ARTIGO ARTICLE

 

ENDEF e PNSN: para onde caminha o crescimento físico da criança brasileira?

 

ENDEF and PNSN: trends in physical growth of Brazilian children

 

 

Carlos Augusto MonteiroI; Maria Helena D'Aquino BenicioI; Roberto IunesI; Nelson da C. GouveiaI; José Augusto de A. C. Taddei I, II; Maria Aparecida A. CardosoI

IFaculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Avenida Dr. Arnaldo, 715, São Paulo, SP, 01255-000, Brasil
IIDepto. de Pediatria da Escola Paulista de Medicina. Rua Botucatu, 720, São Paulo, SP, 04023-062, Brasil

 

 


RESUMO

O trabalho compara os resultados dos dois inquéritos nutricionais de abrangência nacional realizados no Brasil, quais sejam, O Estudo Nacional de Despesa Familiar (ENDEF), de 1974-75, e a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN), de 1989. A comparação indicou uma redução de mais de 60% da prevalência de desnutrição, avaliada através de antropometria. Resultados de inquéritos regionais e o comportamento da mortalidade infantil ao longo do período mostraram-se ambos consistentes com a melhoria do estado nutricional. Observou-se uma tendência de memor redução dos níveis de desnutrição naquelas regiões (Norte e Nordeste) onde as prevalências eram mais elevadas na década de 70, ampliando os diferenciais regionais. A melhoria do estado nutricional infantil é atribuída à elevação da renda familiar na década de 70, e à expansão contínua da cobertura de serviços públicos (saneamento, saúde, educação e programas de suplementação alimentar) nas décadas de 70 e 80, ambas favorecidas pela queda pronunciada observada nos níveis de fecundidade da população. O autores alertam para o fato de que a inexistência de sinais de recuperação econômica, aliada aos cortes nos gastos sociais do governo e a persistência de desiqualdade na distribuição de renda, entre outros fatores, tornam improvável que se repitam nos próximos anos os avanços na situação nutricional observados desde a década de 70.

Palavras-Chave: Antropometria; Estado Nutricional; Nutrição da Criança; Qualidade de Vida; Fatores Sócio-Econômicos


ABSTRACT

This paper compares the results of two nationally representative nutritional surveys carried out in Brazil: the "Estudo Nacional de Despesa Familiar (ENDEF)" (National Survey on Household Expenses), conducted in 1974-77, and the "Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN)" (National Survey on Health and Nutrition), conducted in 1989. The findings point to a reduction of more than 60% in the prevalence of undernutrition, as evaluated by anthropometric parameters. The results from regional surveys and the trends in infant mortality throughout the 1970s and 1980s are consistent with the improvements in nutritional status. Less striking reductions in undernutrition rates were observed in certain regions of the country (e.g., the North and Northeast), where prevalences were higher in the 1970s, resulting in a widening of regional differences. The improvements in child nutrition are attributed to moderate increases in family income, particularly in the 1970s, and to the expansion of sanitation, public health, and educational services, as well as food supplementation programs, which were also favored by a fall in fertility levels. The authors call attention to the fact that the lack of clear-cut indications of economic recovery in Brazil recently, coupled wih cuts in government budgets for social services and the persistence of inequality in income distribution, among other factors, make it unlikely that improvements in nutritional status, as observed in the 1970, will take place in the upcoming years.

Key words: Anthropometry; Nutritional Status; Child Nutrition; Quality of Life; Socioeconomic Factors


 

 

INTRODUÇÃO

O acompanhamento da situação nutricional das crianças de um país constitui um instrumento essencial para a aferição das condições de saúde da população infantil, sendo uma oportunidade ímpar para se obter medidas objetivas da evolução das condições de vida da população em geral (Mason, 1984). A essencialidade da avaliação nutricional decorre da influência decisiva que o estado nutricional exerce sobre os riscos de morbi-mortalidade e sobre o crescimento e o desenvolvimento infantis. A inferência sobre as condições gerais de vida da população advem da origem tipicamente multicausal da desnutrição e da íntima relação que a nutrição infantil mantém com o grau de atendimento de necessidades básicas, tais como alimentação, saneamento, assistência à saúde, educação, entre outras.

Nas duas décadas enfocadas por este estudo, a situação brasileira tem sido de grande dinamismo no que se refere à evolução de fatores que influenciam o atendimento das necessidades básicas de uma população. Do ponto de vista do crescimento econômico, assiste-se a taxas de crescimento espetacular na década de 70 (sobretudo na primeira metade) e de crescimento medíocre e/ou recessão em toda a década de 80. A distribuição de renda segue extremamente concentrada nas duas décadas, e a população que vive em condições de "pobreza absoluta", a qual diminui sensivelmente na década de 70, torna a aumentar na de 80 (Tolosa, 1991). Do ponto de vista da oferta de serviços públicos, a evolução geral parece positiva, embora detectem-se grandes disparidades no desempenho de diferentes setores e na distribuição regional dos recursos (World Bank, 1988). Alterações demográficas importantes também ocorrem no período, com destaque para a crescente urbanização do país e para a trajetória declinante da fecundidade (FIBGE, 1988).

O balanço líquido das décadas de 70 e 80, seja com relação à saúde infantil, seja com relação às condições gerais de vida da população, é matéria relevante ainda não totalmente esclarecida no país. Contribuir para este esclarecimento, resgatando a trajetória da nutrição infantil no período 1975-1989, é o propósito essencial deste estudo.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Dois inquéritos nutricionais de abrangência nacional são analisados neste artigo: o Estudo Nacional da Despesa Familiar — ENDEF, realizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de agosto de 1974 a agosto de 1975 e a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição — PNSN, realizada pela mesma Fundação IBGE entre junho e setembro de 1989 (doravante, tais inquéritos serão referidos simplesmente como inquéritos nacionais de 1975 e de 1989).

Publicações específicas descrevem em detalhe a metodologia empregada na realização dos dois inquéritos (FIBGE, 1983a; FIBGE, 1983b; Fletcher, 1988; INAN, 1990). Resumidamente, pode-se dizer que tratam-se de inquéritos domiciliares realizados sobre amostra probabilística das famílias brasileiras, onde, a par de outras informações, foram obtidos dados antropométricos que permitem avaliar o estado nutricional da população e, em particular, estabelecer as prevalências nacional e regional da desnutrição infantil. Como de hábito nos inquéritos domiciliares realizados no país, as áreas rurais da região Norte (2,3% da população em 1980) não foram incluídas no plano amostral dos dois inquéritos. As áreas rurais da região Centro-Oeste foram estudadas em 1989, mas não em 1975, sendo tal fato considerado no confronto dos resultados obtidos pelos dois inquéritos.

A Tabela 1 descreve a distribuição regional da amostra de menores de cinco anos estudada pelo ENDEF e pela PNSN. Incluem-se na tabela apenas crianças com informações válidas para peso, idade e sexo, as quais representam, nos dois inquéritos, mais de 95% das crianças estudadas.

 

 

Nos dois inquéritos, a prevalência da desnutrição infantil é estimada a partir do cômputo das crianças com índices peso/idade inferiores a menos dois escores z, ou seja, crianças com pesos aquém de dois desvios padrões da mediana de peso esperada para idade e sexo. O cálculo dos índices antropométricos foi realizado nos dois inquéritos com auxílio do programa "ANTHRO" (Sullivan & Gorstein, 1990), que faz uso do padrão internacional de referência NCHS/OMS (Dibley, 1987). A opção pelo índice peso/idade e a escolha do nível de corte e do padrão de referência seguem recomendações da Organização Mundial da Saúde (WHO, 1986) e acompanham a tendência majoritária na análise de inquéritos antropométricos de abrangência nacional (United Nations, 1987, 1989).

 

RESULTADOS

A Tabela 2 apresenta estimativas da prevalência da desnutrição infantil no Brasil obtidas pelos inquéritos nacionais de 1975 e 1989 a partir da identificação das crianças com índices peso/idade inferiores a menos dois escores z. Para o conjunto das crianças menores de cinco anos, as prevalências estimadas pelos dois inquéritos são de 18,4% e 7,1%, respectivamente, o que configura um recuo no problema da desnutrição da ordem de 60%. Reduções notáveis na freqüência de crianças desnutridas são observadas em ambos os sexos (Tabela 2).

 

 

A Tabela 3 apresenta a prevalência da desnutrição (índices peso/idade inferiores a -2,0 escores z) nas diferentes idades, segundo o ENDEF e a PNSN. O importante aqui é notar que reduções substanciais de prevalência subsistem em todas as faixas etárias.

 

 

A Tabela 4 apresenta a prevalência da desnutrição infantil nas cinco macrorregiões brasileiras, segundo os inquéritos realizados em 1975 e 1989.

 

 

Reduções expressivas na prevalência da desnutrição são observadas por todo o país. Entretanto, nota-se que são as regiões com maior prevalência de desnutrição em 1975 — o Norte e o Nordeste — aquelas que relativamente menos se beneficiaram, de tal sorte que aprofunda-se o hiato que separa estas regiões das regiões do Centro-Sul do país. Tomando-se as regiões extremas com relação ao comportamento da desnutrição no período — as regiões Nordeste e Sul —, verifica-se que, de 1975 a 1989, a razão de prevalências entre as duas regiões passa de 2,5 para 5,0 vezes.

A Tabela 5 revela como evoluiu a prevalência da desnutrição entre os segmentos "mais pobres" e "mais ricos" da sociedade brasileira. Os quatro estratos que aparecem na referida tabela são constituídos a partir da distribuição quartilar da renda familiar per capita tal como estimada pelo ENDEF, em 1975, e pela PNSN, em 1989. Ou seja, comparam-se os 25% das crianças" mais pobres" de 1975 com os 25% das crianças "mais pobres" de 1989, não se levando em conta o nível real da renda nos dois momentos. O mesmo vale para os quartis subseqüentes.

 

 

Progressos consideráveis são verificados com relação aos quatro estratos de renda. À semelhança do observado com a estratificação regional, evidencia-se que os estratos que partem de prevalências mais elevadas — neste caso, os "mais pobres" — são os que relativamente menos progridem. O resultado final é a redução global da desnutrição, acompanhada da ampliação do diferencial de prevalência entre "pobres" e "ricos". Considerando-se os quartis extremos da renda familiar (ou seja, os 25% mais pobres e os 25% mais ricos), a razão de prevalências entre os mesmos amplia-se, no período, de 5 para 10 vezes.

 

DISCUSSÃO

A partir de dois inquéritos de abrangência nacional, pôde-se demonstrar que, entre meados da década de 70 e final da década de 80, houve substancial progresso no estado nutricional das crianças brasileiras menores de cinco anos. Reduções expressivas na prevalência da desnutrição infantil — entre 50% e 80% — foram observadas em todas as regiões do país e em diferentes estratos econômicos. Evidenciou-se, também, que os grupos populacionais que partiram de prevalências mais elevadas — os que vivem nas regiões Norte e Nordeste e os de menor renda — foram menos beneficiados do que os demais, de modo que os diferenciais regionais e econômicos, já marcantes em 1975, intensificaram-se em 1989.

O estado nutricional infantil depende basicamente do consumo alimentar e do estado de saúde da criança. Tais fatores, por sua vez, dependem da disponibilidade de alimentos no domicílio, da salubridade do ambiente e da adequação dos cuidados dispensados à criança. Alimentos, ambiente e cuidados à criança são essencialmente condicionados pelo nível da renda familiar, embora tal condicionamento possa ser modulado, entre outros fatores, pela oferta de serviços públicos de saúde, saneamento e educação, e pela presença de programas governamentais "compensatórios", em particular programas de subsídios ou de doação de alimentos. Ainda que o nível de renda das famílias e a implementação de programas e serviços públicos sejam função do crescimento econômico dos países, há aqui também que considerar a existência de fatores moduladores. Com relação à renda, interessa sobretudo considerar o perfil de distribuição da riqueza nacional e os fatores históricos, políticos e econômicos que a determinam. Com relação à implementação de programas e serviços, importa verificar a fatia do orçamento público destinada ao setor social e a orientação e eficiência dos investimentos governamentais no setor. Um modelo dinâmico da causalidade do estado nutricional infantil deve ainda considerar eventuais modificações da conjuntura demográfica (crescimento populacional, migração, composição das famílias) e seus efeitos, quer sobre a renda familiar, quer sobre o alcance de programas e serviços públicos.

A complexa causalidade da nutrição infantil dá base para que várias hipóteses sejam cogitadas para justificar a redução na prevalência da desnutrição. Uma delas é a que atribui papel preponderante à melhoria da situação econômica da população. A outra atribui semelhante papel à atuação de serviços e programas.

A Tabela 6 sintetiza os dados disponíveis sobre a evolução da economia brasileira ao longo das décadas de 70 e 80. Desde logo, verifica-se que as tendências não são homogêneas no período. De 1970 a 1976, a atividade econômica nacional cresce, em termos reais, mais de 50%, enquanto a renda da população economicamente ativa e a renda familiar per capita crescem, respectivamente, 50% e 80%. No mesmo período, apesar da intensificação da concentração da renda, reduz-se em mais de 50% a proporção de indivíduos vivendo em "pobreza absoluta" (ou seja, vivendo com rendimentos inferiores à "linha de pobreza" de um quarto de salário mínimo per capita, este considerado a valores reais de 1980). Na segunda metade da década, o crescimento da atividade econômica é modesto, a concentração da renda não se altera substancialmente, e mantêm-se os níveis médios de renda e a proporção daqueles que vivem em "pobreza absoluta". Na década de 80, o quadro geral é de recessão econômica, deterioração dos níveis médios de renda de todos os estratos, crescimento vertiginoso da inflação, concentração da renda novamente em ascenção e recrudescimento da "pobreza absoluta". Parte dos ganhos econômicos auferidos nos anos de intenso crescimento econômico do país é, portanto, revertida durante a década de 80.

 

 

Tomando-se os anos de 1976 e 1988 (anos mais próximos à realização dos inquéritos para os quais há disponibilidade de dados) como indicativos da situação da renda das crianças examinadas pelo ENDEF e pela PNSN, descartar-se-ia qualquer explicação econômica para a melhoria nutricional. Entretanto, há aqui que se considerar que os déficits ponderais que caracterizam a desnutrição infantil refletem a experiência nutricional da criança desde o seu nascimento, e não apenas a situação atual. Neste sentido, considerando-se a faixa etária de menores de cinco anos examinada pelos dois inquéritos, importa comparar as situações econômicas médias vividas na primeira metade da década de 70 e na segunda metade da década de 80, o que, desde logo, não é tarefa simples, dada a indisponibilidade de dados econômicos para todos os anos.

Adotando-se a média entre os anos de 1970 e 1976 como indicativa da situação econômica em que viveram as crianças examinadas pelo ENDEF e a média entre os anos de 1985 e 1988 como correspondente às crianças examinadas pela PNSN, conclui-se que o balanço econômico do período ainda é positivo. Com relação especificamente à proporção de indivíduos vivendo com rendimentos inferiores à linha da "pobreza absoluta", possivelmente o indicador mais diretamente relacionado à evolução do estado nutricional, os índices médios para os dois períodos seriam de 40,5% e 28,9%, respectivamente, o que configura uma redução não desprezível nos números da pobreza (pouco menos de 30%).

A observação das trajetórias da "pobreza absoluta" nas cinco macrorregiões, tal como efetuada para o país como um todo, indica uma diminuição variável do problema em todas as regiões: cerca de 40% nas regiões do Centro-Sul, 26,8% na região Norte, e apenas 17,3% na região Nordeste (Tabela 7).

 

 

A Tabela 8 descreve a evolução da cobertura de serviços de saneamento, energia elétrica, saúde e educação ao longo das décadas de 70 e 80. A cobertura dos serviços de saúde contempla tanto a disponibilidade de cuidados primários de saúde, indicada pela cobertura de vacinas administradas primordialmente por centros de saúde, quanto a disponibilidade de assistência médica, indicada, neste caso, pelo número de médicos, de leitos hospitalares de pediatria e de consultas pagas pela Previdência Social. Com relação à educação, privilegia-se a escolaridade elementar da população em geral e, em particular, das mulheres em idade reprodutiva.

 

 

Em contraste com a situação econômica, as tendências desta vez são uniformes e positivas ao longo das duas décadas. Progressos notáveis são observados em todos os indicadores examinados, não sendo raro identificar situações onde as taxas de cobertura dos serviços duplicaram ou mesmo triplicaram ao longo das duas décadas — como é o caso da rede de água, das vacinas, do número de médicos e da escolaridade elementar de mulheres de 25 a 29 anos de idade.

A evolução da oferta de serviços nas cinco macrorregiões revela que progressos substanciais foram feitos em todo o país (Tabela 9). Entretanto, a exemplo do que já havia sido observado com relação à diminuição da pobreza, a "velocidade" de redução do problema — no caso, a proporção da população não atendida pelos serviços — difere de região para região, sendo, de modo geral, superior nas regiões do Centro-Sul. Tal característica determina, uma vez mais, o aprofundamento de diferenças regionais já marcantes.

 

 

Em paralelo à expansão da oferta de serviços públicos de saneamento, saúde e educação, expande-se também, no país, a oferta de programas de alimentação e nutrição, sobretudo de programas de suplementação alimentar dirigidos à população em idade pré-escolar. Antes de 1976, tais programas resumiam-se a atividades isoladas e de baixa cobertura promovidas por algumas secretarias estaduais de saúde. A partir de 1976, com a implementação do II Programa Nacional de Alimentação e Nutrição, a suplementação alimentar a crianças menores de cinco anos ganha, gradativamente, dimensões nacionais. Verifica-se que, entre 1976 e 1987, os gastos governamentais com programas federais de suplementação alimentar a pré-escolares cresceram, em termos reais, mais de 14 vezes no período, chegando, em 1987, a representar 5,6% dos gastos totais em saúde e 0,14% do PIB brasileiro (Peliano, 1988).

A cobertura efetiva atingida pelos programas de suplementação alimentar a pré-escolares foi avaliada pela primeira vez no país em 1989, a partir de questões da PNSN dirigidas às crianças da amostra com idade inferior a 48 meses. Para o país como um todo, evidenciou-se que 24,3% (ou cerca de três milhões de crianças) estavam matriculadas em pelo menos um programa de suplementação alimentar, sendo que cerca de 70% delas haviam efetivamente recebido alimentos no último mês. É importante notar que, em contraste com os serviços públicos enfocados anteriormente, coberturas da suplementação alimentar superiores à média foram observadas nas regiões Norte e Nordeste do país (27,8% e 28,4%, respectivamente) e junto às famílias de menor renda (30,5% de cobertura entre a metade das crianças mais pobres do país), o que vem reforçar a relevância destes programas.

Em síntese, as evidências recolhidas indicam ser plausível atribuir aos dois fatores investigados — situação econômica da população e atuação de serviços e programas — um papel positivo na melhoria nutricional registrada entre o início da década de 70 e o final da década de 80. Por outro lado, ganhos econômicos menos expressivos e avanços mais modestos no sentido da universalização da oferta de serviços básicos parecem justificar o menor impacto da melhoria nutricional no Norte e no Nordeste do país, bem como o conseqüente aprofundamento dos diferenciais regionais.

Com base na coincidência observada na década de 70 entre ganhos econômicos extraordinários e expansão da oferta de serviços e programas, poder-se-ia cogitar que a melhoria nutricional observada entre os dois inquéritos tenha se concentrado nos anos 70. Indícios de que pouco se ganhou em termos de nutrição infantil na década de 80 podem ser encontrados nas taxas relativamente constantes de desnutrição pregressa na amostra da PNSN de crianças de 5 a 9 anos (crianças nascidas entre 1980 e 1984; dados não mostrados neste artigo), na notável semelhança na prevalência de desnutridos registrada na região Nordeste por inquéritos realizados em 1986 e 1989 (crianças nascidas entre 1981 e 1986 e entre 1984 e 1989, respectivamente) e mesmo no recrudescimento da mortalidade infantil, observado em algumas regiões no início da década de 80. A ser confirmada, tal situação deve preocupar, pois são ainda muito elevados os níveis de desnutrição no Brasil, sobretudo no Norte e no Nordeste, onde o problema assume proporções endêmicas, a exemplo das sociedades mais pobres do mundo (ver Monteiro et al., 1991, para comparações internacionais quanto à situação nutricional encontrada nas diferentes regiões do país em 1989).

A análise restrita à situação econômica da população e à cobertura de serviços e programas obviamente não permite que se apreenda o conjunto dos fatores que determinam o estado nutricional infantil, incluindo-se as variáveis que influenciam a evolução da renda familiar e o desempenho do setor público. Entre tais variáveis, não se pode deixar de mencionar características demográficas tais como a velocidade do crescimento populacional, os padrões de fecundidade, a estrutura etária e a distribuição espacial da população. Embora a interface entre as dinâmicas demográfica e nutricional no país justifique por si só um estudo independente e pormenorizado, não se pode concluir este artigo sem que se chame a atenção para a evolução extremamente favorável da conjuntura demográfica brasileira ao longo das duas últimas décadas, destacando-se: 1) a formidável redução nos índices de fecundidade e natalidade e a conseqüente menor pressão sobre os serviços e programas de assistência infantil; 2) a constituição de famílias menos numerosas, com índices menores de dependência econômica; e 3) o deslocamento crescente da população para as áreas urbanas do país, onde, de modo geral, são melhores as oportunidades de emprego e de renda e a infra-estrutura social (ver Pastore et al., 1983; FIBGE/Unicef, 1988; Costa, 1991, para uma descrição da trajetória demográfica brasileira nas décadas de 70 e 80).

Finalmente, deve-se aduzir, nada sugere que possam se repetir na década de 90 os progressos nutricionais observados a partir de 1975, ou sequer a situação de estabilidade indicada nos anos mais recentes. Sinalizam para esta direção a inexistência de indícios de recuperação da economia brasileira, a indesejável estabilidade da distribuição da renda nacional, a ameaça constante de cortes sobre gastos sociais — usualmente os primeiros a serem "atacados" por planos de estabilização — e o esgotamento natural das modificações a nível da conjuntura demográfica. Obviamente, apenas avaliações ulteriores, desde logo imprescindíveis, poderão determinar os rumos que o estado nutricional infantil e as condições gerais de vida da população terão seguido nos anos 90.

 

AGRADECIMENTOS

O presente artigo foi elaborado como parte de um projeto sobre tendências de saúde e nutrição da população brasileira financiado pela Organização Mundial da Saúde e pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição. Contribuiu sobremaneira para sua elaboração o suporte técnico-administrativo oferecido ao primeiro autor pela Organização Mundial da Saúde, Unidade de Nutrição, e pelo Subcomitê de Nutrição das Nações Unidas, em Genebra. O trabalho do primeiro autor em Genebra foi possível graças à bolsa de estudos do Programa BID/USP de Desenvolvimento Científico. Versões anteriores deste artigo beneficiaram-se dos comentários e sugestões de Stuart Gillespie, Alberto Torres, Mercedes de Onis e John Mason.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA REIS, J. G.; RODRIGUEZ, J. S. & BARROS, R. P., 1991. A desigualdade de renda no Brasil. In: A Questão Social no Brasil (J. P. R. Velloso, org.), pp. 137-156, São Paulo: IPEA/Nobel        

BONELLI, R. & SEDLACK, G., 1988. Distribuição de Renda: Evolução no último quarto de século. Rio de Janeiro: IPEA.        

COSTA, M. A., 1991. O problema demográfico brasileiro: diagnóstico e perspectivas. In: A Questão Social no Brasil (J. P. R. Velloso, org.), pp. 157-194, São Paulo: IPEA/Nobel.        

DIBLEY, M. J.; GOLDSBY, J. B.; STAEHLING, N. W. & TROWBRIDGE, F. L., 1987. Development of normalized curves for the international growth reference: historical and technical considerations. American Journal of Clinical Nutrition, 46: 736-748.        

FIBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 1971. Anuário Estatístico do Brasil, 1971. Vol. 32, Rio de Janeiro: IBGE.        

_______, 1972. Censo Demográfico, 1970. Vol. 1, T. 1-4, Rio de Janeiro: IBGE. (8º Recenseamento Geral, 1970)        

_______, 1976. Anuário Estatístico do Brasil, 1976. Vol. 37, Rio de Janeiro: IBGE.        

_______, 1980. Anuário Estatístico do Brasil, 1980. Vol. 41, Rio de Janeiro: IBGE.        

_______, 1982/83. Censo Demográfico, 1980. Vol. 1, T. 3, Rio de Janeiro: IBGE. (9º Recenseamento Geral, 1980)        

_______, 1986. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 1985. Vol. 9, T. 1, Rio de Janeiro: IBGE.        

_______, 1987/88. Anuário Estatístico do Brasil, 1987. Vol. 48, Rio de Janeiro: IBGE.        

_______, 1990. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 1988. Vol. 12, T. 1, Rio de Janeiro: IBGE.        

_______, 1983a. Metodologia do Estudo Nacional da Despesa Familiar — ENDEF. Objetivos, descrição e metodologia usada no ENDEF. Rio de Janeiro. (Mimeo.)        

_______, 1983b. Metodologia do Estudo Nacional da Despesa Familiar — ENDEF. Núcleo de Banco de Informações ENDEF. Rio de Janeiro. (Mimeo.)        

FIBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) & UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), 1982. Perfil Estatístico de Crianças e Mães do Brasil. Características Sócio-Demográficas, 1970-1977. Rio de Janeiro: IBGE.        

_______, 1988. Perfil Estatístico de Crianças e Mães no Brasil. A Situação da Fecundidade, Determinantes Gerais e Características da Transição Recente. Rio de Janeiro: IBGE.        

FLETCHER, P. R., 1988. Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição. Plano de amostragem. Brasília. (Mimeo.)        

INAN (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição), 1990. Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição — PNSN-1989. Arquivo de dados da pesquisa. Brasília. (Mimeo.)        

IUNES, R., 1991. Brazilian economy: evolution in the last two decades. São Paulo: NUPENS/USP. (Textos para discussão interna)        

MASON, J. B.; HABICHT, J. P.; TABATABAI, H. & VALVERDE, V., 1984. Nutritional Surveillance. Geneva: WHO.        

Ministério da Previdência e Assistência Social, 1978. INAMPS em dados. No. 1, Rio de Janeiro.        

_______, 1986. INAMPS em dados. No. 10, Rio de Janeiro.        

MS (Ministério da Saúde), 1983. Anais do Encontro Nacional de Controle de Doenças. Brasília: Centro de Documentação do Ministério da Saúde.        

_______, 1990. Situação da Cobertura Vacinal. Brasília: Escopo.        

MONTEIRO, C. A., 1991. Counting the stunted children in a population: a criticism on old and new approaches and a conciliatory proposal. Bulletin of the World Health Organization, 69. (No prelo)        

PASTORE, J.; ZYLBERSTAIN, M. & PAGOTTO, C. S., 1983. Mudança Social e Pobreza no Brasil. (O que ocorreu com a família brasileira?). São Paulo: FIPE/Pioneira.        

PELIANO, A. M. T. M., 1988. Os programas alimentares e nutricionais no contexto da recessão econômica. In: Crise e Infância no Brasil. O Impacto das Políticas de Ajustamento Econômico (J. P. Z. Chahad & R. Cervini, orgs), pp. 185- 220, São Paulo: UNICEF/IPE-USP.        

SULLIVAN, K. M. & GORSTEIN, J., 1990. Anthro. Software for Calculating Pediatric Anthropometry. Version 1. Atlanta: Nutrition Division, Centers for Disease Control.        

TOLOSA, H. C., 1991. Pobreza no Brasil: uma avaliação dos anos 80. In: A Questão Social no Brasil (J. P. R. Velloso, org.), pp. 105-136, São Paulo: IPEA/Nobel.        

UNITED NATIONS, 1987. First Report on the World Nutrition Situation. Geneva: Admnistrative Committee on Coordination - Subcommittee on Nutrition.        

_______, 1989. Update on the Nutrition Situation. Recent Trends in 33 Countries. Geneva: Admnistrative Committee on Coordination - Subcommittee on Nutrition.        

WORLD BANK, 1988. Public Spending on Social Programs. Issues and Options. Washington, D.C.: World Bank.        

WHO (World Health Organization/Working Group), 1986. Use and interpretation of anthropometric indicators of nutritional status. Bulletin of the World Health Organization, 64: 929-941.        

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br