DEBATE/DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Castiel

 

Debate on the paper by Castiel

 

 

Luiz Jacintho da Silva

Faculdade de Ciências Médicas; Universidade Estadual de Campinas

 

 

Não entendo, como o autor, que as fronteiras abertas pelos avanços na biologia molecular signifiquem uma opção conceitual para a determinação genética dentro da epistemiologia e, conseqüentemente, da saúde pública.

A saúde pública há mais de século vive a oscilação entre o livre-arbítrio do cidadão em relação à sua saúde e a determinação maior, seja social ou genética. O conceito de risco, principalmente quando associado ao comportamento de risco, traz consigo a conotação de que cada um é responsável pela sua saúde, sendo livre para alterar sua exposição aos agravos. A determinação social, e mesmo a pré-determinação genética, retiraria do cidadão a capacidade de alterar, pelo menos de maneira significativa, seu destino em termos de saúde. Esta questão não se restringe à saúde pública, evidentemente. É uma dúvida essencial de quantas religiões e filosofias houveram desde o início do pensamento humano abstrato.

Tendo em vista sua importância no pensamento humano, não seria de se admirar que tenha encontrado lugar na saúde pública, esta disciplina relativamente recente enquanto ciência.

À primeira vista, estaríamos diante de mais uma oscilação do pêndulo, passando de uma visão mais social, macrossanitária se me permitem o neologismo, para uma visão mais restrita, microssanitária. A determinação dos fenômenos em saúde pública estaria não na organização social, nas contradições existentes no interior das sociedades, mas na intimidade do DNA. A primeira vista apenas.

A revolução trazida pelo desenvolvimento da biologia molecular é muito maior do que possamos pressentir, suas implicações sobre a saúde pública igualmente grandes, mas não essencialmente conceituais. O paradigma se transforma, isso é evidente, mas o conceito de risco não desaparece, se amplia. Se amplia da mesma maneira que se ampliou o paradigma contagionista no século passado. Não entendo que a história se repete, mas nos traz algumas analogias cuja análise cuidadosa é essencial para a compreensão do presente.

No século passado se debatiam os que acreditavam na inevitabilidade do meio, nada havendo que se pudesse fazer para alterar a realidade sanitária, e os contagionistas, que entendiam que estava ao alcance da humanidade mudar o seu destino. Semmelweiss e o dilema da infecção hospitalar exemplificam bem o contexto. O establishment médico de Viena entendia que a infecção puerperal era algo inerente à condição da mulher e do parto, devendo ser aceita, Semmelweiss procurava mostrar que, por ser algo exógeno, não necessariamente integrante do processo, haveriam medidas que, se adequadamente implementadas, poderiam reduzir o risco.

A bacteriologia, com a tecnologia que permitiu entender a natureza da infecção, encerrou a discussão, levando o pêndulo para o livre-arbítrio. Cabe lembrar que a bacteriologia não introduziu o conceito de infecção — este é muito mais antigo — apenas trouxe a tecnologia que permitiu entender os mecanismos da infecção. Desta vez, com a biologia celular, amplia-se a fronteira da compreensão, mas não se encerra ou mesmo altera a discussão do livre-arbítrio. Esta uma diferença de visão com Castiel: a saúde pública molecular não se restringe à genética do hospedeiro. Existe a genética do agente, agente este que se torna cada vez mais presente. Várias doenças anteriormente entendidas como não-infecciosas, passam a ter uma etiologia infecciosa: o carcinoma hepatocelular e a neoplasia de colo de útero, para citar apenas duas. O pêndulo ainda está do lado do livre-arbítrio e a biologia molecular não deverá demovê-lo, principalmente porque, junto com o desenvolvimento da biologia molecular vêm a engenharia genética e as terapêuticas genéticas, como para a fibrose cística (mucoviscidose), podendo ser aplicadas até mesmo intra-útero.

Concordo, contudo, que a saúde pública deverá passar por uma ampla revisão do seu papel, saindo de uma posição restritiva, limitada ao sanitarista, para uma posição mais ampla, abrangente. Qual deverá ser este papel, somente o tempo e a prática dirão. Não há dúvidas de que o avanço da biologia molecular trará novos horizontes para a prática da saúde pública, mas não entendo que trará, obrigatoriamente, mudanças filosóficas, principalmente porque o conceito de genética, tal como colocado por Castiel, deverá sofrer uma alteração talvez maior do que a antevista para a saúde pública.

Estamos no meio de uma revolução na prática da saúde pública e da clínica, semelhante às que ocorreram durante o século passado, apenas que numa velocidade maior. Esta mudança se faz nos horizontes do entendimento, transformando doenças obscuras em doenças compreensíveis, tratáveis e preveníveis, ampliando a visão de livre-arbítrio atualmente vigente na saúde pública, não substituindo-a por uma neo-eugenia.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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