ARTIGO ARTICLE


 

 

 

 

 

Christovam Barcellos1
Francisco Inácio Bastos1


Geoprocessamento, ambiente e saúde: uma união possível?  

Are geoprocessing, environment, and health a possible combination?

 

 


1 Departamento de Informações para a Saúde, Centro de Informação em Ciência e Tecnologia, Fundação Oswaldo Cruz. Avenida Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil.   Abstract Abstract The use of geoprocessing techniques allows one to gather socioeconomic, health, and environmental data on a spatial basis. However, interpretation of associations between epidemiological and environmental variables requires the geoprocessing system design. The study scale and object choices precede conception of the system, conditioning the possible statistical and visual results. This scale must be compatible with the phenomenon on which one intends to focus, aiming at internal homogeneity and external heterogeneity of spatial units. The interdependency of spatial processes, reflected in the spatial configuration of social, environmental, and epidemiological data distribution, affects interpretation of causes for simultaneous processes. Geoprocessing allows for knowledge of the context or situational surroundings in which the damage to health takes place.
Key words Geoprocessing; Environmental Analysis; Environmental Health; Epidemiology; Public Health  

Resumo O uso do geoprocessamento tem permitido a reunião de bancos de dados sócio-econômicos, de saúde e ambientais em bases espaciais. A interpretação dos resultados de associações entre variáveis epidemiológicas e ambientais depende, no entanto, do desenho do sistema de geoprocessamento. A escolha da escala e objeto de análise precede a concepção do sistema, condicionando os possíveis resultados estatísticos e visuais. Esta escala deve ser compatível com o fenômeno que se pretende enfocar, buscando-se uma homogeneidade interna e heterogeneidade externa das unidades de análise escolhidas. A interdependência de processos espaciais, que se refletem na sua configuração social, ambiental e epidemiológica, pode, se não adotada metodologia correta, impedir o estabelecimento de causas para processos simultâneos. O geoprocessamento permite, por outro lado, o entendimento do contexto em que se verificam fatores determinantes de agravos à saúde.
Palavras-chave Geoprocessamento; Análise Ambiental; Saúde Ambiental; Epidemiologia; Saúde Pública

 

 

"Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso." ­ Italo Calvino em "As cidades invisíveis"

 

 

Introdução

 

A relação entre exposição ambiental a agentes de risco e condições de saúde tem sido estudada principalmente na dimensão temporal. As associações entre qualidade do ar e mortalidade por doenças pulmonares (Anto, 1989; Schwartz & Marcus, 1990) são exemplos de estudos valiosos no campo da saúde ambiental que procuram avaliar o impacto de condições ambientais adversas sobre a saúde em curtos períodos de tempo. Se estas relações são observadas no tempo, não são da mesma maneira evidentes na dimensão espacial. Isto porque no espaço encontram-se superpostas outras instâncias da sociedade, como a econômica e a cultural-ideológica, além de fatores propriamente ambientais (Santos, 1988), que se manifestam em variáveis sócio-econômicas quantificáveis que podem atuar como fatores de confusão ('confoundings') em estudos ecológicos (Jacobson, 1984).

A indistinção entre variáveis de saúde, seus determinantes e seus contornos sócio-econômicos fez com que diversos preconceitos étnicos, culturais e ambientais fossem incorporados à chamada 'geografia médica'. Os primeiros trabalhos desta disciplina procuraram vincular áreas endêmicas de doenças a determinadas características culturais, raciais e climáticas de ambientes e grupos populacionais de maneira determinista (Lacaz et al., 1972). Estas correlações foram estabelecidas de forma marcadamente inclusiva (as "doenças tropicais") ou disjuntiva (a idéia dos cordões sanitários; Gould, 1993). Alguns destes equívocos metodológicos não podem ser imputados à carência de informações e de instrumentos de análise no passado. O geoprocessamento, entendido como "um conjunto de técnicas de coleta, exibição e tratamento de informações espacializadas" (Rodrigues, 1990), permite a análise conjunta de uma gama de variáveis sócio-ambientais, mas pode, da mesma maneira, induzir a estes equívocos.

A regionalização é freqüentemente utilizada em estudos epidemiológicos como uma variável de análise junto a outras, como sexo, idade e classe social. Este tipo de análise tem servido a estudos exploratórios mas não permite por si só a incorporação do espaço e seus elementos no âmbito da pesquisa em saúde. As diferenças de incidências de câncer entre diversos países têm permitido o estabelecimento de hipóteses etiológicas da doença (Hutt & Burkitt, 1986). Se é verdade que a incidência de câncer de estômago no Japão é significativamente mais alta que a média mundial, morar neste país não pode ser considerado aprioristicamente como fator de risco. Antes disso, esta diferenciação sugere a existência de padrões genéticos, culturais ou ambientais que podem contribuir para a determinação de risco àquela população. Isto porque a diferenciação espacial subentende diversos outros diferenciais, tais como cultura, educação, renda, características genéticas e habitacionais.

Na tentativa de estabelecer pesos para fatores genéticos e ambientais, estudos epidemiológicos têm concentrado esforços sobre migrantes, que deveriam manter seu perfil de morbi-mortalidade no país de destino se o fator genético fosse predominante. Vários trabalhos, no entanto, têm mostrado que as taxas de mortalidade de migrantes tendem a se aproximar daquelas observadas no país de destino (WHO, 1983), o que demonstra a pressão do fator ambiental sobre os padrões de morbi-mortalidade.

Se a categoria espaço é depositária de uma série de variáveis inter-relacionadas, como isolar os fatores ambientais dos demais nas análises epidemiológicas? Se este espaço é resultado da 'acumulação desigual dos tempos' (Santos, 1988), como entender a relação entre estas variáveis através de cortes transversais? Este trabalho levanta algumas questões pertinentes à utilização do geoprocessamento nas análises de ambiente e saúde. Longe de tentar esgotar o assunto, o trabalho procura incorporar a esta análise alguns conceitos desenvolvidos na Geografia e propõe um conjunto de técnicas de mapeamento, buscando a análise integrada de riscos à saúde decorrentes de agentes ambientais.

 

 

Escala e objeto de análise

 

Fatores culturais, econômicos, demográficos e ambientais estão presentes em todas as escalas em que se represente o espaço. É talvez na escala global que as variáveis culturais apresentem maiores diferenciais. Estes contrastes, porém, estão presentes na escala nacional, regional e local com menor intensidade, ou se mostram 'desbotados' em relação a outros fatores de diferenciação populacional. A variável renda possui fortes diferenciais em todas as escalas possíveis de análise. Serve para distinguir conjuntos de países, da mesma forma que conjuntos de bairros. A rigor, não existe o que se costuma denominar 'regiões homogêneas', uma vez que o espaço é infinitamente divisível e diferenciado internamente. O espaço geográfico é definido por Harvey (1980) como "complexo, não homogêneo, talvez descontínuo e quase certamente diferente do espaço físico". A delimitação do objeto, objetivos e hipóteses de estudo é que impõem uma homogeneização da unidade de análise, no interior da qual não é possível observar diferenças espaciais. Apesar do geoprocessamento permitir a construção e operação de bases cartográficas em diversas escalas, a estrutura e inter-relacionamento dos bancos de dados fixa um modelo de agregação de dados por unidade espacial.

Ao se definir o objeto de estudo, elege-se uma escala de análise que deve ser compatível com o fenômeno sobre o qual se deseja trabalhar. A homogeneidade interna da unidade espacial depende basicamente dos critérios ­ e variáveis ­ utilizados na concepção do sistema. Uma importante mudança de ponto de vista se dá entre atividades de planejamento e análise, que se utilizam do espaço como categoria de trabalho (Piquet et al., 1986). Para os planejadores, as diferenciações intra-regionais são superadas face à relação inter-regional que desejam enfocar. Tendo como território de atuação os limites administrativos do estado (sua 'região de planejamento'), o secretário de saúde decide a localização de um centro de saúde em um ou outro município, baseado em critérios epidemiológicos, políticos e administrativos, que diferenciam municípios entre si. Por sua vez, os gestores de centros de saúde dificilmente distinguem condições diferenciadas internamente a suas 'áreas-programa'. Sua escala de análise é o território intra-regional e pressupõe homogeneidade. Deste modo, a concepção da região como área homogênea "baseia-se na delimitação de um território a partir da uniformidade de certas características", onde os critérios e objetivos de trabalho indicarão as variáveis a serem utilizadas para regionalização (Piquet et al., 1986). Na fase de análise e avaliação, as unidades espaciais são definidas buscando os maiores diferenciais inter-regionais, de modo a estabelecer as relações entre as unidades de análise escolhidas, e adotando como território para análise as "regiões polarizadas". A preocupação com estas relações ressalta as diferenciações inter-regionais e pressupõe heterogeneidade entre unidades.

No caso do geoprocessamento, a escolha da escala de trabalho se delineia com o estabelecimento a priori das unidades de agregação de dados e da extensão do território de trabalho. Por exemplo, ao se trabalhar com os municípios do Brasil (numa escala de 1:1.000.000) as cidades podem ser representadas por pontos. Neste caso, as diferenciações internas às cidades desaparecem e opta-se por analisar as relações entre cidades. Esta escolha terá conseqüências importantes sobre os processos que se pretende estudar espacialmente. Nesta escala pode-se traçar, por exemplo, os caminhos do cólera no Brasil, sua introdução e difusão em regiões do país. Numa escala local (1:10.000) a incidência de cólera pode revelar variáveis ligadas ao ambiente e habitação. O famoso mapa de Snow permitiu a identificação de populações de risco e forneceu pistas para desvendar o modo de transmissão da doença. Como se transmite o cólera, em quais residências as pessoas têm maior risco de contrair cólera, em quais regiões o cólera se desenvolve com maiores taxas? São perguntas diferentes que terão respostas diferentes devido às unidades de análise escolhidas. A primeira questão não pode ser resolvida pelo geoprocessamento, enquanto as demais encontram nele um poderoso instrumento de análise.

Além de restringir sua abrangência, a escala de análise condiciona os estudos em saúde ambiental, fornecendo maior ou menor peso a fatores sociais, ambientais e econômicos. Segundo Lacoste (1988), cada escala evidencia um conteúdo próprio do território enfocado. Nas palavras de Dollfus (1975), uma mudança de escala "implica uma alteração de fenômenos, alteração esta não apenas nas proporções destes fenômenos como também em sua natureza". Isto se dá exatamente porque de uma para outra escala mudam as unidades geográficas. Bairros, cidades e países possuem organizações internas diferentes, o que conduz a análise para campos do conhecimento que melhor as expliquem. Desta maneira, as respostas a questões acerca dos padrões de distribuição espacial de agravos à saúde podem variar de acordo com a escala adotada. Um exemplo disso é a verificação da alta mortalidade por acidentes de trânsito em áreas da periferia da Região Metropolitana de São Paulo (Stephens et al., 1994). Neste caso, este agravo está relacionado à pobreza, através das condições de infra-estrutura urbana e de acesso a formas mais ou menos seguras de transporte. Na escala nacional, é razoável supor que a mesma mortalidade por acidentes de trânsito esteja indiretamente associada à riqueza, através do aumento de veículos e rodovias em regiões industriais densamente povoadas. Estes resultados, aparentemente contraditórios, demonstram a subordinação de processos observáveis em escalas maiores (locais) e os diferentes determinantes de saúde dominantes em cada escala.

Dentre as variáveis ambientais, os fenômenos climáticos possuem maiores gradientes espaciais em escalas regionais ou globais. O estudo dos efeitos da redução da camada de ozônio sobre a saúde deve ser desenvolvido nesta escala, já que os danos à camada de ozônio têm as dimensões de um país. Por outro lado, é no nível local onde melhor se verificam fatores ligados à poluição atmosférica, uma vez que a difusão atmosférica de poluentes pode alcançar alguns quilômetros. A escolha da escala depende, portanto, da identificação prévia dos principais fenômenos a serem estudados e sua extensão no espaço. No caso dos estudo de impacto de agentes ambientais sobre a saúde, a unidade de análise deve ter extensão compatível com o fenômeno que se pretende enfocar.

 

 

O espaço como categoria de análise de eventos de saúde

 

A utilização da categoria espaço não pode, por isso, limitar-se à mera localização de eventos de saúde. Isto porque o lugar atribui a cada elemento constituinte do espaço um valor particular (Santos, 1988). Esta categoria adquire valor importante na análise de eventos de saúde através do inter-relacionamento de seus próprios significados.

Em primeiro lugar, sendo o espaço resultado da ação da sociedade sobre a natureza, sua configuração incorpora a estrutura social e sua dinâmica. Deste modo, uma cidade 'produz' o lugar dos ricos, dos pobres e da indústria, bem como estabelece fluxos de circulação de bens e serviços. Uma cidade é necessariamente heterogênea.

No Terceiro Mundo, esta desigualdade adquire tons dramáticos com a coincidência de carência de serviços públicos, pobreza, e baixo nível de escolaridade em vastas regiões periféricas das metrópoles. Ao se avaliar o efeito das condições de saneamento sobre a saúde de populações pobres, deve-se ter em mente que estas áreas estão sujeitas a uma grave conjunção simultânea de riscos, que incluem muitas vezes a falta de acesso a serviços de saúde e outras deficiências habitacionais. Estudos americanos contemporâneos (Wallace, 1993) analisam situações análogas de desestruturação de redes de interação social, difusão de epidemias e criminalidade em bolsões de pobreza de metrópoles como Nova Iorque.

Em segundo lugar, o espaço produzido socialmente exerce pressões econômicas e políticas sobre esta sociedade, criando condições diferenciadas para sua utilização por grupos sociais. Lugares sujeitos a exteriorizações negativas ­ próximos a indústrias poluentes, com baixa oferta de serviços urbanos ­ tendem a concentrar moradores de baixa renda em busca de empregos ou locais de moradia mais barata. As condições ambientais, neste caso, podem atuar como um fator de segregação sócio-espacial (Harvey, 1980).

A junção dos dois primeiros componentes do espaço geram um mecanismo de causação circular em que o espaço é, ao mesmo tempo, produto e produtor de diferenciações sociais, tendo importantes reflexos sobre a saúde dos grupos sociais envolvidos. Este processo relaciona valor e uso do solo de modo a valorizar regiões com melhores condições ambientais e desvalorizar áreas degradadas.

Em terceiro lugar, o espaço "acumula" as transformações ocorridas na sociedade, refletindo mais seu passado do que propriamente o presente. Pessoas e empresas possuem mobilidades espaciais limitadas, o que necessariamente introduz a dimensão tempo nos estudos das relações entre ambiente e saúde.

Em quarto lugar, o espaço possui valor em si, produzindo condições diferenciadas para a evolução de uma população ou atividade humana. Grupos populacionais de características sócio-econômicas semelhantes podem possuir perfis epidemiológicos diversificados pelo fato de se localizarem em lugares diferentes. As favelas do Rio de Janeiro, Bogotá e Bangkoc possuem aspectos habitacionais e demográficos similares, estando, no entanto, sujeitas a riscos diferenciados devido à sua localização. Este conjunto de favelas não constitui uma região, apesar de suas semelhanças. Partes componentes de uma região pressupõem critérios geográficos como a extensão e contigüidade da mesma maneira que períodos históricos devem se suceder no tempo.

Desta forma, incorporar a categoria espaço em estudos de saúde, significa não só estabelecer diferenciações entre conjuntos de regiões conforme características que as distingam, mas também introduzir a variável localização nestes estudos. Pressupõe discutir diferenças entre estas regiões e sua relação com a estrutura espacial na qual estão inseridas. A ferramenta do geoprocessamento permite a incorporação de uma gama de variáveis, como a extensão, localização, tempo e características sócio-econômicas, aos estudos em saúde.

Algumas das variáveis citadas são visíveis ou mensuráveis indiretamente. O geoprocessamento permite a utilização destas variáveis através do processamento de imagens e da manipulação de bancos de dados de interesse para a análise de saúde. A disponibilidade de técnicas de processamento de imagens permite a identificação de padrões de uso do solo com certa facilidade e precisão. Algumas variáveis extraídas destas imagens (densidade de construções, vegetação, hidrografia) podem servir à análise espacial de eventos de saúde por estar relacionada a outras de interesse mais direto (formas de habitação, densidade demográfica e qualidade ambiental).

 

 

Indicadores de risco e sua localização

 

O espaço, visto em sua totalidade como um conjunto de elementos sociais, econômicos, culturais e ambientais inter-relacionados, não pode ser representado através de mapas. Condicionados pela própria entrada de dados, os mapas apresentam didaticamente elementos visíveis do espaço, isto é, sua base física codificada através de sinais e convenções que facilitam sua interpretação. Os mapas temáticos podem ainda representar elementos não visíveis do espaço como classificação de solos, nível de renda, densidade demográfica, e outras variáveis. O geoprocessamento permite a rápida apresentação destes mapas, bem como a superposição e interação entre estes, trabalhados como camadas ('layers') contendo diferentes informações. Para isso, deve contar com bases de dados que estejam relacionadas às unidades espaciais, o que traz problemas comuns a outros sistemas de informação, como a acessibilidade, qualidade e atualização de dados (Moraes, 1994).

Além disso, estes dados são referidos a unidades espaciais não coincidentes. O nível mínimo de agregação de dados de saneamento é o território das agências locais de água e esgoto, muitas vezes limitado por sub-bacias hidrográficas. Dados de monitoramento de qualidade do ar e água se referem a pontos de amostragem cujas regiões de influência dificilmente são conhecidas. Estas amostras são representadas por pontos no mapa que constituem uma discretização de fenômenos aparentemente contínuos. Pode-se, neste caso, recorrer à interpolação de dados pontuais com a definição de uma superfície que represente a variação espacial destes dados (Wang & Xie, 1994). O sistema de mortalidade possui dados agregados por município de residência ou ocorrência do óbito, exigindo um grande esforço para o endereçamento de informações em unidades espaciais menores, como o setor censitário (Cruz et al., 1995). O município reúne grande parte das condições necessárias que viabilizam seu uso como unidade espacial de análise por ser dotado de autonomia administrativa e servir como referência de dados primários em saúde e ambiente. Por outro lado, poucos fenômenos de origem ambiental podem ser detectados neste nível (Barcellos & Machado, 1991).

Os trabalhos que relacionam ambiente e saúde através da análise espacial têm se desenvolvido em três principais vertentes. Uma primeira procura identificar padrões de morbi-mortalidade em torno de fontes de poluição conhecidas. Um exemplo desta abordagem são os levantamentos de ocorrência de leucemia próximos a usinas nucleares (Hills & Alexander, 1989). Neste caso, procura-se certificar a validade de hipóteses de indução de doenças através de padrões de distribuição relacionados às fontes de risco pré-estabelecidas.

Uma segunda estratégia tem sido a identificação de padrões de distribuição de doenças e seu relacionamento com fatores de risco ambiental, tais como condições de saneamento, habitação e poluição atmosférica. Para esta abordagem convergem os principais métodos estatísticos desenvolvidos pela geoquímica, utilizados para distinguir áreas de ocorrência de eventos selecionados segundo critérios de similaridade (Atteia et al., 1994). Neste caso, o padrão de distribuição da doença é previamente desconhecido e busca-se sua identificação estatística ou visualmente (Carvalho, 1996). Na fase de análise de dados epidemiológicos, estes podem ser reagregados com base em critérios de regionalização estabelecidos através de análises sócio-demográficas e administrativas (Jacobson, 1984). Segundo esta abordagem, foram estabelecidas áreas de maior mortalidade infantil e relacionados os possíveis fatores de risco na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Duchiade, 1991), e estudada a mortalidade em áreas classificadas segundo características sócio-econômicas na Região Metropolitana de São Paulo (Stephens et al., 1994).

Uma terceira linha de trabalho procura identificar tendências espaço-temporais a partir de trajetórias verificadas espacialmente. Com isso, são identificadas vulnerabilidades ou barreiras ambientais que permitem a difusão de doenças no espaço. Um exemplo desta abordagem é o traçado das trajetórias da difusão da epidemia de AIDS (Smallman-Raynor & Cliff, 1991; Bastos & Barcellos, 1995) e cólera (Toledo, 1993).

Todas estas estratégias para abordagem da relação entre saúde e ambiente são, no entanto, desenvolvidas a partir de hipóteses previamente estabelecidas. No primeiro caso, a fonte ou agente de risco são conhecidos e estudam-se suas conseqüências sobre a saúde. No segundo, o lugar é conhecido e estuda-se a relação entre variáveis ambientais, sócio-econômicas e de saúde. No terceiro, o agravo e sua etiologia são conhecidos e estuda-se sua relação com fatores ambientais. Em todas estas abordagens, os critérios utilizados para regionalização são determinantes dos resultados esperados. Nos primeiros casos, a região é previamente estabelecida, isto é, um pressuposto de trabalho, e no terceiro ela é conseqüência do próprio processo de análise de dados epidemiológicos, isto é, seu resultado.

O geoprocessamento apresenta vantagens não só na detecção, mas na apresentação visual de agrupamentos ("clusters") (Rothman, 1990). Neste caso, o geoprocessamento representa uma ferramenta de divulgação de resultados de investigações facilmente compreendidos pela população (Brown et al., 1984).

Dentro do amplo espectro do que é denominado 'mapa de risco', encontram-se mapas que têm como conteúdo desde a presença de agentes ambientais de risco até suas conseqüências, previstas ou medidas, sobre a população. Os possíveis danos à saúde humana causados por atividades poluidoras são precedidos por processos de uso de substâncias químicas, sua emissão para o ambiente, a exposição de uma população e a dose a que será submetida esta população. As relações entre exposição, dose e dano têm sido objeto de estudo da toxicologia clássica, que se utiliza principalmente de ensaios de laboratório para a avaliação da toxicidade de determinada substância química. Estes ensaios procuram simular condições de exposição do homem a agentes de risco. Os passos precedentes de uso, emissão por fontes de contaminação e exposição de grupos populacionais ocorrem no ambiente, sendo passíveis de quantificação e localização no espaço. A avaliação dos principais usos e emissões de uma substância química é realizada através do inventário de fontes potenciais de poluição, viabilizado por meio de dados secundários sobre produção (WHO, 1982; Stockwell et al., 1993; Barcellos & Lacerda, 1994). Diferentes estratégias são adotadas para estudos de casos onde existam várias fontes de um só agente, vários agentes emitidos por uma só fonte e múltiplos agentes emitidos por fontes diversas de contaminação (Andersen & Gosk, 1989). Estas fontes podem ser pontuais, lineares ou difusas, exigindo para cada tipo um tratamento gráfico e estatístico para disposição e análise de dados epidemiológicos.

Através da união entre os processos desencadeadores de riscos ambientais, pode-se estabelecer uma seqüência de passos metodológicos que permitem a análise globalizada de riscos à saúde. Esta metodologia foi recentemente utilizada na avaliação de riscos à saúde dos trabalhadores de uma indústria que utiliza mercúrio em seu processo produtivo (Melo & Barcellos, 1993). Sua adaptação ao geoprocessamento pressupõe que os dados necessários para a avaliação sejam localizáveis espacialmente.

O esquema (Tabela 1) é proposto para a análise de risco em condições onde predomina um agente de risco.

 

 

Esta análise será tão mais facilitada quanto maior a especificidade dos indicadores de cada nível de controle. O solo e o sedimento têm sido utilizados como indicadores de contaminação ambiental por sua facilidade de amostragem, a integração de longos períodos de contaminação. A urina ou sangue são tradicionalmente tomados para a avaliação da exposição de trabalhadores a agentes químicos. No caso dos metais pesados ou micropoluentes orgânicos, o uso da sua concentração em compartimentos bióticos e abióticos permite uma interligação entre níveis de controle, garantindo a especificidade dos indicadores (Body et al., 1988). Um cuidado adicional deve ser tomado neste caso para reduzir efeitos de variação natural de níveis de base de metais presentes em todos estes compartimentos (Godin et al., 1985).

Entre o uso de uma substância química e o dano à saúde de uma população existe uma defasagem que pode variar de dias a anos. Desta maneira a associação entre os indicadores freqüentemente não é verificada. Como o tempo de latência de doenças relacionadas a riscos ambientais pode alcançar alguns anos, a defasagem temporal entre mapas temáticos de cada nível de controle de risco pode prejudicar a superposição destes dados, que representam diferentes períodos no tempo. Além disso, o local de residência pode não representar o local de exposição, isto é, as condições nas quais se verificaram condições adversas geradoras da doença. Este problema é minimizado para faixas etárias correspondentes a crianças e recém-nascidos, que são mais suscetíveis, foram submetidos a exposições recentes e possuem uma mobilidade menor ou delimitável por informações familiares e escolares (WHO, 1983; Body et al., 1988).

Da mesma maneira, na dimensão espacial, os fenômenos descritos possuem diferentes extensões no espaço. O raio de influência de uma atividade poluidora é restrito segundo características de forma química da emissão de poluentes e condições locais de transporte destes poluentes. A escolha da escala de análise e do nível de agregação de dados deve ser compatível com a extensão prevista do risco associado a uma atividade poluidora ou agente químico ou físico. A união entre modelos matemáticos de dispersão e ciclagem de poluentes com o geoprocessamento pode contribuir para a análise de cenários e a avaliação da extensão de efeitos de contaminação ambiental. Para isso, é necessário dispor de grande número de variáveis espacializadas, como regime de ventos e precipitação, regime hidrológico e estrutura do meio biótico.

O estabelecimento de populações potencialmente expostas tem sido um dos objetos de estudo de análises de risco. A contaminação não atinge a todos de forma indiferenciada. A população crítica (Penna Franca et al., 1984) dependerá dos hábitos culturais e alimentares, das condições de moradia e da dinâmica dos poluentes no ambiente. Se em condições ocupacionais a atmosfera é o caminho crítico de exposição de trabalhadores, na condição de habitação o alimento (incluindo a água) pode se transformar em fator crítico de exposição (Body et al., 1988). Neste caso, as principais vias de exposição dependerão da ciclagem dos poluentes no ambiente (solo, água e atmosfera), incluindo a possível biomagnificação dos poluentes através da cadeia trófica. No famoso caso de Minamata, o grupo populacional crítico, que mais sofreu as conseqüências da contaminação por mercúrio, residia em torno da baía, onde o metal foi acumulado e sofreu transformações químicas que lhe conferiram maior toxicidade.

A distância da população a fontes de poluição é um fator controlador dos riscos associados à exposição, mas não o único. O trabalho de Silvany Neto (1982) na Bahia mostrou uma forte correlação entre distância da fonte de emissão de metais pesados e indicadores de dose na população vizinha. Por outro lado, a faixa etária, ocupação e condições de habitação condicionam de forma seletiva grupos populacionais submetidos a maior risco. Outras variáveis culturais e sócio-econômicas podem influir no risco final. Fatores relevantes podem ser levantados por grupos populacionais homogêneos, incluindo condições de moradia, ocupação, idade, densidade demográfica, utilizando-se como unidade mínima o setor censitário.

 

 

Considerações finais

 

A análise espacial de padrões epidemiológicos não pretende estabelecer associações causais no nível individual. Por outro lado, pode se transformar em um instrumento valioso na avaliação do impacto de processos e estruturas sociais na determinação de eventos de saúde (Marshall, 1991). A categoria espaço tem valor intrínseco na análise das relações entre saúde e ambiente e no seu controle. Conhecer a estrutura e dinâmica espacial permite a caracterização da situação (entendida também no sentido latino de lugar) em que ocorrem eventos de saúde. Neste sentido, oferece instrumentos aos autores que clamam por uma retomada, por parte da epidemiologia, da análise de situações concretas das populações em interação, submetidas a riscos de natureza difusa, e, por vezes, superposta (Barreto et al., 1993). Além disso, permite o planejamento de ações de controle, alocação de recursos e a preparação de ações de emergência.

Devido ao conjunto de elementos inter-relacionados presentes no espaço, torna-se difícil o estabelecimento de relações de causalidade entre condições ambientais e saúde. O geoprocessamento de informações ambientais e de saúde permite, antes de mais nada, a identificação de variáveis que revelem a estrutura social, econômica e ambiental, onde riscos à saúde estão presentes. Como sugere Santos (1978), "a busca das causas, relacionando apenas fatores visíveis, deve ser preterida em favor do estabelecimento do contexto" no qual um evento de saúde ocorre, o que certamente não é pouco. Com isso, a categoria espaço contribui para o entendimento dos processos envolvidos em determinado fenômeno ambiental que se deseja estudar. Longe de pretender ser a 'ciência da totalidade', a geografia "serve para desvendar máscaras sociais", como sugerido por Ruy Moreira. O geoprocessamento é, neste quadro, um poderoso instrumento a serviço da pesquisa em saúde.

No campo preditivo e preventivo, a ferramenta do geoprocessamento permite ainda planejar medidas de intervenção junto a fontes poluidoras, áreas de concentração de poluentes e populações expostas a risco.

 

 

Agradecimentos

 

Os autores agradecem a colaboração dos pesquisadores Marília Sá Carvalho e Marco Aurélio Bassoli na revisão e sugestões sobre este texto.

 

 

Referências

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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