RESENHA/REVIEW

 

 

Eduardo A. Mendonça

Núcleo de Doenças Endêmicas Samuel Pessoa; Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

 

 

Os Homossexuais e a Aids: Sociologia de uma Epidemia. Michael Pollak. Estação Liberdade: São Paulo, Brasil, 1990. 212 p., gráficos, tabelas e bibliografia. CR$ 25.000,00

A obra de Pollack coloca especificamente a luta homossexual frente à AIDS, pensando a ação institucional de controle e prevenção, os conflitos pessoais e coletivos de identidade e comportamento e a disputa ideológica pertinente à epidemia de AIDS na França.

A análise encaminha o tema da gestão do risco e homossexualidade face às liberdades civis e responsabilidades individuais. Também discute a questão da passagem de informação ao público e a tensão gerada, decorrente do confronto de interesses diversos.

Na primeira parte (capítulos l, 2 e 3) estão os resultados de pesquisas anuais realizadas na França junto a leitores da revista homossexual Gai Pied Hebdo nos verões de 1985, 1986 e 1987, de caráter qualitativo, através de relatos biográficos sobre trajetórias individuais na tentativa de reconstruir a lógica do universo homossexual e sua dinâmica. Outros trezentos homossexuais foram utilizados como controles, com características semelhantes à população masculina francesa quanto a indicadores de saúde e sócio-culturais; outros controles foram aidéticos, soropositivos e pessoas com sinais clínicos ou não, seus amigos, pais, amantes e médicos.

As entrevistas enfatizaram a AIDS em relação à homossexualidade e identidade. Os resultados apontaram para a implicação de status sorológico como importante na definição da vida pessoal e crise de identidade para os mais atingidos.

Na segunda parte (capítulos 4, 5 e 6) está o espectro da marginalização, estigmatização e preconceitos, juntamente com as disputas ideológicas perpassadas de concreções imaginárias milenares, com origens nas grandes epidemias históricas: são os esquemas culturais da punição do desviante social, da crítica da conduta pessoal e do comportamento sexual, que na homossexualidade sofre o agravo da diferenciação sócio-sexual.

Nesse contexto das forças sociais em conflito surge o amplo debate em torno de medidas e controle de prevenção da AIDS e defesa dos direitos de doentes e soropositivos e os efeitos na vida cotidiana.

O capítulo 1 aborda homossexualidade e identificação nas relações complexas que envolvem AIDS, ruptura familiar, comportamento sexual, exclusão da vida social normal e autocrítica na gestão do risco.

A análise situa identificação em função de origem social, vínculos de classe e residência, em relação à idade, profissão e instrução, o que dá sentido a diversos modelos de comportamento. Traduz-se, assim, a fronteirização homo/heterossexual e a diferenciação sócio-sexual referente à normalidade vigente.

Percorrendo esta linha, configura-se o vocabulário homossexual de auto-referência e seus termos de época e respectivos modos de ser (homophile, pédé, gay e clone), na indicação de estratégias de reafirmação do modo de vida homossexual, na desconstrução da marginalização imposta: reivindicação identificatória.

A prática homossexual mostra-se também como transgressão, negação da heterossexualidade, encaminhamento da superação dos próprios limites individuais e coletivos, determinando a sexualidade como campo próprio da diferenciação, cerne do contexto dinâmico da sociedade homossexual. A ADDS surge como divisor de águas nessa progressão à identificação diferenciada, causando processos angustiosos de reavaliação de comportamentos e conflitos na autogestão.

O capítulo 2 apresenta a problematização da condição homossexual durante a epidemia, analisando a questão da identidade e risco. Enfoca as inquietações que a AIDS trouxe para os homossexuais: de um lado, a necessidade de evitar o contágio e a propagação; de outro, a necessidade da identidade homossexual como forma de manutenção de um modo de ser. Circulando entre ambos, a visibilidade e a invisibilidade da homossexualidade individual e a adesão ou não ao coletivo grupal.

O risco torna-se, assim, ponto de partida para o modo de vida e a escolha gestionária, um efeito da visão de mundo própria de cada indivíduo ou grupo, com referenciais em idade, profissão e origem. Com a AIDS, as escolhas racionalmente efetuadas em termos de mudança de hábitos, sexo seguro e autogestão do risco estão sintonizadas com a capacidade de iniciativa e auto-estima, que potencializaram a possibilidade de outro padrão de (homo)ssexualidade.

No capítulo 3 são analisadas as diversas concepções sobre a responsabilidade individual de pessoal médico e homossexuais e a relação médico/paciente na AIDS como fator importante nas transformações da vinculação grupal-familiar que a doença provoca. O cenário da análise comporta a mídia, o processo de institucionalização hospitalar e a luta pela dignidade pessoal no contexto da própria incorporação do novo status e da compreensão do fato. Enfoca a importância da informação no esclarecimento e na formação de concepções de médicos e populações-alvo, inclusive doentes. Finalmente, fala das implicações da AIDS e da identificação homossexual nas relações pessoais, no trabalho, na vida afetiva, na possibilidade de exclusão social e no engajamento político e/ou religioso (resistência e dignificação).

O capítulo 4 apresenta a construção estatístico-epidemiológica dos grupos de risco e a interseção de modelos explicativos biológicos e psicossociais, em correspondência às categorias "grupo de risco" e "estilo de vida". Aponta, então, a projeção que a caracterização epidemiológica faz sobre a homossexualidade como grupo exposto. Situa o amplo debate social que ultrapassa a esfera médica, assim como a prevenção.

Conduz, assim, a análise sobre a competência da gestão do problema da AIDS e coloca a emergência das associações de combate à AIDS e de apoio aos doentes, às pesquisas e prevenção, enfatizando o trabalho de recuperação individual e o resgate da convivência social. Denota, então, as redes de alianças solidárias entre expostos, associações/médicas e filantrópicas, revelando a importância do trabalho voluntário da sociedade civil organizada, principalmente em situações políticas de conflito de forças sociais e inoperância do estado.

No capítulo 5 está o papel dos meios de comunicação de massa na produção, seleção, acompanhamento, elaboração e ajuste da informação ao público.

Acentua também a adversidade dos pontos de vista informadores e a necessária inter-relação entre AIDS e homossexualidade, como no caso da invisibilidade e estereotipagem construída na imprensa conservadora e combatida na imprensa mais progressista. Ilumina, assim, o debate ideológico travado entre as forças sociais e dá entendimento às tensões subjacentes na sociedade, veiculando caminhos de expressão.

O capítulo 6 traz o problema da desdramatização da AIDS, do debate político em torno do poder de palavra e ampliação do fenômeno para toda a sociedade. É dado enfoque às formações discursivas de setores sociais na definição de risco e a mobilização política. Enfatiza a racionalidade e a responsabilidade na administração do risco por setores mais organizados e esclarecidos e a crítica e imputação de perigos por setores mais conservadores e seus representantes políticos, que colocam idéias de controle social e discriminação.

Situa ainda os problemas trazidos pelo debate político: a desmedicalização da AIDS, a baixa prevenção — pois o campo de disputas se dá nos meios de comunicação de massa e os efeitos se dão no espaço da informação, a nível das respostas sociais. A formação de opinião interfere no posicionamento dos indivíduos, dado que os sujeitos da ação estão imersos em suas visões de mundo.

Na conclusão, alguns pontos são delineados: 1) o que se entende por regime moderno de uma epidemia; 2) o impacto dos meios de comunicação de massa sobre a opinião pública; 3) o papel das associações na prevenção. Enfatiza, também, a importância da racionalidade e esclarecimento na reação de adesão a modelos mais democráticos ou mais repressivos na gestão do risco e formas de representação. Pontua o avanço do jogo político no qual setores sociais mais avançados (classes médias) terão maior autodeterminação e setores mais desorganizados sofrerão maiores repressões.

Afirma, ainda, que deve-se pensar a política da AIDS como função da evolução das relações complexas entre especialização científica, meios de comunicação de massa e associações. As estratégias de saúde pública são efeitos de alianças e resultam de concorrência entre pontos de vista opostos quanto às relações e forças, dinamizando-se em termos da capacidade de justificar suas propostas em nome do interesse geral.

A gestão da AIDS, dado o jogo complexo de forças sociais, dá lugar a uma ordem negociada, revelando as diferenças e contradições entre políticas, imagens e valores veiculados pelos diferentes discursos presentes no controle social da epidemia.

A resposta homossexual à AIDS exemplifica talvez o regime moderno da ação social perante um problema grave que envolve a sobrevivência física e política da sociedade, como se deu com a pandemia de AIDS, e a problemática ampla gerada que se constituiu na sociedade ocidental.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br