RESENHA/REVIEW

 

 

Carlos E. A. Coimbra Jr.

Núcleo de Doenças Endêmicas Samuel Pessoa; Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

 

 

Vila, Pobre Vila!: Por uma Antropologia Médica. Ernesto de Freitas Xavier Filho. Sagra Editora: Porto Alegre, Brasil, 1991. 190 p., figuras, bibliografia. (Brochura) ISBN 85-241-0310-8 CR$3 5.000,00

A antropologia médica tem experimentado grande desenvolvimento teórico nos últimos anos, particularmente nos EUA e em alguns países europeus. No Brasil, os primeiros sopros deste movimento começaram a chegar muito recentemente, e o assunto já desperta interesse em centros de pesquisa voltados para a investigação biomédica. O trabalho de Xavier Filho reflete este momento, mas, infelizmente, o produto final deixa muito a desejar.

"Vila, Pobre Vila!" pretende abordar o tema saúde/doença sob uma perspectiva antropológica, baseado em trabalho de campo realizado entre os meses de abril e setembro de 1987 em Santa Bárbara, vila habitada por população de baixa renda na periferia de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Dividido em oito capítulos, o trabalho carece de um arranjo teórico-metodológico coerente. Na verdade, os capítulos poderiam ser lidos em qualquer seqüência, pois uma leitura seqüenciada não propicia, necessariamente, maior compreensão da obra como um todo. Exemplo típico da mistura de assuntos encontra-se no Capítulo 4. Neste, o autor inseriu nas páginas 101-104, sob o título "Stanford: Um Espelho no Exterior", trecho de conversa que manteve com o antropólogo C. Barnett, por ocasião de viagem que fez aos EUA com sua família. Apesar de justificar a inserção alegando que este contato teria sido "bastante proveitoso para a interpretação dos dados", não se vê em nenhum outro capítulo tentativa de análise de acordo com a linha do referido antropólogo — por sinal, nenhum dos inúmeros trabalhos de Barnett chega mesmo a ser listado na bibliografia.

Sob o ponto de vista metodológico, o trabalho apresenta sérias lacunas, agravadas pelo fato de o autor ter optado por "apresentar-se" à comunidade como médico à disposição para examinar adultos e crianças. Desta forma, o autor passou boa parte do seu tempo prestando consultas domiciliares, distribuindo receitas e medicamentos, orientando condutas terapêuticas e internações, além de criticar diagnósticos e encaminhamentos feitos por outros médicos da rede pública. São óbvias as implicações desta postura na obtenção de dados a serem usados num estudo antropológico, já que, ao identificar-se como agente da "medicina ocidental", o pesquisador restringe suas possibilidades de obter informações importantes sobre percepção de saúde e doença, etnoetiologias e cuidados com o paciente, assim como a utilização de serviços médicos oficiais e não-oficiais pela população.

Outro fato recorrente é que Xavier Filho, sempre que se vê em situações onde o informante acusa e/ou critica os serviços médicos prestados nos hospitais e postos de saúde da rede pública, defende-os sem a preocupação de verificar, como antropólogo, o que está se passando nas relações médico/paciente no âmbito dessas instituições. Tal postura por parte do autor leva a interpretações precipitadas quanto ao comportamento dos habitantes da vila frente a doenças. Por exemplo, não são poupadas críticas à mãe de uma criança com atrofia de qudril, chamando-a de "desinteressada", por ela não acatar sua recomendação de ir à procura de um ortopedista (p. 35).

A realização da pesquisa de campo em antropologia médica oferece ao investigador inúmeras oportunidades para a elaboração de modelos teóricos na busca de entender o "outro" — objetivo maior da Etnografia. Apesar de ter tido várias oportunidades de aprofundar a coleta de dados de importância na construção de um modelo que desse conta do sistema de crenças e práticas médicas de Santa Bárbara, o autor limita-se a julgar apressadamente os fatos, denotando idéias preconcebidas sobre os comportamentos observados.

Suas interpretações e construções teóricas são tênues e pouco claras, deixando transparecer claramente as bases preconceituosas e ideológicas sobre as quais estão ancoradas. A associação entre jovens, rock tocado em um volume "desusado" com um "entreposto de maconha" (p. 29) é exemplo típico de como o autor expressa seu preconceito em relação a comportamentos que não é capaz de apreender desprovido de sua postura ego-etnocêntrica. Outro exemplo é o alcoolismo, muito comum entre os homens de Santa Bárbara, segundo o autor (cf. pp. 20, 29 e 44, dentre outras). Em um único momento Xavier Filho deixa passar um pouco da percepção de um informante a respeito do alcoólatra, onde o mesmo expressa compaixão (p. 44). O autor mostra-se, de certa forma, chocado pelo fato de seu informante não expressar "repreensão", o que, de acordo com sua ótica, parece-lhe mais apropriado.

O autor coloca lado a lado citações de autores mais diversos da antropologia, como Malinowski, Lévi-Strauss, Turner, Leakey e Radcliffe-Brown, juntamente com Curt Nirnuendaju, Francisco Salzano, Peter Fry, Darcy Ribeiro, dentre muitos outros, traçando paralelos entre eles (vide capítulo 5). No entanto, tal costura de pensamentos tão díspares, alinhavada sem uma linha de raciocínio definida, não imprime vitalidade na narrativa para convencer o leitor do acerto de suas teorias.

Em suma, o livro de Ernesto Xavier Filho caracteriza-se por ausência de discussão teórica, fruto de sua pouca familiaridade com categorias e conceitos antropológicos básicos. A etnografia é pobre, não passando da descrição de fragmentos soltos de uma cultura que o autor está longe de compreender. Sua tentativa de análise dos processos sócio-econômicos e políticos nos quais os habitantes de Santa Bárbara estão inseridos também carece de um mínimo rigor teórico (Capítulos 5 e 6).

É, na verdade, o próprio autor quem melhor define sua obra, ao admitir que "...estava empenhado apenas em uma busca, mas sem saber o que buscava" (p. 18). A leitura de "Vila, Pobre Vila!" nos leva a refletir sobre a validade da publicação de pretensas etnografias que, em essência, não passam de relatos de experiências pessoais. Também fica o alerta para os riscos da produção de obras como esta num país onde a antropologia médica vem, somente agora, dando seus primeiros passos ruma à maturidade e melhor definição de seu campo, pela ameaça de comprometer sua credibilidade. Melhor mesmo seria dar novo título ao livro de Xavier Filho...quem sabe..." Vila, Pobre Vila: Como não se Fazer uma Antropologia Médica".

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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