DEBATE/DEBATE

 

Uma saúde pública molecular!?

 

A molecular public health?

 

 

Luis David Castiel

Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 8º andar, Rio de Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil

 

 


RESUMO

As relações da Saúde Pública com a Genética Molecular são enfocadas. Para isto, discutese a noção de Saúde Pública e expressões correlatas, procurando estabelecer seu objeto de estudo e campo de práticas. Além disto, fazse uma breve descrição do precário panorama sanitário no nosso país, destacando a pequena efetividade social do papel atribuído ao sanitarista. Apresenta técnicas e conceitos, desenvolvidos pela Genética Molecular e sua relevância em Saúde Pública. O risco genético é discutido e comparado com a idéia de propensão hereditária, enfatizando aspectos epistemológicos e repercussões éticas. Considera-se a noção de expert e suas relações com o possível perfil do sanitarista para lidar com as questões postas pela Biologia Molecular/Genética Humana nos domínios da Saúde Pública. Por fim, a participação do Estado no estabelecimento das prioridades sociais em Saúde é discutida.

Palavras-Chave: Saúde Pública; Biologia; Genética Molecular; Hereditariedade; Epidemiologia


ABSTRACT

This article focuses on the relationship between Public Health and Molecular Genetics. Both the notion of Public Health and correlate expressions are discussed in an attempt to establish their respective objects of investigation and fields of practice. In addition, a brief description is given of the precarious health conditions in Brazil. The author remarks on the limited social effectiveness of the role ascribed to public health professionals in Brazil. Techniques and concepts developed by Molecular Genetics are presented and their importance for Public Health is analyzed. Genetic risk is discussed and compared to the idea of inherited disposition to disease, with special emphasis on ethical and epistemological points of view. The notion of expert is considered in terms of its adequacy for training health professionals to deal with issues pertaining to Molecular Biology and Human Genetics in Public Health matters. Lastly, the author argues for the role of the state in defining social priorities in health.

Key words: Public Health; Biology; Molecular Genetics; Heredity; Epidemiology


 

 

INTRODUÇÃO

A justaposição da expressão “Saúde Pública” com o adjetivo “molecular” é passível de provocar algum desconforto, ou, talvez, certa estranheza. Como se houvesse algo destoante na vinculação de idéias pertencentes a dois campos discursivos distintos, tanto em termos de seus marcos de referência como de suas práticas.

O primeiro, por si só, pode dar margem a longas discussões quanto sua definição e eventual correspondência com noções veiculadas, muitas vezes, de modo equivalente, como “Saúde Coletiva”, “Medicina Social/Preventiva/Comunitária”, “Higienismo”, “Sanitarismo”.

Neste aspecto, a conotação veiculada pela instância da “Saúde Pública” se refere a formas de agenciamento político/governamental (programas, serviços, instituições) no sentido de dirigir intervenções voltadas às denominadas “necessidades sociais de saúde”.

Já “Saúde Coletiva” implica no pré-requisito essencial da inclusão das idéias de diversidade e heterogeneidade para a abordagem dos grupos populacionais e das individualidades com seus modos singulares de adoecer e/ou representarem tal processo (Birman, 1991) (o que, diga-se de passagem, não costuma ocorrer ao nível da “Saúde Pública”).

“Medicina Social/Preventiva/Comunitária” tende a indicar uma área disciplinar/acadêmica que estudaria o adoecer para além de sua dimensão biológica. Na verdade, em linhas gerais, está voltada para abordá-la ao nível de determinantes sócio/político/econômico/ideológicos.

Outra forma de encarar este problema demarcatório é buscar subsídios nos diversos momentos históricos de reforma em saúde em diferentes formações sócio-econômicas. Deste modo, por exemplo, as origens da idéia de Medicina Social estão ligadas aos movimentos sanitários na França e Alemanha. Por sua vez, Medicina Preventiva, Comunitária e Familiar relacionamse à correspondente história referida aos Estados Unidos e América Latina, Higienismo tem raízes européias e Sanitarismo sugere influências marcadamente britânicas (Paim, 1992).

Há autores que consideram “Saúde Coletiva” como categoria que abrange a corrente crítica constituída pela Medicina Social, pelo movimento preventivista, representado pelos Departamentos de Medicina Preventiva e Social de diversas Faculdades Médicas e pela própria Saúde Pública, institucionalizada em nível estatal. De qualquer modo, parece haver consenso com a caracterização do campo da Saúde Pública mediante dois amplos critérios: a) a vinculação ao aparelho de Estado; e b) a dimensão coletiva como objeto de intervenção (Paim, 1992).

Claro está que tal categorização é por demais abrangente. Conforme as circunstâncias, os campos se interpenetram e nem sempre é possível fazer distinções bem delimitadas quanto aos respectivos domínios e fronteiras. Pode-se conjeturar, enfim, que a compreensão do que seja “Saúde Pública” resulte, em última análise, de pontos de vista dos indivíduos/grupos sócio-econômicos-culturais, condicionados pelas suas idéias acerca do mundo circunjacente, conforme os respectivos interesses, crenças, concepções. Mas, sobretudo, sob as determinações da correspondente formação sócio-econômica (Pires-Filho, 1987).

No presente texto, não há preocupação estrita em aderir incondicionalmente a qualquer das referidas tentativas de delimitação. Mesmo admitindo-se a importância das propostas demarcatórias citadas, para efeitos do escopo deste trabalho, iremos considerar Saúde Pública como um domínio genérico de práticas sociais dirigidas a um ideal de bem-estar das populações – em termos de ações e medidas que evitem, reduzam e/ou minimizem agravos à saúde.

Por outro lado, como se sabe, o adjetivo “molecular” [o termo molécula é de origem francesa (molécule) proveniente do latim escolástico molecula, diminutivo de mole (massa) (Holanda, 1986)], a princípio, carreia referências a um conceito básico, bem definido, que dispõe de consagrado estatuto de cientificidade (proveniente da Química — uma “ciência natural”). Além disto, por servir como instrumento para operar instâncias as mais íntimas possíveis referentes à estrutura e aos mecanismos de ação, porta um vigoroso atributo epistemológico em sua potência explicativa. Atualmente, tal adjetivo encontra especial valorização ao se conjugar ao substantivo “Biologia”, designando um campo disciplinar extremamente prolífico e gerador de consideráveis progressos técnicos e conceituais (como veremos adiante).

Portanto, subjacente à expressão “Saúde Pública molecular”, busca-se formas de pensar avanços da Biologia Molecular no interior da chamada Saúde Pública. Mais especificamente, como as práticas sociais poderão incorporar (ou não) conhecimentos e técnicas ensejados pela Genética Molecular. Isto levando-se em conta, não apenas sua faceta alvissareira, mas, também, especulando-se a respeito dos possíveis “efeitos colaterais” de tal processo. Antes, porém, para fins do desenvolvimento do trabalho, é imperiosa a menção aos cenários onde se dão as atividades médico-sanitárias no nosso meio.

 

MAL-ESTAR NA CULTURA DA SAÚDE PÚBLICA

Não há como evitar a constatação da precariedade do papel atual reservado à esfera da Saúde Pública no contexto dos seus agentes institucionais e de suas respectivas atuações com o propósito de propiciar melhores condições de saúde às populações. Seja no que se refere ao terreno dos Modelos de Prestação de Serviços de Saúde, seja em nível da Pesquisa/ Ensino em Saúde Coletiva.

Desafortunadamente, tornou-se um lugar comum proceder-se às descrições das limitações que cercam ambos setores. Não é o propósito deste texto, mais uma vez, detalhá-las. Outros estudiosos já as fizeram com inegável competência. Mas, sim, situá-las como conseqüências das diversas crises emaranhadas (política, econômica, social, ética, operativa, organizacional) por que passam as relações Estado/Sociedade em um país capitalista periférico como o nosso.

Também não se pode evitar a observação da pobre contribuição que a Epidemiologia — indiscutivelmente, um importante instrumento do campo da Saúde Pública, tem proporcionado. Tanto na sua dimensão investigativa, como nas suas propostas de racionalização dos processos de planejamento e administração de Serviços e Programas de Saúde. Parece que os epidemiologistas, em particular, e os sanitaristas, de um modo geral, permanecem não sendo escutados com atenção pelos setores responsáveis por decisões na área da Saúde.

Quais seriam as razões para tal situação ocorrer? Os tipos de argumentos e/ou evidências produzidas pelo setor médico-sanitário não conseguem satisfazer às expectativas ou interesses dos referidos domínios? Mas, será que, em um contexto como o nosso, pode algum empreendimento deste caráter cumprir tal pretensão? Ou, então, o nó da questão localiza-se na insatisfatória capacidade da referida atividade em responder às dramáticas necessidades sociais de nossa época?

Será que o problema está localizado predominantemente no interior da dita Saúde Pública? Ou, temos, mais propriamente, reflexos da crise de um modelo político-administrativo, concomitante a outra crise — organizacional (especialmente, de gerência e financiamento) das áreas sociais — historicamente negligenciadas. Mas, que se agravaram diante da sucessão de malfadadas ações no campo político-econômico, resultantes de escolhas, pelo menos, equivocadas em um tumultuado trajeto de transições (Castiel, 1994).

De qualquer forma, há, nos dias de hoje, evidências flagrantes do campo sanitário enfrentar simultaneamente a múltiplos e intrincados desafios. Por um lado, encarar questões oriundas da necessidade de lidar com as referidas crises — internas e externas aos cenários do Setor Saúde. Por outro, levar em conta a dimensão (mais geral) de complexificação/fragmentação de processos biológicos/sociais.

Neste quadro, por exemplo, destacam-se as atuais configurações epidemiológicas das doenças infecto-contagiosas, especialmente nos países mais pobres. Isto pode ser notado tanto nas novas formas epidêmicas de “velhas” moléstias que voltaram a grassar, como no aumento da ocorrência de infecção e de casos de doenças aparentemente recentes (como é caso da S.I.D.A, Doença dos Legionários, Toxi-infecções hemorrágicas intestinais por carne processada em redes de fast food provocadas por cepas mutantes de Escherichia coli).

Além disso, a etiopatogenia multifária das enfermidades crônicas não-transmissíveis permanece de difícil abordagem. Isto torna pouco viável a delimitação precisa e o “peso” da participação de seus supostos determinantes. O mesmo se aplica para as manifestações de caráter predominantemente psicossomático ou aquelas em que os fatores considerados psicogênicos têm destacada participação. Ambas apresentam sinais sugestivos de um aumento generalizado na sua ocorrência.

É imprescindível, também, mencionar uma terrível e ameaçadora epidemia dos dias de hoje: a flagrante eclosão de múltiplas situações nas quais a violência, em suas diversas formas, desempenha papel preponderante. Trata-se, indiscutivelmente, de um problema de Saúde Pública com determinantes extremamente complexos e diversificados que demandam distintos saberes e disciplinas para sua abordagem.

Por outro lado, a fragmentação aparece nas atuais formas de organização sócio-culturais. Há fortes indicações que apontam para processos de profunda e irreversível segmentação que ampliam a heterogeneidade dos grupos populacionais que compõem as sociedades contemporâneas.

Esta circunstância parece ocorrer em tal magnitude que a noção de subcultura começa a dar sinais de desgaste para dar conta do fenômeno. Este fato, per se, demanda novas categorias de análise que viabilizem aproximações mais satisfatórias nas propostas de estudar as populações. Dizendo de outra forma: há proliferação de diversas tribos (Maffesoli, 1987) no interior de uma mesma formação sócio-cultural que podem se constituir tanto em termos de guetos, relativamente isolados, como de modo a permitir distintos graus e formas de interpenetração entre seus componentes e outros grupos, simultaneamente.

Estes sintomas foram enunciados pela Dra. Kristine Gebbie, que recentemente ocupou o lugar de Chefe do Departamento de Saúde de Washington, D. C. — cidade reconhecida como sede de conflitos inter-raciais, tráfico de drogas e extrema violência, entre outros problemas. Em um trecho intitulado “Definindo Comunidade em uma Sociedade Moderna”, manifesta sua perplexidade e pergunta (com certa ingenuidade) como encarar problemas sociais de modo mais abrangente, de maneira a deslocar-se do paradigma que contrapõe um “eu” contra um “tu” para outro que inclua “todos nós” de modo equivalente. Mas, mais do que isto, admite a complexidade, a interdependência das relações e as dificuldades na definição de grupo na sociedade moderna. E, além disso, confessa não saber como avaliar a saúde de uma “comunidade” nestas condições (Gebbie, 1993).

Em suma, evidenciam-se as insuficiências das consagradas categorias classificatórias de estratificação social. Torna-se uma tarefa extremamente penosa estabelecer níveis de homogeneidade que permitam estabelecer padrões de vulnerabilidade e suscetibilidade a específicos agravos à Saúde, conforme a inserção em tais categorias. Pois, haverá possibilidades não desprezíveis de variação conforme as características, digamos assim, tribais. Ou seja, uma das resultantes deste processo de fragmentação é a eclosão de microssistemas que apresentam traços muito particulares em relação aos seus modos de vida.

Isto pode ser ilustrado pela variedade de condutas sexuais (e de prevenção a danos à saúde) nos contextos homoeróticos e, também, pelas diferentes práticas de compartilhamento de seringas entre distintos grupos de usuários de drogas endovenosas. Estas circunstâncias estão sendo estudadas em países europeus sob uma nova categoria de análise, denominada cenas de vida (Scheerer, 1993).

Contudo, o surgimento de novas e avançadas técnicas de tipagem gênica propiciadas, por exemplo, pelos conhecimentos da Engenharia Genética pode trazer, como veremos adiante, alterações a este panorama. Mas, quais serão as possibilidades e os efeitos de tais progressos no campo da Saúde Pública? Esta é uma das preocupações centrais deste trabalho. Para isto, é preciso proceder a um breve comentário sobre algumas aquisições especialmente significativas, pertinentes aos domínios da Genética atual.

 

A PERSPECTIVA MOLECULAR NA SAÚDE PÚBLICA

Nos dias de hoje, há uma certa aura, mescla de fascínio e desconfiança, quanto à função e ao alcance da Genética Molecular (e mais especificamente, da denominada Engenharia Genética). Este sentimento popular difuso tem sido explorado com freqüência pelos meios de comunicação de massa que aí encontraram um excelente filão. Basta observarem-se as seções de “Ciência e Tecnologia” da imprensa leiga para perceber a presença constante de temas relativos a tal campo. A própria imprensa leiga já aventou a hipótese de se tratarem de efeitos resultantes da possível intrusão no imaginário popular da idéia do homem estar invadindo os recônditos terrenos reservados ao exclusivo domínio do Divino. Ou seja, dispor do poder de atuar no terreno da criação/alteração da vida... Isto chegou ao ponto de servir de pretexto para obras de divulgação científica com a finalidade de esclarecimento de seus perigos “reais” e “imaginários” dos avanços da Biotecnologia em função da sua percepção pública e repercussão social (Davis, 1993).

Independente disto, os avanços da Biologia Molecular, e, especialmente, das técnicas de manipulação genética no campo da Biomedicina são apreciáveis.

Chega-se postular, inclusive, a emergência de uma “Nova Genética”, definida como “um corpo de conhecimentos e procedimentos baseados na tecnologia do D.N.A. recombinante que cria informação sobre os gens que os indivíduos e as famílias portam” (Richards, 1993: 567).

Um dos exemplos mais revolucionários é o da Reação em Cadeia da Polimerase (P.C.R. - Polymerase Chain Reaction). Esta é uma técnica concebida pelo bioquímico Kary Mullis em meados da década de oitenta (pela qual foi agraciado com o Prêmio Nobel de Química em 1993). Trata-se da ampliação de um processo natural mediado pela enzima Polimerase, através do qual ocorre a replicação de fitas complementares de seqüências específicas de D.N.A. nas células de modo a facilitar e viabilizar o estudo e a análise de gens. Tais investigações, anteriormente, sofriam sérias restrições diante da reduzida magnitude constituída pela estrutura gênica e a conseqüente dificuldade de acesso.

Com este procedimento, é possível, por exemplo, detectar infecções virais e bacterianas nas quais os microrganismos não costumam apresentar-se em quantidades suficientes para o diagnóstico nas amostras patológicas (P. ex.: Mycobacterium tuberculosis, Toxoplasma gondii) (Watson et al., 1992). Estes aspectos indicam a importância em Saúde Pública proporcionada por tal técnica. Assim, torna-se factível, mediante o P.C.R., proceder a mapeamentos geográficos de hospedeiros humanos, reservatórios e vetores (já é consensual a importância deste procedimento no estudo da S.I.D.A.). Além disto, têm sido descobertos importantes métodos de detecção para um grande número de doenças parasitárias (Bendall & Chiodini, 1993) ou crônico-degenerativas.

Por exemplo, uma demonstração da efetividade da abordagem molecular em Vigilância Epidemiológica pode ser vista no estudo de um surto de Doença dos Legionários em um hotel na cidade de Orlando, Flórida. A investigação utilizou anticorpos monoclonais e técnicas de eletroforese em gel para identificar a fonte ambiental de infecção (Hlady et al., 1993).

Amplia-se, também, o conhecimento sobre as próprias doenças genéticas. É possível, mediante o uso de marcadores específicos, a testagem preditiva para determinar os portadores de gens defeituosos, tanto dominantes como recessivos, responsáveis por tais doenças (Richards, 1993).

Além disto, já se começa a cogitar na possibilidade de, mediante terapêuticas da linha germinal (germ-line therapy), aplicarem-se “vacinações genéticas” nas futuras crianças para evitar enfermidades crônicas não-transmissíveis, como câncer, doença coronariana e assim por diante (Tannsjo, 1993).

Por outro lado, há indicações (pelo menos nos países ditos centrais), que uma parcela considerável das admissões em serviços pediátricos (ao redor de um terço) estão, de alguma forma, associadas a distúrbios genéticos. Da mesma forma, as doenças genéticas se constituem numa importante causa de óbito em menores de 15 anos.

Isto mostra como a Saúde Pública se encontra comprometida com a dimensão genética, tanto em nível das técnicas de detecção, como na verificação da morbi-mortalidade da população infantil, onde tais moléstias vêm ocupando um lugar de destaque (nos referidos países) (Watson et al., 1992).

Este panorama (visto acima do Equador) sugere que tal constatação não deva tardar a manifestar-se entre nós. Especialmente, se for levado em conta o processo de transição epidemiológica que sucede no Brasil. No entanto, o enfoque “molecular” dá margem a discussões quando a Epidemiologia — investida no papel de instrumento racionalizador das ações em Saúde Pública — se orienta em direção aos conhecimentos da Genética Humana na busca de alicerces para agenciar determinados programas de pesquisa. Especialmente, no que se refere a sua proposição de obter explicações científicas para deslindar os processos etiopatogênicos ou, então, estabelecer fatores predisponentes na eclosão de agravos à saúde nas populações.

A rigor, para a Biologia, a característica essencial de uma “explicação científica” seria a proposta de um mecanismo. A previsibilidade não constituir-se-ia no ponto central, apesar de poder estar presente (Maturana, 1990).

No entanto, para a Epidemiologia Moderna (voltada para as relações entre as medidas de ocorrência de exposição a supostos determinantes e correspondentes agravos à Saúde), a previsibilidade é fundamental. Pois, está intimamente vinculada à almejada racionalidade pragmática que permeia o campo, base das pretendidas intervenções no âmbito da Saúde Coletiva.

Todavia, as operações do seu dispositivo metodológico não buscam estabelecer mecanismos biológicos. Na verdade, procuram basear-se neles (a “plausibilidade biológica” como um dos critérios para sustentar afirmações da existência de nexos causais nas associações estatísticas entre exposições e agravos encontradas nos estudos epidemiológicos). E, nestas circunstâncias, a Biologia Molecular proporcionaria tais mecanismos com aparente firmeza.

Neste sentido, é ilustrativa a posição de Vandenbroucke ao considerar que a ênfase dada por alguns epidemiologistas aos fatores do ambiente (no sentido mais amplo), mimetiza a discussão entre miasmistas e partidários da teoria contagionista. Tal afirmação se dá em função das críticas do citado autor ao trabalho de dois conceituados epidemiologistas britânicos — Doll e Peto, que elaboraram em 1981 uma detalhada revisão chamada “The Causes of Cancer”. Aí, afirmam, em síntese, que cerca de 80% dos cânceres poderiam ser explicados por alterações no ambiente (Doll & Peto, 1981). Vandenbroucke discorda do sentido vago atribuído à idéia de ambiente. Para ele, a adesão dos (“jovens”) epidemiologistas a um aparato conceitual alternativo à posição “miasmáticoambiental” lhes traria uma superioridade epistemológica em relação aos primeiros (Vandenbroucke, 1988). Esta seria, portanto, a via proporcionada pela proposta de “molecularização” da Epidemiologia, da qual se mostra partidário.

Portanto, Vandenbroucke considera que a saída para a Epidemiologia seria direcionar-se para programas de pesquisa que abordem a interação “ambiente-gene”, sem, contudo, especificar (do mesmo modo que faz ao criticar Doll e Peto) a que “ambiente” se refere. A rigor, esta ordem de problemas demanda abordagens bem mais elaboradas do que sugere. Pois, é preciso dimensionar efeitos extremamente complexos: a) dos gens; b) do ambiente (deve ficar claro que a idéia de ambiente requer uma definição criteriosa, especialmente no que se refere à incorporação de aspectos sócio-culturais); c) da interação entre gens e ambiente.

Na verdade, fica a impressão que sua perspectiva, ao dirigir-se rumo à “Epidemiologia Molecular”, seja a de alcançar a “otimização” do programa epidemiológico de pesquisa reducionista. Não é absurdo pensar que tal pretensão visaria conferir à disciplina epidemiológica um estatuto científico (e social) correspondente àquele proporcionado pela Genética Molecular.

Esta posição é vista com muita simpatia por outros autores que chegam, inclusive, a adotar uma postura, digamos, “casamenteira”, ao sugerir que existem muitas afinidades entre as duas disciplinas (Epidemiologia Clássica e Genética Humana), uma vez que:

“cada uma delas estudam variações em doenças nas populações, baseiam-se e estimulam progressos na Estatística e fazem uso especial da gemelaridade. Na prática atual, epidemiologistas tendem a negligenciar hipóteses genéticas e geneticistas falham ao estudar determinantes ambientais” (Mulvihill & Tulinius, 1987: 339)

Como se, ao conjugar os dois campos, adquirir-se-ia maior poder demarcatório para, em última análise, abordar o propalado problema inato/adquirido (nature/nurture). O que, diga-se de passagem, para certos autores, seria uma questão equivocada. Pois, diante de tantas dificuldades (conceituais/metodológicas) para abordá-lo, este empreendimento se torna pouco promissor. Na verdade, interessa é saber o que se passa entre a informação inicial e o resultado final (Cohen & Lepoutre, 1988).

Pois bem, é perceptível a relevância das perspectivas relativas à abordagem da Genética molecular contemporânea (com a Epidemiologia Moderna como ponta-de-lança) para a Saúde Pública. Agora, é preciso introduzir (e justificar) a apresentação da noção de imprinting genômico, desenvolvida com maior detalhe. Pode-se atribuir sua importância ao fato deste conceito constituir-se em uma recente descoberta. Mais do que isto, por trazer duas notáveis decorrências:

1) amplia o alcance da Biologia Molecular para além da Genética. Pois, avança por terrenos considerados epigenéticos, produzindo uma abordagem bioquímica para etapas mais precoces da ontogênese. Distinta, portanto, do significado atribuído aos processos mais tardios do desenvolvimento embriológico, por um lado, ou, dos processos iniciais de interação com o ambiente, por outro;

2) abala a hegemonia dos modelos mendelianos de explicação dos processos de transmissão hereditária.

A escolha deste tema aparentemente especializado prende-se, além disso, ao fato desta concepção constituir-se em tópico ainda pouco difundido no campo sanitário. Atualmente, está sendo encarado como um conceito promissor para as perspectivas da pesquisa biomédica (Alarcon, 1993). Será que esta afirmação se aplica, mutatis mutandis, para o terreno da pesquisa epidemiológica? Em caso afirmativo, em que medida e quais seriam as possíveis limitações de tal proposição?

Este terreno de indagações aponta, em termos mais amplos, para possíveis desdobramentos e repercussões de descobertas no campo da pesquisa de D.N.A. recombinante na Saúde Pública. Uma vez que, desta forma, dispor-se-iam de novas e importantes ferramentas técnicas e conceituais para o estudo de um grande número de enfermidades.

Torna-se necessária, assim, uma breve descrição de aspectos relacionados a conhecimentos genéticos, essenciais para a percepção da amplitude dos problemas envolvidos.

 

O IMPRINTING GENÔMICO

Para melhor compreensão desta noção, é importante proceder a uma breve revisão de suas origens etológicas (inclusive, para justificar o emprego do termo inglês). Uma definição sucinta de imprinting é aquela proposta por Steven Rose: “o processo em que aves recémnascidas adquirem uma forte preferência por um objeto móvel proeminente” (Rose, 1984: 42). No entanto, Hess relata que pode acontecer em insetos, peixes e em alguns mamíferos, especialmente aqueles herbívoros cujos filhotes têm a capacidade de movimentarem-se logo após o nascimento (búfalos, cabras, carneiros, cervos etc.) (Hess, 1970).

Há referências ao fenômeno que remontam à Idade Média e à Renascença. Como ilustração, Vieira faz alusão a um trecho da “Utopia” de Thomas Morus, publicada em 1518, onde se descreve a criação artificial de pintos sob tal efeito (Vieira, 1983). Mas, foi Konrad Lorenz quem criou a denominação e enfatizou que o fenômeno devia ocorrer numa fase crítica do início da vida do animal (Lorenz, 1952).

O termo original proposto pelo etologista alemão é Pragung, traduzido pelo Dicionário Langenscheidt para “cunho”, do verbo pragen — “cunhar” (Irmen, 1988). A utilização da denominação em Português não se encontra bem estabelecida, sendo comum o uso da expressão inglesa. Mesmo assim, Bracinha Vieira usa “impregnação” na edição lusitana de “Etologia e Ciências Humanas” (Vieira, 1983). A partir de outro campo de saber, mas, referindo-se ao fenômeno em foco, o psicanalista francês Jacques Lacan menciona o processo das “impregnações imaginárias” (Pragung) como base para a constituição do simbólico humano (Lacan, 1978).

Em La Logique du Vivant, de François Jacob, a tradução lusa utiliza “impressão” (Jacob, 1985), da mesma forma que na edição brasileira de “O Cérebro Consciente” de Steven Rose (1984). Todavia, pode-se considerar que a idéia de “impressão” aqui referida diz respeito tanto ao verbo “impressionar” como ao “imprimir”, uma vez que seriam produzidas “marcas”/”inscrições” ao nível neuronal. Temos, ainda, apesar de sua conotação por demais, digamos, “textil”, o termo “estampagem” (Chertok, 1982), que aparece na tradução de “A Hipnose entre a Psicanálise e a Biologia” de Leon Chertok. Diante da indefinição quanto à escolha do termo na língua portuguesa, optou-se neste texto por adotar-se a consagrada expressão inglesa.

Por outro lado, é interessante perceber a preocupação do campo psicanalítico com o fenômeno. Por exemplo, em relação ao bebê humano, a elaboração freudiana contida no “Projeto Para uma Psicologia Científica” sugere que no decorrer das primeiras experiências infantis sucederiam facilitações que “marcariam” o aparato psíquico de modo indelével, sendo responsáveis pela constituição da memória (os traços mnêmicos) (Freud, 1950). Cabe lembrar o fato da palavra facilitação usada na Edição Standard das Obras Completas de Freud não é a mais indicada para dar a idéia contida no termo original Bahnung. A expressão trilhamento, mais próxima, tanto da significação viária, como da metáfora a que dá ensejo, parece bem mais conveniente, como assinala Lacan (1988). Além disso, mais recentemente, em referência aos mecanismos da memória, postulou-se a ocorrência de uma potenciação de longa duração ao nível neural, com algumas similaridades à idéia de facilitação/trilhamento proposta por Freud. Neste caso, ocorreria a participação de receptores estimulantes chamados N-metil D-aspartato (N.M.D.A.), que teriam como antagonistas os receptores de ácido gama-amino-butírico (G.A.B.A.). O estabelecimento de tais vias dependeriam da duração e da freqüência dos estímulos repetitivos, como se houvesse um processo de “aprendizagem” (Tomaz, 1993).

Vale mencionar que, ao nível da Neurofisiologia, uma hipótese correspondente foi desenvolvida pelo francês Jean-Pierre Changeux em sua teoria da epigênese por estabilização seletiva das sinapses durante os primeiros tempos de vida (Changeux, 1985). Ou seja, o processo ocorreria para além das determinações de caráter genético. Neste sentido, há trabalhos em Neurobiologia que mostram a importância dos fatores neurotróficos nos processos de regressão e morte neuronal nos primeiros tempos de vida (Linden, 1993).

Entretanto, a concepção de imprinting genômico altera, como mencionou-se, tanto esta noção como os cânones mendelianos no interior da Genética. Existem diversas evidências acerca da existência do referido fenômeno nos mamíferos. Para nossos propósitos, vamos nos deter nas deficiências cromossômicas observadas em ratos (Swain et al., 1987) e homens.

Há uma forma de doença genética que se manifesta após o nascimento através dos seguintes sinais: pés e mãos com tamanhos bem menores que os habituais e apetite reduzido. Em geral, entre os 18-36 meses, a criança começa a desenvolver hiperfagia e a manifestar retardo mental, que pode ser leve ou moderado. Além disto, há hipotonia, hipogonadismo, baixa estatura, dismorfismo facial leve e distúrbios de comportamento. Esta é uma das formas mais comuns de obesidade genética: a Síndrome de Prader Willi.

Outra doença genética, chamada Síndrome de Angelman, apresenta-se mediante retardo mental severo, incapacidade de falar, riso deslocado, movimentos atáxicos (“marionete alegre”), microbraquicefalia, crises convulsivas, hipertonia leve e prognatismo, com protrusão lingual (Day, 1993; Driscoll et al., 1992).

A maioria dos casos de Prader-Willi apresentam a eliminação de um pequeno segmento de uma das duas cópias do cromossoma 15. Mas, nem todos. Há casos em que os cromossomas estão aparentemente íntegros (cerca de 1/5 dos casos apresentam os cromossomas íntegros) (Day, 1993). Por sua vez, a doença de Angelman pode ocorrer em situações onde há uma cópia defeituosa do cromossoma 15, herdada da mãe. Mas, em muitos afetados, isto não acontece. Enfim, misturas desequilibradas entre gens paternos e maternos podem surgir de formas distintas, causando as mesmas doenças (Day, 1993).

Chama a atenção o fato de ambas se constituírem em exemplos de imprinting genômico. Ou seja, no caso de Prader-Willi, os dois segmentos do cromossoma 15 que estão íntegros provêm da mãe, enquanto que em Angelman, os segmentos íntegros do mesmo cromossoma originam-se do pai (Driscoll et al., 1992).

A síndrome de Beckwith-Wiedemann também apresenta estas características. O imprinting conduz a alterações do desenvolvimento e câncer na infância. Bebês acometidos sofrem crescimento rápido intra-uterino e nascem com anormalidades físicas. Em algumas situações, atribuem-se a duas cópias paternas do cromossoma 11. Noutras, as cópias são de cada progenitor, mas há uma duplicação errada de um pequeno segmento do segmento 11 do pai. De todo modo, o desenlace é o mesmo (Day, 1993).

A relevância destes achados se vincula ao fato de mostrarem que as idéias mendelianas referentes à transmissão hereditária como resultante da herança de fatores imutáveis (gens) não são suficientes para explicar uma série de situações. Deste modo, o modelo mendeliano básico (dominante/recessivo) que propõe não haver influência na expressão gênica a partir da fonte (pai/mãe) da informação genética perde seu poder explicativo. Segundo Hall, “Um dos desafios importantes da genética contemporânea é explicar aquelas características e condições que não mendelizam. É neste respeito que o conceito de ‘imprinting’ genômico assumiu progressiva importância, pois pode proporcionar explicação para uma considerável variedade de observações sobre condições cuja transmissão genética e expressão não se conformam a predições de herança gênica única” (Hall, 1990: 857)

A idéia de imprinting genômico está sendo utilizada em referência à expressão distinta do material genético (tanto em nível cromossômico como alélico) conforme tenha origem materna ou paterna. Além disto, o fenômeno parece ser uma forma de mecanismo regulatório que permita outra dimensão de plasticidade no controle e manifestação do genoma dos mamíferos (Hall, 1990).

Vale salientar a existência de hipóteses relativas ao desenvolvimento apropriado do embrião ser dependente de gens de origem materna. Enquanto que tecidos extra-embrionários (em especial, a placenta) demandariam gens de provenientes do pai (Varmuza, 1993).

Assim, temos uma plausível hipótese “genômica” para a etiopatogenia de dois dramáticos eventos gravídicos. Caso, por algum acidente biológico durante a primeira divisão do ovo fertilizado, se produza uma célula com 46 cromossomas de origem paterna e nenhum materno, não surgirão embriões, mas, sim, um tecido proliferante de características placentárias — a mola hidatiforme. Se, alternativamente, os 46 cromossomas forem todos provenientes da mãe (e nenhum do pai), teremos um tumor benigno (teratoma ovariano), composto por muitos tipos de tecido: conjuntivo, nervoso, ósseo, dentário etc., mas desprovido de placenta (Day, 1993). Se este for o caso, há trabalhos que sugerem o fato da evolução humana ser atribuível predominantemente aos gens “imprintados” das mães. Pois, as mutações favoráveis precisam ser expressas e transmitidas à próxima geração. Um gen “imprintado” oriundo do pai não obteria expressão embrionária, mas, sim, placentária, diferentemente do gen correspondente da mãe (Watzman, 1993).

Alguns autores desenvolvem modelos que descrevem os efeitos de controlar o processo de ativação/desativação do padrão de imprint em gens-alvo do macho e da fêmea. A conseqüência disto seria o isolamento reprodutivo, de modo a levar à formação de uma nova espécie (Varmuza, 1993).

Há estudos que atribuem a geração do fenômeno de imprinting a mecanismos enzimáticos que, sob certas condições, alteram a cadeia de D.N.A. ao incluir ou excluir radicais metila de sua estrutura (Swain et al., 1987). Este suposto mecanismo daria margem a um efeito de comutador (liga/desliga) que ativaria ou não certas disposições biológicas embutidas molecularmente. Além disto, há indícios que os gens metilados possam estar sujeitos a maior risco de mutação. No entanto, parece que, a rigor, os mecanismos envolvidos são desconhecidos. Pois, o fenômeno também tem sido observado em espécies que não sofrem o processo de metilação (Varmuza, 1993).

De todo modo, o fenômeno se constitui numa modificação epigenética reversível específica da linhagem germinal. Estudos que permitam o entendimento dos controles cromossômicos da expressão dos gens irão proporcionar idéias importantes sobre a regulação gênica e demonstrar o papel de tal herança epigenética nos processos de desenvolvimento e produção de doenças (Surani et al., 1993).

A importância do referido fenômeno em termos de Saúde Pública se evidencia diante das indicações de sua participação na etiologia de diversos tipos de cânceres da infância. Por exemplo: o tumor de Wilms (origem renal), também ligado aos casos de Síndrome de Beckwith-Wiedemann. Além disso: cromossoma 9: leucemia mielóide crônica; cromossoma 11: rabdomiossarcoma, carcinoma adrenocortical, leucemias (células T e B), carcinoma de células hepáticas, múltiplas neoplasias endócrinas; cromossoma 13: retinoblastoma, osteossarcoma, etc. (Hall, 1990). Assim, este enfoque proporciona novos caminhos para investigações epidemiológicas referentes à oncogênese. O mecanismo molecular envolvido parece prender-se ao fato da maioria das pessoas possuírem duas cópias ativas de cada gen supressor, uma de cada progenitor. O tumor surge quando as duas cópias são incapacitadas na mesma célula. No entanto, costuma ocorrer um fenômeno peculiar: caso um dos gens supressores sejam afetados (por mutação na sua seqüência de D.N.A.), o outro acaba por desaparecer da célula, tornando-a vulnerável à proliferação tumoral (Day, 1993).

Além disto, permite estabelecer hipóteses “moleculares” (tanto genéticas como epigenéticas) para estudar outros aspectos. Por exemplo: as razões que levam determinados indivíduos a serem resistentes a determinadas moléstias infecto-contagiosas (ou tão-somente portadores assintomáticos), enquanto outros são suscetíveis. Da mesma forma, em relação a enfermidades crônicas não-transmissíveis.

No entanto, é preciso levar em conta que, mesmo que se estabeleça o mecanismo molecular responsável em nível genético ou epigenético, outros processos ontogenéticos também devem tomar parte. Portanto, constitui-se num desafio tentar-se delimitar quais outras condições envolvem mecanismos moleculares genéticos ou imprinting genômico e a quais isto não se aplicaria.

Além disto, tal discussão nos conduz para o problema da hegemonia das proposições de empreendimento científico ensejado por este modelo de investigação e seu alcance correspondente. Especialmente no que diz respeito aos domínios da Saúde Pública, onde se destaca o crucial conceito de risco.

 

RISCO GENÉTICO E PROPENSÃO HEREDITÁRIA

Como foi mencionado, temos doenças cujas determinações, sejam genéticas, sejam epigenéticas são bem demarcadas. Nestes casos, o modelo de risco desenvolvido pela Epidemiologia Moderna alcançaria alto grau de eficácia: o fato de determinados indivíduos portarem determinados gens ou receberem-nos do pai ou da mãe delimita com precisão satisfatória a probabilidade de desenvolverem tal ou qual enfermidade. A rigor, temos aqui condições de fechamento das variáveis em jogo que permitem a aplicação bem-sucedida do referido modelo (Hayes, 1992).

Mas, mesmo neste nível, há outras doenças cujas configurações moleculares não sejam tão claramente identificáveis — o caso das desordens poligênicas (resultantes de mutações em quaisquer gens diferentes), ou naquelas em que as interações sócio-ambientais tenham peso. Nestas circunstâncias, as relações de risco podem não ser percebidas com os mesmos graus satisfatórios de precisão. Neste caso, os pressupostos assumidos para que o modelo de risco funcione a contento se tornam instáveis diante da complexidade dos elementos e/ou de suas interações — em termos de: 1) regularidade dos efeitos empíricos; 2) das relações causais entre fatores de risco e agravos; 3) dos períodos cronológicos válidos para a validade preditiva e 4) da abordagem de níveis de organização distintos, correspondentes a fatores de risco sociais e biológicos (Hayes, 1991).

Assim, o programa de pesquisa baseado no paradigma epidemiológico dos fatores de risco dá indícios de fragilidade. Perde o poder explicativo pretendido. Apesar da grande produção de trabalhos que procuram estabelecer relações de risco entre variados tipos de exposições e diversos agravos, independente das contingências de fechamento (e previsibilidade) dos fenômenos.

Entretanto, é indiscutível a importância dos avanços das técnicas da Biologia molecular na apreensão dos elementos genéticos e epigenéticos na etiopatogenia de muitas enfermidades e distúrbios. Porém, o modelo de risco está aparentemente circunscrito a condições bem delimitadas, dirigido para a dimensão referente ao organismo biológico humano. Não leva em consideração seu caráter dependente do contexto e da dimensão subjetiva e cultural. Sob esta ótica, as doenças, salvo exceções, via de regra, eclodem como resultante de uma profusão de eventos interativos.

Então:

“O desafio para os epidemiologistas diante do século XXI é desenvolver teorias causais similarmente sofisticadas que considerem os sistemas complexos nos quais o processo saúde/doença está imerso. Isto envolve tanto novos avanços laboratoriais como antigas preocupações quanto ao papel do ambiente sem isolar cada qual dos sistemas globais dos quais são partes essenciais” (Loomis & Wing, 1990: 3)

Por outro lado, externo à produção científica das afirmações de risco baseadas na Genética Humana, é importante levar em conta as representações sociais relativas à idéia de hereditariedade e como esta pode ser responsabilizada pela gênese e desencadeamento de um grande número de condições e agravos à saúde. A importância deste aspecto se deve ao fato de estar relacionada a padrões de conduta que conduzam a situações tanto de exposição como de proteção.

Como ilustração, é relativamente comum escutar-se (ou, até, falar-se...) das características físicas, conforme “puxam” traços de progenitores ou outros parentes consanguíneos, em uma conotação hereditária procedente (dadas as evidências fenotípicas...). Isto já não é tão evidenciável no caso das idiossincrasias psíquicas/comportamentais das pessoas. Apesar de serem, conforme as contingências, atribuídas, “hereditariamente” a determinado “ramo” da família ao qual se alega menor, digamos, “qualidade genética”...

Nesta perspectiva, encontramos bastante difundida a idéia de propensão (proneness), com, inclusive, aparentemente, maior aceitação pública que a noção de risco, produzida pela retórica tecnocientífica. Trata-se de um discurso acerca dos padrões de adoecimento e de longevidade considerados hereditários no interior das famílias. Assim, não é incomum encontrarem-se enunciações de supostas tendências dos indivíduos adoecerem (e, até, morrerem) de enfermidades que acometeram seus pais/avós etc. Como se houvesse, nestes casos, uma potencial determinação de caráter fatalista, definida a partir de ramos anteriores das respectivas árvores genealógicas.

Isto foi observado em um estudo sobre crenças acerca da hereditariedade numa investigação a respeito das percepções leigas de saúde (especialmente doenças cardíacas) numa amostra aleatória de adultos no País de Gales. Apesar de todos os esforços da Educação em Saúde no sentido de enfatizar a importância dos fatores dietéticos, comportamentais etc. na etiopatogenia das doenças cardíacas, um número considerável de entrevistados acreditava que os fatores hereditários se constituíam em determinantes destacados (Davison et al., 1989).

Isto nos leva a cogitar que as representações vinculadas à percepção pública de risco (tal como produzido pelas “disciplinas riscológicas”) sofrem modificações. Pois, apesar de superposições, certamente transitam por níveis perceptuais e discursivos distintos, comparados àqueles relativos à propensão.

Parece que, a partir da possibilidade do acesso ao genoma humano, propiciada pela Genética Molecular, o modelo do risco, aparentemente, poderia confluir e se sobrepor ao discurso da propensão hereditária. E, com isto, adquirir um estatuto mais vigoroso, e, portanto, mais efetivo para sua aceitação pelas populações. Apesar de suas limitações, quando aplicado fora das condições de fechamento dos fenômenos mencionadas anteriormente.

As repercussões desta possível potenciação da retórica do risco não são negligenciáveis. Especialmente se nos determos na dimensão ideológica (e seus desdobramentos no terreno político e moral) que subjaz a tal discurso (Lupton, 1993). Isto pode ser observado, por exemplo, nas conseqüências sociais de caráter punitivo decorrente da possibilidade maior (alto risco) de seropositividade ao vírus H.I.V. No caso dos exames do genoma, este aspecto pode se ampliar, diante da ratificação proveniente da “explicitude” das evidências (voltaremos a este ponto adiante)...

Além disso, é importante levar em conta os efeitos “colaterais” das campanhas de Educação em Saúde, baseadas no enfoque de risco, pois:

“(...) há perigo em conceder aos governos o poder de difundir publicidade sobre riscos à saúde. Conhecimento e fatores de risco podem ser mal-interpretados: intervenções podem ser inefetivas ou contraprodutivas. A Educação para a Saúde pode ser coercitiva caso propicie somente um lado da questão (...). As campanhas de Educação em Saúde, em seus esforços de persuadir, têm o potencial de manipular informação enganosamente e manipular psicologicamente por meio de apelos às emoções, medos, ansiedades e sentimentos de culpa das pessoas” (Lupton, 1993: 431)

É preciso encarar o fato de que a “objetividade” pretendida pelo discurso científico de risco é discutível. E, portanto, deve ser vista de modo crítico, sem negligenciar os significados individuais e coletivos que o modelo adquire na sociedade contemporânea (Lupton, 1993). É perceptível a existência de fissuras e brechas entre as racionalidades científica e social ao lidarmos, por exemplo, com o potencial de riscos dos tempos atuais. Mas, mesmo assim, elas não deixam de permanecerem emaranhadas e interdependentes.

De qualquer forma, o efeito social das definições de risco não tem dependido de sua validade científica (Beck, 1992). Como menciona Beck:

“A não-aceitação da definição científica de riscos não é algo a ser reprovado como `irracionalidade’ na população; mas ao contrário, indica que as premissas culturais de aceitabilidade contidas nas afirmações técnicas e científicas sobre risco estão erradas (grifos do autor)” (Beck, 1992: 58)

A este respeito, alguns estudos mostram resultados reveladores. Por exemplo, realizou-se uma pesquisa, também no País de Gales, acerca da percepção leiga do risco genético para mulheres, na eventualidade de se tornarem mães de crianças femininas — veiculadoras do gen defeituoso; ou masculinas — afetadas, por uma doença degenerativa ligada ao cromossoma X, denominada Distrofia Muscular Duchenne. É possível, mediante história familiar, teste de creatinoquinase e estudos de D.N.A., chegaremse a estimativas (percentuais) de risco genético bastante acuradas (Parsons & Atkinson, 1992).

Os resultados mostraram, que apesar do nível cultural da população inglesa, há tendências a simplificar os valores que lhes são transmitidos por geneticistas. Por exemplo: tornam-se “50%/ 50%” ou risco “alto”/”baixo”. No entanto, houve evidências que grande quantidade de informação se perdeu no processo de tradução. Na realidade, os riscos genéticos e suas potenciais ameaças à saúde destas mulheres foram expressos em termos de riscos reprodutivos. Para elas, o que realmente importava era a capacidade de gerar bebês sadios (Parsons & Atkinson, 1992).

Isto indica, antes de tudo, que, para decisões a respeito de tópicos de tanta importância, as informações devem ser transformadas em medidas pessoalmente significativas (Kessler, 1989). Ou seja, com todo o presumível rigor e potência do modelo de risco (mesmo genético), é preciso que ele tenha significação e importância para a vida das pessoas. De outra forma, tende a ser ineficaz para as finalidades sociais a que se destina.

Neste ponto, cabe enfatizar a evidente ocorrência de descompassos entre as prescrições “técnicas” partir do discurso “riscológico” e suas correspondentes traduções no universo das representações (e valores) das pessoas. Como se tal discurso se constituísse, na verdade, numa retórica pertencente a uma cultura separada da vida, e, portanto de pouca utilidade para o que de fato importa: viver — com seus prazeres, seus limites, suas singularidades [tal conceito foi rastreado por Teixeira (1993) na obra de Antonin Artaud para estudar aspectos culturais da Epidemia de S.I.D.A.]. Como diz Kirmayer: “(...) Comida e sexo, medo e desejo, doença e saúde, não obstante tudo que tenha sido elaborado a este respeito através de modelos semânticos abstratos, eles adquirem sua urgência e poder a partir dos modos de vida das pessoas. A tentativa de modelar estas exigências da vida humana como equivalentes a qualquer proposição sustentada racionalmente ignora sua importância e sua qualidade subjetivamente irreprimível. A falha em reconhecer a primazia do irracional faz parte de uma limitação básica dos modelos semânticos racionalistas — sua falta de atenção para a incorporação de significados” (Kirmayer, 1992: 330-331)

A partir deste ponto de vista, é possível visualizarem-se razões pelas quais as prescrições (e proscrições) produzidas pelos discursos médico-epidemiológicos apresentem tantas dificuldades para serem acatadas. Enfim, são inevitáveis “efeitos colaterais” que eclodem ao se evitar o movediço e impreciso território dos desejos humanos e seus significados...

 

AS TRIBOS GENOTÍPICAS

Nos início dos anos oitenta, foi descrito um fenômeno no genoma humano que consiste na observação da existência da repetição de pequenas seqüências variáveis de bases ligadas de forma peculiar: como um cortejo de seqüências dispostas de modo que o início de uma se situa após a terminação da anterior. Tal formato, por analogia, lembra um tipo de charrete carregada por animais alinhados em fila, cujo nome é tandem.

Assim, o fenômeno recebeu a denominação Variable Number of Tandem Repeats (V.N.T.R.), ou seja o número variável de repetições de tandem. O número de tais seqüências pode variar entre indivíduos e entre grupos. Isto permite, inclusive, sua utilização como procedimento identificatório em práticas forenses e criminais (Watson et al., 1992; Rabinow, 1993).

Por outro lado, o sistema chamado de H.L.A. (vinculado ao complexo de histocompatibilidade), relativo aos gens do sistema imune, também permite estabelecer procedimentos de identificação para grupos étnicos, conforme a freqüência do número de alelos. Por exemplo, os franceses caucasianos apresentam 19% para um alelo H.L.A., enquanto os japoneses, 0,2%. Ou seja, os franceses são mais provavelmente homozigotos que os nipônicos (Rabinow, 1993).

Em termos de validade, pode-se dizer que o H.L.A. tem maior especificidade, enquanto o V.N.T.R. é mais sensível para a identificação genotípica de populações.

A técnica de P.C.R. (descrita anteriormente) viabiliza o acesso a cópias de D.N.A. para verificar a constituição tanto de V.N.T.R. como H.L.A. Com isto, passa-se a dispor de um potente instrumento de tipagem populacional, dando margem a desdobramentos importantes em diversos domínios. Já é relativamente conhecida a possibilidade de obterem-se “impressões digitais” fidedignas de cada indivíduo, a partir de seu respectivo D.N.A., com validade jurídica e criminal (Pena & Jeffreys, 1993).

Sob o ponto de vista epidemiológico, permitiria a discriminação (nos dois sentidos que a palavra sugere) de populações para estudos de suscetibilidade/resistência a determinados fatores de risco para uma série de agravos. Isto é, além das determinações ligadas aos modos de vida, a carga genética de cada um poderia ser responsável por seus riscos de adoecimento, tanto pelas “fragilidades constitucionais” do indivíduo, como por pertencer a grupos étnicos “desfavoráveis”...

Talvez não seja absurdo especular a eclosão de uma extemporânea “lombrosianização” genotípica capaz de “apontar” as “deformações” genéticas e epigenéticas inscritas no D.N.A. de determinados grupos populacionais (“molecularmente definido”) de contrair moléstias infecto-contagiosas (que ameacem seus vizinhos) ou outras condições crônico-degenerativas (que abreviem sua sobrevivência), dispensando-os (perversamente) da condição de recipientes de medidas de saúde, deficitárias nos cálculos das relações de custo/benefício. Esta problemática foi denominada speciesism por alguns autores de língua inglesa, numa tentativa de criar-se um termo com as conotações preconceituosas equivalentes às veiculadas por expressões como racismo e sexismo.

Este tema tem sido abordado por antropólogos como Paul Rabinow. Ele chamou de biosociabilidade às repercussões sócio-culturais nas vidas das pessoas ao sofrerem os efeitos da revelação de suas estruturas gênicas (tanto pessoal como para outros agentes). O citado autor alerta para o recrudescimento de projetos eugênicos, mediante um processo de “genetização de discriminações” (Rabinow, 1991).

Nesta perspectiva, a “molecularização” sanitária pode desempenhar um papel destacado na identificação de “desprioridades”, isto é, “inações” de Saúde justificadas tecnicamente. Pois, a partir de uma racionalidade epistemológica aparentemente coesa na teorização do risco, vinculados aos avanços da Biologia Molecular, tem-se à disposição um vigoroso arsenal conceitual/metodológico.

Mas, é preciso perceber que as determinações de risco (mesmo moleculares), não carreiam padrões morais abertamente, mas disfarçados sob a capa de uma moralidade causal (quantitativa e conceitual) implícita. E, portanto, muito mais perigosa. Como diz Beck: “afirmações sobre risco são afirmações morais de uma sociedade cientificizada” (Beck, 1992: 176).

Torna-se, então, essencial dedicar atenção para tal possibilidade. Diante da lógica subjacente às respectivas argumentações, propiciada pela ciência “molecular”, não é despropositado cogitar-se em concepções operatórias “científicas” e modos de intervenção decorrentes como justificativa para projetos de disfarçada índole eugênica. Isto se torna especialmente candente em função dos indícios de um clima social onde não parece tão absurda a eliminação de contingentes populacionais ameaçadores, facilmente perceptíveis no cotidiano assustadiço dos nossos centros urbanos.

 

EXPERT EM SAÚDE PÚBLICA? (MOLECULAR!?)

Agora, cabe a pergunta: como conceber um profissional de Saúde Pública apto a lidar com a constatação que nos colocam os tempos atuais? Isto é: como enfrentar simultaneamente problemas complexos, diversificados e dramáticos?

Antes de tudo, tenha-se clareza que estamos confrontados por uma série de dilemas. Qual deverá, por exemplo, ser o perfil do sanitarista, de modo a dispor de instrumentos para, pelo menos, como diria Bateson, cartografar um terreno cada vez menos familiar?

Não basta pensar que os atuais problemas de demarcação (e atuação) da Saúde Pública permanecem relacionados somente às suas reconhecidas características de multidisciplinaridade. Que, por sinal, estariam bem mais acentuadas em função dos acelerados processos de ultra-especialização e fragmentação que atinge o campo dos saberes (sanitários ou não).

Infelizmente, trata-se de algo bem mais grave e complexo, a ponto de desafiar nossa capacidade de delimitação. Já vai longe o tempo em que parecia suficiente para a formação do dito sanitarista, o acesso às conhecidas disciplinas aplicadas e constitutivas do edifício da Saúde Pública (Ciências Sociais, Epidemiologia e Métodos Quantitativos, Planejamento/Administração, Ciências Biológicas, Saneamento Ambiental, Saúde Ocupacional etc.).

A rigor, como sugeriu-se ao início, o sanitarista (ou qualquer denominação que se lhe dê) é atualmente um perplexo administrador de estranhezas. Pois (apesar do jogo de palavras parecer abusivo), seus domínios (da Saúde Pública) fogem a seu domínio. Além disso, a própria definição de sua expertise é especialmente problemática. Mas, é possível encarar a ídéia do profissional deste domínio como um expert? [a utilização do termo na língua inglesa, comum na língua portuguesa, foi mantida. Evitou-se a expressão “experto” por sua reduzida utilização (quiçá) pela incômoda homofonia, que, eventualmente, pode dar margem a associações jocosas...].

Em geral, o termo expert refere-se ao indivíduo que possuiria reconhecidas habilidades e/ou conhecimentos específicos sobre determinado campo de atividade/saber. Estas prerrogativas atribuiriam-lhe autoridade para tomar decisões, agir, enfim, abordar aspectos pertencentes a sua correspondente área de indiscutível competência.

Mas, idéias como “autoridade”, “competência”, “expertise” nem sempre são claras. Não cabe desenvolvê-las neste espaço. Aqui, considera-se que a noção de expert deveria implicar no fato de tal autoridade ser supostamente sólida em virtude de treinamento apropriado, aptidão e/ou experiência adquirida ao longo do tempo. Portanto, a noção de expertise subjaz às supostas condições técnicas para atuar no correspondente ramo de atividade.

De qualquer modo, é importante caracterizar o que se pretende designar ao tratar-se de expertise. Dois critérios básicos devem levar-se em conta: 1) capacidade de propor justificativas consistentes para uma faixa de proposições em um domínio específico; 2) aptidão de desempenhar uma determinada habilidade.

Assim, expertise assinalaria a possibilidade de propor opiniões abalizadas (ou competentes) (sentido 1) ou demonstrar habilidades evidentes para o desempenho de tarefas específicas (sentido 2) (Weinstein, 1993). Parece ficar claro que trata-se da capacidade de atingir os melhores resultados possíveis (em suma, uma idéia de eficácia).

É importante, ainda, mencionar o fato de um expert não necessitar obrigatoriamente ser um especialista. Por exemplo, um clínico geral pode ter expertise no seu campo sem ser especialista. Tal ressalva é importante, pois se aplica ao revés, mutatis mutandis, na problemática definição de sanitarista. Pois, ainda que ele/ela tenham certificados de especialistas em Saúde Pública e/ou tempo de experiência na carreira e/ou estejam definidos como tais em sua atividade profissional, tais critérios não os tornam necessariamente experts. Ou, ainda, caso sejam experts em determinada área, o profissional corre o risco de não estar aplicando tal expertise no seu presente campo de atuação. Não parece obrigatório, portanto, para se ser(estar) sanitarista, que os profissionais sejam indiscutíveis experts [há um substantivo usado comumente de forma pejorativa — tecnocrata, que ao designar algum profissional do Setor Saúde (biotecnocrata?) passa a carregar três estigmas conjugados: 1) o fato de ser “contaminado” por uma dimensão técnica restritiva, destituída de uma visão “humanizada”; 2) a visão administrativa rígida e limitada, presa aos procedimentos ditos “burocráticos”, ou seja, que perderam sua dimensão gerencial; 3) pouco prestígio e pequena participação nas decisões no interior do aparelho de Estado...].

Mas, ao nosso ver, diante da amplitude do campo sanitário, com diversos subdomínios (Planejamento em Saúde, Epidemiologia, Saneamento Ambiental etc.) a noção de expert em Saúde Pública se torna inadequada. A rigor, pode-se pensar nesta ídéia quando aplicada aos referidos subdomínios. Ainda assim, com ressalvas.

Pois, diante do atual processo de problematização epistemológica e fragmentação dos saberes (do qual a Saúde Pública não escapa), surgem novas disciplinas (por exemplo, a Bioética) e o desenvolvimento de áreas de interface que podem se constituir em subespecialidades (por exemplo, as relações das áreas constituintes da Saúde Pública com a Genética Molecular). Nesta perspectiva, será preciso considerar tal emergência de subáreas no campo sanitário e a decorrente possibilidade (necessidade, em alguns casos) de produzir seus respectivos especialistas (e experts). Portanto, a Saúde Pública reconhecida por sua tradicional característica multidisciplinar, além dos processos de interdisciplinaridade em curso, passa a exigir uma abordagem transdisciplinar.

 

O ESTADO E AS PRIORIDADES EM SAÚDE

Outro elemento complicador para a atuação do sanitarista se origina nas enredadas relações da Saúde Pública com o Estado. É inegável que a configuração assumida pelo campo sanitário reflete a respectiva índole político/ideológica da formação sócio-econômica de onde emerge. Daí seu caráter histórico-estrutural.

Não há como esquivar-se das atuais conflagrações que atingem o setor. Este tem sido foco de perspicazes estudiosos do tema (Gonçalves, 1986; Possas, 1989; Franco et al., 1991; Merhy, 1991; Paim 1992). Não se pode, sob hipótese alguma, negligenciar tal ordem de problemas, especialmente em um contexto onde se presenciam (e se sofrem) cotidianamente os terríveis efeitos da atual hipercrise sanitária.

Mesmo assim, tais relações não admitem leituras apressadas. Não se deve propor uma vinculação associativa imediata nas franjas de interferência entre o contexto mais geral das crises em nível do Estado e as tendências assumidas pelas políticas públicas internamente ao campo da Saúde Pública. Há confluência (e conflitos) entre diversos (f)atores em diferentes patamares que intermediam e especificam as resultantes deste processo (Oliveira, 1988). A compreensão destes agenciamentos é de suma relevância para a a percepção do quadro político-administrativo do setor e de seus intrincados movimentos.

Além disso, os citados fenômenos de complexificação e fragmentação dos processos sociais e biológicos demandam novos rumos teórico-metodológicos e éticos para sua abordagem. Por exemplo, as teorizações a respeito da ótica da complexidade podem servir como pauta preliminar para novas formulações em busca de superação das referidas limitações (Schramm, 1993; Castiel, 1994).

No entanto, mesmo levando em conta a possível inadequação da expressão “Saúde Pública molecular”, ela serve para chamar a atenção para aspectos que não podem ser negligenciados por serem vistos, equivocadamente, como “não-prioritários”. Desafortunadamente, não são. Vivemos, nos tempos atuais, sob a égide da simultaneidade, da co-existência e interpenetração de múltiplos “territórios”, que teimam em escapar aos nossos esforços delimitadores.

A propósito, nas circunstâncias atuais, a noção de prioridade — tão cara à lógica racionalizadora para instrumentalizar decisões políticas relativas a procedimentos sanitários — sofre grande desgaste em sua significação. Conseqüentemente, sua função operativa se enfraquece. Para onde quer que se dirija nosso olhar, aí encontraremos potenciais prioridades.

Assim, por um lado, é essencial enfrentar os dramáticos desafios de nossa realidade, decorrentes das profundas desigualdades sociais — responsáveis pela miséria (e doença) de grandes parcelas de nossa população. Por outro, não se sustenta (nem é aceitável) omitir-se diante das repercussões e desdobramentos carreados pela Biotecnologia, Engenharia Genética e disciplinas correlatas. Independente de nossa capacidade de lidar com tantas e avassaladoras transformações, seus aspectos industriais, econômicos, científicos e éticos (entre outros), estão invadindo progressivamente nosso objeto de estudos e campo de práticas.

Torna-se imperioso, apesar das perplexidades, estimular e ampliar discussões a este respeito pelos setores responsáveis pela Saúde Pública. Esta ordem de preocupações já está sendo merecedora de atenção e pode ser observada, por exemplo, no Relatório final do II Congresso Interno da Fundação Oswaldo Cruz ao abordar prioridades sociais e políticas de saúde:

“(...) as mudanças que se estão processando no campo científico, nas áreas de fronteira do diagnóstico ou tratamento, chegarão ao Brasil de qualquer forma, sendo responsabilidade do Estado torná-las acessíveis à maioria do povo brasileiro” (Fiocruz, 1993: 6)

Assim, apesar do mencionado desgaste da idéia de prioridade, para ainda mantê-la operativa, o citado relatório sugere, com pertinência, que não há mais lugar para opções “de caráter exclusivo”. Mas, sim, alternativamente, “pensar em uma estratégia de investimentos concentrados (...) de natureza diversificada, em base à identificação de nichos (...)” (Fiocruz, 1993: 6).

Neste sentido, torna-se cada vez mais difícil manter distanciamento das questões trazidas pelo “nicho” da Genética molecular. Elas demandam uma inevitável reflexão em relação tanto a nossas práticas em pesquisa, em ensino e/ou na assistência, como na formação de respectivas competências em Saúde Pública. Apesar da aparente obviedade, em função das flagrantes distorções que atingem nossas instituições (em múltiplos níveis), é importante enfatizar: caso, é claro, a preocupação de fato com a saúde pública seja primordial para o Estado brasileiro.

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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