufemisticamente denominados de "alternativos", especialmente para as "classes inferiores".

Talvez se possa datar o início deste movimento dos anos seguintes à segunda Guerra Mundial. O movimento de contracultura optou pelo caminho mais fácil, desmascarando falsos ídolos, mas erigindo outros em seu lugar. Na sua onda vieram o naturalismo, o indianismo romântico, a admiração pelas religiões orientais, o interesse pelas espécies ameaçadas de extinção e as práticas médicas alternativas, tudo marcado pelo superficialismo das idéias e o dogmatismo das convicções. Nas últimas décadas, a imigração urbana criou problemas que os administradores não se encontravam capacitados a resolver. A medicina passou do sacerdócio para a burocracia, agora coletiva e despersonalizada. Despida de sua componente humanística e humanitária, restou-lhe a modernidade técnica, manejada de modo impessoal, por equipes de plantonistas. Equipamentos dispendiosos para diagnóstico e tratamento não se acham mais ao alcance dos consultórios particulares e das pequenas clínicas. Como resultado, a atenção pessoal e a confiança no "seu gerente de banco", no "seu agente de viagem" — alguém que o reconhece como indivíduo, que conhece suas necessidades e idiossincrasias — não existe mais nos serviços de atenção médica disponíveis à classe pobre e à classe média.

Um outro fator a considerar é o rápido progresso científico e tecnológico. É cada vez mais difícil para um leigo — aqui incluídos os colegas de outras especialidades — acompanhar os avanços em todas as áreas do conhecimento. Novidades tornam-se obsoletas em pouco tempo. As publicações especializadas distanciam-se das de divulgação, notoriamente fracas, no Brasil.

Sem contar com o apoio psicológico do médico de família, não é de admirar que o doente busque conforto na visão holística das práticas alternativas, onde o misticismo e o sobrenatural substituem a mística que cercava o antigo sacerdócio da prática médica. O sincretismo primário das idéias meio formadas, o espiritualismo dos ritos mágicos e as noções simplistas sobre a saúde e a doença se chocam com a frieza do atendimento hospitalar oficial.

Agrega-se a tudo isso o fato das universidades terem deixado de ser os centros onde se adquiria cultura para se tomarem meros laboratórios de treinamento profissional.

A decisão oficial de se adotarem e oferecerem à população, especialmente à sua parcela mais necessitada, clínicas de tratamentos "alternativos", merece uma análise mais cuidadosa. Como Novaes mostrou no caso da homeopatia, trata-se de adotar um sistema dogmático e não-científico, onde não haverá possibilidade de se emitirem laudos técnicos sobre a qualidade e a composição dos medicamentos receitados e utilizados.

A propalada instalação de hortos de plantas medicinais associados a hospitais, por sua vez, encerra problemas graves. Quem cuidará deles? Quem será responsável, em cada caso, pela identificação taxonômica das plantas utilizadas? Quem dosará as infusões, no caso de princípios ativos de pequena margem de segurança, aquém da qual é ineficaz e além da qual pode ser fatal?

É evidente que, se adotados os hortos medicinais, se-los-ão nos hospitais de periferia urbana, para atendimento de populações carentes. Ora, em sentença proferida em Leipzig, em 15 de março de 1820, Hahnemann foi proibido de prescrever ou distribuir qualquer medicamento seu a qualquer pessoa. Comenta Novaes que "Parcialmente confirmado pelo Governo da Saxônia, Hahnemann foi permitido prescrever os seus próprios remédios em caráter supletivo, isto é, nas cidades onde não houvesse boticários, casos de perigo iminente e ainda para atendimento dos pobres."

Não é de hoje, portanto, o desrespeito à condição humana medida pela posse de recursos financeiros. Não é essa a maneira do Estado encarar sua responsabilidade para com a saúde pública.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br