DEBATE/DEBATE

 

A erradicação da Poliomielite no contexto dos programas de imunização1

 

 

Apresentação — José Fernando VeraniI; Edição — Cristiane Schuch Pinto; José Fernando VeraniII

IPesquisador-assistente do Departamento de Epidemiologia, Ensp/Fiocruz
IIProfessora-auxiliar do Departamento de Epidemiologia, Ensp/Fiocruz

 

 


RESUMO

Este debate foi organizado pelo Departamento de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública e realizado em 28 de junho de 1989.
Foram debatidos os principais fatores e razões que conduziram à resolução da Assembléia Mundial de Saúde de erradicar a poliomielite do planeta.
Primeiramente, foi discutido, à luz das estratégias de dias nacionais de vacinação e da vacinação rotineira, o tremendo declínio na incidência de casos paralíticos devidos a infecção por poliovírus selvagem, como resultado da aceleração das coberturas vacinais nas Américas.
Em segundo lugar, a vigilância epidemiológica, a melhoria da vacina OPV e métodos de mobilização social foram considerados fatores-chaves para se chegar à erradicação.
Em terceiro lugar, foram discutidos os impactos das imunizações no estado nutricional das crianças, em certas áreas do Brasil.
As discussões consideraram, também, a situação do Programa de Imunizações e perspectivas da erradicação da pólio em várias regiões do globo.
Durante o debate, os pontos considerados chaves foram abordados, tendo em vista a experiência adquirida no programa global de erradicação da varíola.
Finalmente, debateu-se sobre a importância da erradicação de doenças e seu impacto sobre as condições de saúde da população.


ABSTRACT

This debate was organized at the Epidemiology Department of the National School of Public Health (Brazil) and took place on June 28, 1989.
The main reasons and factors which led the World Health Assembly Resolution to eradicate poliomyelitis from the globe were discussed.
First, it was discussed the tremendous decline in roparalytic cases due to wild poliovirus infections as a result of the immunization coverage acceleration in the Americas through the national immunization days strategy as complementary to routine immunizations.
Second, epidemiological surveillance improvements in the OPV and in the social mobilization methods were considered to be key factors for the eradication to be achieved.
Third, it was also discussed the impacts of immunizations on the nutritional status of children in some Brazilian areas.
The discussion also considered the situation of the EPI and the perspectives for polio eradication in various regions of the globe.
The main issues raised at the debate were discussed under the lights of the experience learned from the global smallpox eradication program.
Finally, a discussion was held on the importance of disease eradication and its impacts on people's health conditions.


 

 

Este debate abre a oportunidade de se discutir o movimento que está ocorrendo em âmbito internacional sobre o Programa de Imunização de modo geral e, mais especificamente, em tomo da erradicação da poliomielite.

A nível mundial, a decisão de erradicar a poliomielite foi tomada recentemente pela Assembléia Mundial de Saúde, reunida em Genebra, em 13 de maio de 1988. Levando-se em consideração os avanços já apresentados pelos Programas Ampliados de Imunização, hoje tem-se uma visão bastante mais realista das metas desses programas quanto ao impacto não só sobre a poliomielite, mas sobre outras doenças, como difteria, tétano, coqueluche, tuberculose e sarampo. Até então, as metas estabeleciam a redução em torno de 80 a 90% até o ano 1990, para a maioria das doenças, e a eliminação total da poliomielite e do sarampo. Eram estes os primeiros discursos que norteavam o lançamento dos programas em 1974/75.

Seria conveniente fazer um breve histórico do que leva a Organização Mundial de Saúde (OMS) e os países membros a lançarem um programa de imunizações e dos avanços já conquistados até então. Os motivos do lançamento do Programa de Imunizações pela OMS são mais ou menos conhecidos para quem trabalha com Epidemiologia. Revendo a história das vacinações, o primeiro programa sistemático de vacinação a nível internacional começa com a vacinação anti-variólica, no final do século XVIII, com a descoberta da vacina por Edward Jenner (em 1790-1792) na Inglaterra. É a partir daí que já se pode falar em programas desse tipo no século XIX, quando se assiste ao grande "boom" dessa vacinação. São conhecidos e narrados na literatura os esforços que se faziam, naquela época, nas metrópoles, para levar a imunização — a partir da Inglaterra — primeiro aos países europeus e depois para as colônias; e também, como se resolviam certos problemas, como o de termoestabilidade da vacina. Sendo uma vacina de vírus vivo, como se poderia imaginar o seu transporte da Europa — de Portugal e da Espanha — para as colônias do Novo Mundo? O problema da conservação da vacina era resolvido de um modo bastante diferente do atual. A rede de frio de 200 anos atrás eram os escravos. Inoculavam-se os filhos de escravos, que transportavam o vírus vivo da vacina a bordo de naus que levavam dois a três meses para chegar ao seu destino. Esse papel dramático da utilização de mão-de-obra escrava é pouco conhecido e registrado na história.

Durante todo o século, ainda não se pode falar em Programas no sentido moderno da palavra, com todo um racionalismo programático que vai se desenvolver a partir do final do século XIX e início do século XX. No entanto, a vacinação antivariólica expande-se em todas as partes do mundo. Até 1950, data recente, se compararmos com o início da vacinação há quase 150 anos, não se atingia ainda 50% de cobertura vacinal em todos os países. A partir daí, com o programa já mais elaborado, e contando-se com uma Vacina também mais elaborada em termos tecnológicos (com termoestabilidade), os programas de vacinação antivariólica têm um enorme impulso. As coberturas sobem enormemente como conseqüência de decisões políticas e de maior comprometimento financeiro, além de maiores investimentos em capacidade de produção de vacina, em vários países. O Brasil foi um dos que mais contribuiu para a erradicação mundial da varíola, desenvolvendo significativamente sua capacidade da produção de vacina.

A importância disso tudo é que, em 1970, se assiste à eliminação da varíola em praticamente todos cs países do mundo, à exceção do Sudeste Asiático, Lídia, Bangladesh, Etiópia e alguns poucos países da África, dos quais pouco se sabia. A partir da década de 70, um novo impulso é dado, ao se estabelecer a meta de erradicação até meados da década. A essa altura, esperava-se que realmente se chegasse à erradicação. No entanto, um imprevisto fez adiar essa meta para 1977, quando era esperado que, uma vez controlados os últimos grandes focos localizados na Índia, Bangladesh e na Etiópia, a erradicação estaria assegurada. Entretanto, com a situação política entre a Etiópia e a Somália, e estando a Etiópia com alguns focos na área fronteiriça, esta veio a exportar alguns casos para a Somália, estabelecendo-se uma epidemia das maiores e mais explosivas até hoje narradas em toda a região sul da Somália. Em outubro de 1977, o último caso por transmissão humana é registrado. O combate a essa epidemia é considerado como um dos maiores sucessos, em termos de controle, através de uma ação coordenada e imediata por parte dos organismos nacionais e internacionais.

Se pensarmos que a vacina existe desde 1792 e que, efetivamente, desde o século XIX se fazia vacinação antivariólica em quase todas as partes do mundo, pode-se considerar que, do início da utilização da vacina até a ocorrência do último caso, decorreram praticamente 200 anos para chegar-se à interrupção da transmissão do vírus selvagem da varíola. Evidentemente, outros fatores contribuíram para a erradicação: os de natureza epidemiológica, o fato de não existir reservatório animal além do homem, a própria dinâmica de transmissibilidade do vírus, combinados com os de ordem tecnológica: a existência da vacina eficaz e da agulha bifurcada; além da decisão política, traduzida em termos de investimentos importantes de capital.

A formulação de conceitos na vigilância epidemiológica — como, por exemplo, vigilância ativa, vigilância passiva e vacinação de bloqueio — é derivada da experiência da erradicação da varíola. Há dois dias, no Estado do Rio de Janeiro, assistimos a um exemplo de vacinação de bloqueio em 72 horas, a partir da detecção de um caso de pólio, numa demonstração de um programa de pronta ação bastante intensivo e eficaz para a erradicação. São exemplos que traduzem a adaptação em termos conceituais de controle de foco para as características da pólio. Como traçar contatos de um caso de pólio numa zona urbana, em Nova Iguaçu, com uma população de um milhão de habitantes? O conceito amplia-se, a vacinação é feita em toda a região, ou pelo menos em toda a área urbana de Belford Roxo, onde se localizava o caso. O início do sistema de vigilância epidemiológica — com toda a sistematização e regulamentação de notificação de doenças, as doenças de notificação obrigatória, a padronização de procedimentos, formulários etc — são também lições da erradicação da varíola.

Alguns pontos merecem ser debatidos: a varíola é a primeira doença que desaparece pela ação do homem. O programa realmente levou a erradicação da varíola? Tudo isso é muito discutido na literatura. Outra questão bastante polêmica é a possibilidade de extinguir um vírus, deixando espaço no ecossistema para o possível aparecimento de outro vírus. Isso é uma especulação feita por alguns ecólogos e que, hoje, com o aparecimento da AIDS tem uma certa repercussão. Na ausência de evidências científicas, ate então inexistentes na literatura, tal fenômeno não passa de mera especulação.

Outro aspecto também bastante importante é justamente a possibilidade de erradicar a poliomielite sob algumas condições, as quais nos referimos anteriormente — fato este que levou ao lançamento do Programa Ampliado de Imunização (PAI), em 1974. Essa decisão foi tomada, ainda, com o programa de erradicação da varíola em pleno curso. Os países resolvem lançar um programa ampliado, já que se contava com vacinas das mais eficazes entre as existentes até então, para cinco ou seis doenças. É claro também que a maioria dos países não lançam o programa nos termos em que se compreendia naquela época, em que se propunha um programa de imunização com todos os seus componentes de vigilância, de cadeia de frio, de mobilização social, de participação comunitária etc. Tudo isso em consonância com o movimento no âmbito mundial, inaugurado em Alma-Alta, possibilitando discutir uma série de outros fatores que até então eram ignorados, como, por exemplo, a participação da comunidade.

O PAI é lançado na maioria dos países da Ásia, África e América Latina não antes de 1979/80. No Brasil, teoricamente, o Governo Federal constitui o Programa Nacional de Imunização em 1977, elaborando junto com ele as normas do sistema nacional de vigilância epidemiológica.

Em 78/79, vê-se, nos demais países, um movimento, discutindo a futura implantação do Programa de Imunizações. Isto requeria uma quantidade bastante importante de investimentos em capital, em recursos humanos e outros, que pouco a pouco vão sendo colocados à disposição dos Ministérios da Saúde. Os próprios países vão tomando decisões no sentido de alocar mais verbas para a saúde. Isto em si é um fato bastante importante, quando se tenta pensar essa questão em termos de verticalização-horizontalização.

O programa da varíola, apesar das suas lições e do aprendizado, foi condenado pela sua verticalização. Teoricamente, é inadmissível que se fale em verticalização num programa que se proponha a erradicar ou a controlar alguma doença, ou que tenha alguma ação em termos de saúde pública. O próprio programa de imunização aparece no bojo de outros e se situa como "carro chefe" dentro da proposta de cuidados primários em saúde, elaborada politicamente em Alma-Ata. Então o PAI é um componente de, pelo menos, mais três ou quatro outros importantes programas para a saúde da mulher e da criança. O que se colocava a partir daí era que os programas de imunizações deveriam estar lado a lado, a nível dos serviços básicos de saúde, com todos os outros. Em regiões onde, por exemplo, a malária ou a diarréia são endêmicas, o controle dessas doenças também seria inserido nesse programa.

Naquele momento, o que se assistiu foi uma grande inversão de capital, de recursos humanos, de verbas nacionais no programa de imunizações, tanto no Brasil como na África e na Ásia. Em 1974/75 estimava-se que menos de 5% das crianças com menos de dois anos eram vacinadas com as vacinas disponíveis. E esse dado era fornecido por sistemas de informações absolutamente deficientes em todos os países, sendo então difícil estimar, naquela época, qual era a cobertura real. Mas o importante é que, dez anos depois, dispõe-se de métodos bastante eficazes que permitem conhecer, com algum grau de certeza, essas taxas de cobertura através de amostragem estatística.

Hoje estima-se, segundo a OMS, que a cobertura vacinai com a tríplice (DTP), pólio, sarampo e a BCG seja em torno de 50%. Isso significa que 50% dos menores de dois anos, hoje, no mundo, têm pelo menos três doses de pólio e da tríplice, que são normalmente vacinas conjugadas pelo esquema recomendado.

Retornando àquele ponto inicial, outro fator importante dá-se em maio de 1988. Em vista do progresso alcançado em todo o continente americano, a Europa declara também como meta a erradicação da pólio, seguida pela região do Pacífico Oriental da OMS. Há uma série de fatores, no entanto, que deveria ser pensada: o que quer dizer, na realidade, em termos práticos, esse progresso? Houve realmente avanços? O que tem havido no Brasil de três a quatro anos para cá com o programa da pólio? Deixando de lado o programa de imunização em termos gerais, o que se vê nitidamente no Brasil é que houve uma redução, a partir de 1980 até 1984/85, de casos de pólio paralítica. Com as campanhas, assiste-se a um impulso imenso, com coberturas antipólio praticamente acima de 90%, 95%, em quatro anos seguidos.

A partir de 84/85, detecta-se um claro declínio dos níveis de cobertura vacinal. Regiões do Brasil que tinham, durante quatro, cinco anos, cobertura de 90% ou mais não conseguem ultrapassar, em 1985, 70% ou 60%. O Estado do Rio, em 1986/87, tinha coberturas consideradas dramáticas, com bolsões dentro da cidade e, em alguns municípios, com coberturas de 60%. Retomou-se um bom desempenho do programa a partir do ano passado, com cobertura a níveis acima de 80%, 90%. Por outro lado, surge também, a partir de 85/86, complicando um pouco o problema, um fato inédito em termos epidemiológicos nos países do Terceiro Mundo. A maioria dos casos de pólio até então notificados e confirmados laboratorialmente, com isolamento de vírus selvagem, devia-se ao poliovírus tipo 1, e o que acontece no Nordeste em 86 é o aparecimento de focos com poliovírus tipo 3. Tem-se uma nítida mudança do agente etiológico da pólio, já como resultado da campanha de vacinação e dos altos níveis de cobertura. Isso leva à realização de um estudo que questiona e especula os possíveis fatores que teriam interferido para a alteração do quadro epidemiológico. São feitas pesquisas de campo em várias áreas que tinham e têm hoje a presença mais forte do vírus selvagem.

Conduziu-se um estudo de soro-conversão para avaliar a possibilidade deste problema ter surgido por falha da vacina, já que uma das hipóteses era de que, possivelmente, o componente tipo 3, sendo o mais fraco, não produziria uma soro-conversão satisfatória. Resolve-se modificar, para fins de estudo, a formulação tradicional da OPV, aumentando o número de partículas virais para o tipo 3. Após um teste de campo em crianças do Nordeste para medira soro-conversão, chega-se à conclusão que, com a formulação alterada, a resposta melhora sensivelmente, produzindo uma satisfatória soro-conversão.

Começa-se, então, a se utilizar, no Brasil, a vacina modificada, reforçada de 300 para 600 mil partículas virais. Em vista disso, a Opas passou a adotar, para todo o continente americano, a vacina com a nova formulação, porque se acredita que pudesse vir a acontecer o mesmo fenômeno em outros países.

Até 1980, a notificação de casos no Brasil era em torno de 4.000 por ano. Isso a grosso modo, porque, em 79/80, o sistema de notificação era frágil. Com oito anos de campanhas nacionais de vacinação, tem-se um impacto fantástico, já que os casos notificados de 1988 até hoje chegam a 420. Se compararmos com o mesmo período do ano anterior, observa-se a tendência descendente da incidência da doença. É um impacto de dez vezes menos casos do que no início dessa campanha, e isso acontece antes de se alcançarem os níveis de coberturas existentes hoje, acima de 80, 85%, com a pólio oral. Se a incidência era calculada, naquela época, de dez para 100 mil, hoje é de um para 100 mil. Isso é bastante positivo, em termos de uma ação imediata de controle de uma doença.

Evidentemente, é fundamental a manutenção dessas coberturas para evitar o acúmulo de suscetíveis, enquanto os três tipos de poliovírus ainda estão circulantes. Assim como, também, é fundamental a pronta detecção de casos, o pronto diagnóstico e a pronta ação de contenção de focos, através de uma vigilância epidemiológica ativa.

Se, classicamente, a pólio tinha uma definição clínica, hoje a definição de caso é outra. Para a erradicação isto é importante, visando a máxima sensibilidade do sistema de vigilância epidemiológica, em detrimento da especificidade. Qualquer caso de paralisia flácida, de início súbito, em menores de 15 anos é considerado, em princípio, um caso de pólio. O próximo passo, também ligado a essa definição, é o de controle da especificidade. Primeiro faz-se o diagnóstico clínico. Com base nele, deve ser feita a classificação do caso, que hoje é utilizada do seguinte modo: o caso é suspeito, é provável ou é confirmado. Há ainda outra categoria, que é a de caso descartado. Assim, um caso suspeito pode ser descartado clinicamente primeiro ou, mais tarde, laboratorialmente. Se ele é provável clinicamente, vai para confirmação laboratorial. Se este caso não é confirmado laboratorialmente, e se resiste a paralisia após 60 dias, isto é o suficiente para considerá-lo um caso confirmado, mesmo não havendo isolamento do vírus. A importância desta definição em termos operacionais é que, na medida em que se notifique um caso como suspeito, um epidemiologista deve analisá-lo e diagnosticá-lo em 24 horas. Definindo-se, então, como um caso provável, tomam-se as medidas normais: a vacinação de bloqueio. Para efeito de erradicação, um caso é um surto.

No que diz respeito ao programa de imunizações em geral, a política de produção de vacinas é um tópico bastante polêmico e bastante discutível, hoje.

É sabido que a maioria das vacinas produzidas hoje no mundo (do programa de imunização) é produzida nos países industrializados, principalmente Inglaterra, França, Bélgica, Estados Unidos, além do Canadá, que tem um laboratório importante. São, na verdade, três ou quatro países responsáveis por toda a produção de imunobiológicos em todo mundo. E são justamente esses países que necessitam cada vez menos dessas vacinas. O que se discute atualmente, a nível internacional, é o futuro da produção dessas vacinas e do Programa de Imunizações para o Terceiro Mundo, já que essas doenças se aproximam do ponto de eliminação no mundo industrializado. Os preços das vacinas na Europa e nos Estados Unidos têm uma variação de dez a 100 vezes em relação ao preço subsidiado para os países do Terceiro Mundo. Então, as vacinas que Angola, Nigéria, ou o Brasil consomem são subsidiadas por organizações internacionais ou bilaterais. Uma dose de vacina antipólio custa hoje quatro centavos de dólar no Brasil, enquanto que a imunização completa de uma criança — computando os custos com recursos humanos, rede de frio, enfim, outros gastos com investimentos indiretos — sai a cinco dólares. Nos países industrializados, esses custos variam de 50 a 500 dólares. Os laboratórios produzem dentro das regras do mercado capitalista, com interesse no lucro. Os grandes consumidores dessas vacinas são os países do Terceiro Mundo que não têm condições de arcar sozinhos com os custos dessas vacinas. Até o momento, não se sabe até quando vão ser subsidiadas, principalmente pelas Nações Unidas. Nos Estados Unidos, praticamente todos os laboratórios produtores de vacina estão fechando. Para algumas vacinas, até agora, o custo marginal compensou, porque são vacinas que já pagaram os investimentos de 10, 15 anos de testes, de pesquisas, de elaboração e de ensaio clínico até que a vacina fosse aprovada. Por outro lado, já se vê impacto sobre a doença, em número de casos. O que pode acontecer, por exemplo, nas regiões onde houve um declínio drástico da incidência destas doenças? A própria população pode perder o interesse nos programas de imunização. Em função disso, pensa-se hoje em inserir outras vacinas nesses programas, como uma vacina contra a malária, ou possíveis vacinas contra Chagas e hepatite B. Aí reside o grande problema, porque, neste momento, nenhum laboratório do mundo industrializado se interessa por este investimento.

Em abril do ano passado, houve uma reunião internacional, no Rio de Janeiro, para se discutir um estudo realizado na Universidade de Boston sobre o futuro da produção de vacinas para o Terceiro Mundo. Os grandes laboratórios produtores estavam presentes nesse encontro, que foi uma tentativa organizada pelo Instituto Merrier e pela Fundação Ordem da Malta (que fundaram em Genebra, no final do ano passado, uma Fundação Mundial de Vacinologia) de conclamar a todos os institutos de pesquisas, dos grandes laboratórios produtores, a discutirem a problemática de novas vacinas a serem pesquisadas e das próprias vacinas que estão sendo utilizadas nesse momento.

Concomitantemente, e não por acaso, a Organização Pan-Americana da Saúde inicia também um movimento, que começa a chamar da Institutos Regionais de Vacinologia, tentando, na realidade, dar uma solução que consistiria, em primeiro lugar, em identificar países nas várias regiões do Mundo que tenham condições de produzir vacinas e de absorver transferência tecnológica. O objetivo seria investir nesses países para que eles tenham laboratórios produtores com todas as etapas de controle de qualidade e, assim, servirem como laboratórios regionais, ou centros regionais de vacinologia. Isso, evidentemente, evitaria um colapso e cortaria, de certo modo, a dependência da produção em relação aos países industrializados, dando uma auto-suficiência, pelo menos em termos de macrorregiões do continente.

Outro grande problema — que já vem sendo levantado desde a década passada com a Declaração de Alma-Ata — é justamente a questão da mobilização social. Uma conclusão a que se chega é a de que um dos grandes problemas para a manutenção de altas coberturas é a mobilização social. Como se manter um programa desta natureza, onde o elemento principal, que é a criança, não comparece para ser vacinada? Pensam-se em várias estratégias de mobilização social, de educação sanitária, surgindo várias estratégias de cursos, métodos, textos, materiais de todo o tipo, e o que se observa é que isto não tem funcionado muito bem. De qualquer modo, toda a educação sanitária tradicional começa a girar muito mais em torno da mobilização social. Até que, mais recentemente, a partir de 86/87, muda-se o conceito de mobilização social. Até então, todos os programas de saúde, todo o discurso de mobilização social estavam voltados para as classes menos favorecidas. Em termos gerais, os estoques de suscetíveis estão nestas classes, sendo elas a clientela. Toda a política fica direcionada para estas classes, uma vez que elas são o alvo principal, esquecendo o outro lado — os outros segmentos da sociedade que ficam totalmente à margem desse processo. Inicia-se, então, um movimento a partir do ano passado, em praticamente todos os países, por um novo conceito de mobilização social, dirigido a toda a sociedade, e, ao contrário, partindo das classes mais favorecidas, para comprometer esses segmentos com os programas de imunização e de saúde pública. Parece que este movimento tem tido um efeito bastante significativo, pela importância de responsabilizar esses setores pelos programas de saúde pública. Por que não comprometer os empresários, por exemplo, com esses programas? Discute-se muito o papel que tem o empresariado como fonte de mobilização. No Brasil mesmo, vê-se a importância de segmentos como clubes de serviços, o Rotary e outros, além de organizações de caridade ou humanitárias. A idéia é responsabilizar os que mais podem por programas desta natureza.

Em termos de erradicação da pólio e em termos de estratégia, que passos concretos estão sendo dados, nesse momento, na África, na América Latina e na Ásia? Na África — eu acabo de vir de lá —, no momento, está sendo feita uma avaliação da situação geral. Cada país se reúne com uma equipe multidisciplinar, com todas as organizações bilaterais, internacionais, humanitárias, clubes de serviço, ministérios da saúde, OMS, Unicef etc. Formam-se, então, comitês nacionais que se reproduzem até o nível local. Esse comitê utiliza dois instrumentos, um bastante simplificado e outro um pouco mais detalhado, com dados sobre o país, sobre as doenças imunizáveis, sobre a pólio, sobre a mobilização social, sobre os investimentos realizados, quer pelo governo, quer pelas agências. Este instrumento aborda, também, os compromissos para os próximos anos em termos de financiamento, assim como os planos de ação. Esses dados serão analisados de 8 a 10 de agosto de 1989, em Brazzaville, no Congo, sede do Escritório Regional da OMS para a África, e determinar-se-á, então, em que tempo os países africanos julgam possível erradicar a pólio e com que recursos humanos, financeiros etc. Em outras palavras, far-se-á uma análise ampla, e ao mesmo tempo bastante específica, das possibilidades de cada país erradicar a poliomielite. Essa reunião de agosto vai traçar políticas de erradicação da doença para a região africana da OMS. Na América Latina isso já foi feito e, neste momento, já estão praticamente concluídos os planos multiagências. Hoje, não é mais a Opas que está trabalhando com os Ministérios da Saúde da Bolívia, do Paraguai, da Colômbia ou da Venezuela. As várias agências de cooperação reúnem-se sob a coordenação dos Ministérios da Saúde e compõem os "comitês coordenadores interagenciais", responsáveis por elaborar os planos de ação em cada país. Isto é uma experiência inédita, na gestão de um programa de saúde internacional, e tem dado resultados bastante alentadores, no sentido de se estabelecer uma verdadeira "aliança" em torno de objetivos comuns.

Prof. José Wellington Gomes de Araújo*

Durante sua apresentação, você fez uma divisão do tempo que contava os 150 anos, e só utilizava os últimos 10 anos. Creio que, na realidade, você poderia fazer esta e outras divisões. Uma divisão para mim mais aproximada é a de um espaço de tempo menor, quando, com a Organização Mundial da Saúde, começa a idéia das campanhas. A idéia campanhista é uma coisa que está ligada à origem e à continuidade da OMS.

Inicialmente combatendo a malária, a OMS passou também a enfrentar a varíola.

A varíola é apenas a primeira doença que se consegue erradicar, depois de uma série de campanhas totalmente frustradas. A campanha da erradicação da malária, a meu ver, fazia muito sentido no Sul dos Estados Unidos, numa certa época, para viabilizar a cultura do algodão. E aqui no Brasil, na região de exploração da borracha, na Amazônia, para viabilizar a produção para um mercado capitalista.

A campanha, desde o início, mostrou-se bastante eficaz para fazer frente a estas situações, com o apoio da Fundação Rockfeller.

Mas, logo depois, viu-se a dificuldade de manutenção destas idéias, a não ser em situações determinadas. A varíola foi, enfim, erradicada. Há quem diga que ela também já o estava, mas isso tudo é especulação.

O que cabe perguntar são algumas coisas do tipo: existem conjunturas sanitárias no Primeiro Mundo? Nos Estados Unidos, há uma conjuntura sanitária. No Brasil, tem-se uma outra conjuntura sanitária. Em Bangladesh, provavelmente, uma muito pior do que a do Brasil. Nos países africanos, existem conjunturas sanitárias diversas.

Por outro lado, é inegável o desenvolvimento e a grande vantagem que foi a erradicação da varíola, tanto em termos de sistematização de técnicas operacionais, de epidemiologia, como também de técnicas imunobiológicas, avanços que são contribuições definitivas.

Tendo-se em vista as diversas conjunturas sanitárias de Terceiro Mundo, qual a interferência da erradicação da varíola, ou mesmo da pólio?

Acostuma-se às idéias: os fatos vão criando uma certa unanimidade. Lembro-me que, quando começou a campanha antipólio no Brasil, existiam muitas pessoas contra, mesmo aqui na Escola. A partir do momento em que o programa vai se instalando, vai criando forças, aquelas pessoas que eram contrárias vão também aderindo.

Sempre se está lidando com modelos. O nosso modelo é o de avaliação de indicadores de saúde. Quando se examina a curva de pólio e se constata que de 4.000 casos a incidência cai para 400, isso é uma verdade, mas ninguém pergunta o que significa isso, porque, dada a nossa conjuntura sanitária, não se conhece um estudo que diga que realmente a pólio está caindo e o sarampo também. Pessoalmente, não conheço nenhum estudo que discuta o impacto desta diminuição da mortalidade de pólio e do sarampo na conjuntura do Brasil.

A tendência é pegar indicadores isolados e argumentar com eles. A primeira coisa que eu questionaria seria o interesse da erradicação da pólio e do sarampo. Interessa muito aos Estados Unidos o fornecimento de vacinas para o Terceiro Mundo. Politicamente, a erradicação interessa mais à conjuntura deles, e menos à nossa, porque no contexto da mortalidade infantil isso vai interferir muito pouco. Isso é uma questão. A outra refere-se aos modelos verticais e horizontais. Ninguém se arrisca mais a dizer que um programa é vertical. De fato eles são mistos, mas eu creio que se tem de tentar a erradicação a partir da rede básica. Porque, por outro lado, as campanhas da pólio e do sarampo são um modelo vertical, embora se utilize a estrutura de serviços. O que está ficando cada vez mais claro é que tal modelo desorganiza o serviço de rotina, isto é, desorganiza toda a educação do público com relação à vacina. Deve-se vacinar na rotina ou na campanha?

Parece-me, atualmente, que a erradicação é um fato irreversível, mas isto não quer dizer que a gente deva concordar com todo mundo. Eu quero manter a minha crítica da questão em si da erradicação, porque este pode ser um fato muito louvável, mas, em termos de conjuntura sanitária, é como botar o carro na frente dos bois.

Verani — Você falou várias coisas da maior importância; eu acho que é importante a Escola Nacional de Saúde Pública debater esta problemática maior da infra-estrutura sanitária ou, de um modo mais geral, da saúde do povo brasileiro. Eu acho que esta Escola tem, durante anos, tomado posições importantes. Aqui é o fórum mais do que indicado para se manter, mais do que nunca, esta discussão em relação ao programa de imunizações e da erradicação da poliomielite. Concordo quando você levanta estas questões. É dramático, quando se está em situações no campo, e se sabe, que o que se está fazendo é uma gotinha dentro do mar. Mas a questão importante é esta inserção do problema, refletir o tempo todo sobre a importância que tem a erradicação de uma doença transmissível e que impacto isso tem na saúde do povo.

Concordo quando você fala que, em termos de impacto na saúde do povo brasileiro, a erradicação da varíola contribuiu muito pouco. Acho que, provavelmente, a saúde do povo brasileiro, por vários fatores, hoje é muito pior. É muito mais precária do que nos anos 40, talvez. Eu também me pergunto o tempo todo que contribuição realmente estamos dando, trabalhando em controle de doenças, que é uma coisa específica. Mas, exatamente porque é uma coisa específica, encontro as minhas justificativas. Tenho uma posição de que eu posso fazer isso, em nenhum momento esquecendo e denunciando os outros absurdos que estão à nossa volta e que concorrem para a saúde do povo brasileiro estar cada vez pior.

Em termos gerais, não se pode esquecer que a nossa ação é muito limitada. Enquanto profissionais da Saúde Pública — tendo uma atividade específica — temos os nossos limites, em termos de contribuição para a saúde do povo brasileiro. Ou seja, erradicando-se a varíola, contribui-se para a saúde do povo brasileiro? Eu acho que sim. Pelo menos varíola ninguém mais vai ter.

No Brasil, a varíola não era tão séria ultimamente. Era a "varíola menor", como na Somália e também na Etiópia. Mas na Ásia ainda presenciei casos de varíola. São dramáticos os casos de alta incidência de cegueira. Hoje você tem milhões de cegos na Índia, no subcontinente indiano, por causa da varíola. Não morreram da varíola, mas são cegos até hoje por causa da varíola. Mas eu acho que o importante é saber que um programa de imunização, ou a ação de vacinar, não vai resolver a saúde do povo brasileiro. Longe disso, ninguém deve ser ingênuo de acreditar nisso. Devemos nos definir por uma ação. Tenho plena consciência de que a minha ação, de que minha contribuição para a saúde do povo brasileiro e para o povo da África é muito pequena. Mesmo porque eu acredito que qualquer intervenção médica é limitada em termos de interferir na estrutura, na condição sanitária do povo, que passa por fatores que se situam fora do setor saúde.

José Wellington

E quando a campanha é paralela à vacinação?

Verani — Eu sou a favor da vacinação na rede básica. Até há pouco tempo, eu era contra a vacinação em massa. Hoje, em determinadas ocasiões, em determinadas áreas, eu sou completamente a favor. Falando-se estritamente de programas de imunização e analisando-se a situação de infra-estrutura de serviços de saúde, é impossível, em algumas áreas, ter-se algum impacto em 20 anos. A Nigéria, por exemplo, é um dos países que tradicionalmente não recebia vacinas de ninguém e só começou a receber este ano. Com a crise econômica, o preço do petróleo caiu e o país está arrasado economicamente. Mas era um país rico, ou moderadamente rico, capaz de, até este ano, comprar com verba própria as suas vacinas. Em 1989 é que começaram as doações de vacina para a Nigéria. Quer dizer, os nigerianos gastam sua verba e recursos locais numa coisa que, em se analisando, chega-se à conclusão de que é em vão, que eles não vão ter o menor impacto se eles continuarem com esta estratégia... Então, nestes casos, eu sou completamente a favor de dar-se um impulso forte em determinadas ocasiões; dependendo do quadro, de organizarem-se camapanhas, sejam nacionais, sejam locais ou localizadas. Não se pode ter a menor dúvida de que o problema que se coloca é esse: o ideal, o que todo mundo quer, é que a vacinação seja uma atividade como qualquer outra; como profissional de saúde pública, acredito que a gente tem de cobrar, para que estas atividades sejam postas em prática, como no caso do soro de reidratação oral, que é até mais barato que a vacina, e não é implemento. Discordo que, aqui ou em outros países, a estratégia de campanha desorganize o serviço. Discordo porque o serviço não está organizado.

A reidratação oral, o pré-natal, para citar apenas dois componentes, não estão organizados.

Pensando-se na rede do Rio de Janeiro, em que centro de saúde na cidade encontram-se todos os componentes da atenção primária? Concordo que a vacinação é um componente de um programa mais amplo. A resolução sobre a erradicação da pólio traduz toda a política no sentido de que a erradicação da pólio e o fortalecimento do programa de imunizações tenham como resultado o fortalecimento de outros programas, como o controle de diarréias, por exemplo, além do crescimento e desenvolvimento da criança. Por isto e por uma série de razões acredita-se que o programa, em se tornando eficaz e efetivo, dará maior credibilidade aos serviços de saúde, do ponto de vista do usuário.

Cristiane Schuch

Nas reuniões das quais você tem participado, discute-se a questão da integração nos serviços?

Verani — Quando se define o plano com as diversas organizações e ministérios, várias questões são levantadas, não só quanto a estratégias a escolher, entre as várias possíveis, para aumentar as coberturas vacinais, mas também de como reforçar os outros programas. Hoje não se admite mais, pelo menos em foro oficial, que se fale em verticalização, apesar de se saber que, em algum momento, o programa de erradicação será verticalizado. Deve-se pensar que o controle, numa vacinação de bloqueio, e uma verticalização. Assim, faz-se o controle do foco, um bloqueio, com toda uma mobilização inerente e específica à pólio.

Prof. Eduardo Maranhão**

Eu só queria lembrar uma coisa: para horizontalizar, tem-se que ter uma rede sem ociosidade. Tem-se que ter uma rede funcionando. Se ela não funciona, tem-se que trabalhar verticalmente. O discurso da horizontalização é como o discurso da centralização e descentralização. E um discurso que se tem que fazer em cima do concreto, senão fica-se repetindo pontos retóricos e teóricos. Se horizontaliza ou se verticaliza, de acordo com circunstâncias dadas. Com a rede que se tem, com o estado material do município do Rio de Janeiro, por exemplo, tem-se uma rede física implantada de grande porte, maior do que alguns países da América Central que, por sua vez, funcionam melhor do que o Brasil ou que o Rio de Janeiro, como é o caso da Nicarágua, de Cuba, da Costa Rica e de vários outros países. Com a rede trabalhando de uma maneira tão incompetente e ociosa, o que se faz melhor ainda é a vacinação. Mas o que e certo é que a cobertura de vacinação ainda é baixa e necessita do instrumento da campanha. A vacina aplicada em campanha, por incrível que pareça, por mobilizar vários aspectos (da população, de material, de outras instituições) chega a ser mais barata do que a aplicada na rotina no Brasil. Num estudo não publicado de custo e eficiência, conduzido pela FSESP, em que se compararam as estratégias de campanha, intensificação e a rotina, os resultados mostraram que o custo da vacina na campanha era muito menor, muito mais reduzido, quando comparado com os custos da vacina aplicada na rotina. Por quê? Porque as unidades trabalham num ritmo de ociosidade; se uma unidade da rede vacinasse tudo que ela poderia vacinar, possivelmente este custo da rotina seria muito menor do que o custo unitário da campanha. Mas não é a situação concreta na maioria dos estados do Brasil. Não é num estado materialmente rico, como o Rio de Janeiro, nem no estado mais rico da Federação, que é São Paulo.

Prof. Malaquias Batista Filho***

Acho que o problema mais ou menos geral é o da crença, da convicção. Nós já estamos um tanto seguros da conduta correta, e não vale muito a pena radicalizar na questão. Tenho absoluta convicção na efetividade da vacinação. O problema nacional é que muitas vezes não permite que se veja a coisa no concreto, de uma forma mais realística. Mas acho que se a única coisa que nós fizéssemos fosse a vacina — eu não trabalho nesta área, só trabalho na área de nutrição — mesmo assim nós estaríamos produzindo uma coisa importante, na medida em que tudo indica que o estado nutricional do Brasil melhorou fundamentalmente pela vacinação. Sob o ponto de vista alimentar, que é o que conduz muito o raciocínio para o estado nutricional, medido pela alimentação — o supermercado, preços de alimentos, cesta básica, salários —, todos os indicadores sugerem que a probabilidade é de piorar. No entanto, contrário a esta tese pessimista de estado nutricional, aqui nesta área de favela, encontramos 2,3% de crianças com índice de terceiro grau. São Paulo apresenta um índice de 4,1% e a capital de 4,7%. No Nordeste brasileiro, um estudo realizado em 86 e ainda não publicado mostrou que a subnutrição caiu praticamente em 50% em relação a 74.

Vários outros indicadores econômico-sociais, em termos de inquérito, mesmo em situação favorável como a de São Paulo, indicam que, com uma relação simplesmente matemática, chegar-se-ia à conclusão de que, se caiu o custo de vida, então as condições de alimentação da população brasileira melhoraram, o que não é verdade. No entanto, reduziu-se a desnutrição, e tudo indica que o grande fator que concorreu para esta diminuição, a grande chave do paraíso foi fundamentalmente a vacinação.

Ora, o que tem a ver o sarampo com a desnutrição? Uma criança de um ano, com o sarampo, perde aproximadamente 1.500 gramas. Isso é o que a criança normalmente alimentada ganha durante sete meses: ou seja, todo o avanço que se tem em termos de aquisição de alimentos que representa o estado de nutrição ela perde em 15 dias, no episódio do sarampo.

Em áreas onde a pólio geralmente é freqüente, 20 a 25% dos casos de desnutrição de terceiro grau são em crianças que têm poliomielite. Considerando-se também o problema da coqueluche, uma criança que passa três, quatro meses com vômitos com sangue, de classe econômica baixa, compromete seu estado nutricional. E isto acontece com outras doenças que tem comportamento parecido com o sarampo, no que diz respeito ao estado nutricional. Muito provavelmente a imunização contribuiu significativamente para a mudança de tendência no quadro nutricional do Brasil. Então para isso ela vale, não é mesmo?

Acho que o que você frisou muito bem, de que se passaram 150 anos para se conseguir atingir a erradicação da varíola — e conseguimos atingir coberturas vacinais razoáveis em 10 anos — sem duvida, em termos de escala, é um fato histórico muito significativo e que não deve ter expressão apenas na área específica de controle dessa realidade. Este fato tem um movimento colateral que se manifesta como um princípio de vasos comunicantes em outras áreas, como, por exemplo, a dos problemas nutricionais.

Como trabalho na área de nutrição, tenho que fazer a minha parte também. Temos que trabalhar com suplementação alimentar, temos que trabalhar com reidratação oral, e com mais ambição, esperando que a população queira, e que, por conta do direito de cidadania, não receba mais alimentos gratuitos como forma de reagir a determinada situação; mas é verdade que, em determinadas circunstâncias, temos que jogar com isso e poderíamos, até, ter grandes avanços, se pudéssemos combinar seis ou sete medidas que estão sob nosso controle, nos serviços de saúde.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. F. FENNER; D. A. HENDERSON; I. ARITA; Z. JEZEK; I. D. LADNYL — Smallpox and its Eradication. World Health Organization, Geneva, 1988.        

2. HENDERSON, D.A. — Smallpox: Epitaph for a Killer?, In National Geographic Magazine, vol, 154, n. 6, Dec. 1978.        

3. JOARDER, A.K.; TARANTOLA, D.; TULLOCH, J. — The Eradication of Smallpox from Bangladesh, W.H.O., New Delhi, 1980.        

4. LANCET — "Randomized Trial of Alternative Formulation of Oral polio Vaccine in Brazil". The Lancet, Saturday 27 Feb. 1988 (Separata).        

5. OMS — "La Variole est Morte" — Santé du Monde, Organisation Mondiale de la Santé, Genève, Mai, 1980.        

6. OMS — "Una Imagen Del Pasado"? Revista Salud Mundial OMS — Ginebra, Deciembre de 1989.        

7. OPS — Simposio Internacional sobre el Control de la Poliomielitis" Publicación Científica de la OPS n. 484 — Washington, D.C. 1985.        

8. OPS/OMS — "VI Reunion Del Grupo Técnico Asesor Del PAI para La Erradicación de la Polio", Buenos Aires, Argentina, 1 a 4 de Noviembre de 1988, OPS/OMS, Informe Final.        

9. W.H.O. — The Eradication of Smallpox, World Health Organization, Geneva, 1980.        

 

 

1 Debate realizado no Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Ensp/Fiocruz, em 28 de junho de 1989.

* Pesquisador-assistente do Departamento de Epidemiologia, Ensp/Fiocruz.

** Médico Sanitarista, Departamento de Epidemiologia, Ensp/ Fiocruz.

*** Professor visitante, Departamento de Epidemiologia, Ensp/ Fiocruz.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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