Gil Sevalho

Debate sobre o artigo de Suely Rozenfeld

Debate on the paper by Suely Rozenfeld

Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.

 

 

 

 

Como contribuição ao debate do artigo Farmacovigilância ­ elementos para a discussão e perspectivas, de Suely Rozenfeld, pretendo abordar a questão conceitual da farmacovigilância numa perspectiva que a aproxima da vigilância epidemiológica, procurando assim estabelecer uma discussão sobre seus objeto e escopo.

As origens históricas da vigilância epidemiológica devem ser buscadas no nascimento da quarentena, durante a peste negra do século XIV, na Europa (Romero & Troncoso, 1981). Foi uma prática de vigilância voltada para contatos e suspeitos portadores de doenças transmissíveis, a qual participou da empresa capitalista colonialista que, nos países agrário-exportadores, operou o controle e a erradicação das doenças transmissíveis nas áreas produtoras de matéria-prima, sob a orientação do mundo industrializado, no início do século XX. Um empreendimento autoritário, coercitivo e punitivo alicerçado na ordem simbólica das representações belicista da guerra contra os micróbios, movido pela recém-fundada microbiologia.

Os anos 50 trouxeram, para Langmuir (1976: 13), uma nova versão de vigilância aplicada "à doença específica mais do que aos indivíduos". Uma prática centrada não mais em doentes e suspeitos, mas no comportamento da doença. Já com esta concepção, voltava-se para as doenças transmissíveis o modelo cuja implantação mundial foi discutida na 21a Assembléia Mundial de Saúde (OMS, 1968), embora esta vigilância tenha sido ampliada nas décadas de 60 e 70 para "as doenças não infecciosas incluindo leucemia, anomalias congênitas, "reações aos medicamentos" (grifo meu), problemas nutricionais e uma ampla variedade de riscos ambientais e ocupacionais" (Langmuir, 1976:13).

A vigilância epidemiológica acompanhou o movimento da Epidemiologia que, atendendo ao chamado dos tempos, transformou seu objetivo. A Epidemiologia passou de um interesse exclusivo nas epidemias de doenças infecciosas para outro que incorporou as doenças não infecciosas, enquanto as novas doenças de massa características do envelhecimento populacional do século XX, e, posteriormente, a avaliação de serviços e tecnologias de saúde e os agravos resultantes das diversas formas de violências, já na perspectiva de uma epidemiologia dos fatores de risco. Como se a reboque da Epidemiologia, a vigilância epidemiológica assim também se movimentou.

A preocupação com os efeitos adversos dos medicamentos alopáticos modernos só se tornou alvo de uma atenção sistematizada depois da chamada invasão farmacêutica do pós-guerra dos anos 40 e do desenvolvimento das grandes indústrias transnacionais que a gerou. Foi a partir de então, segundo Tognoni & Laporte (1989:47), que "formou-se um campo de pressão em torno dos medicamentos como ferramenta terapêutica, que teve sua origem na indústria farmacêutica" e que "afetou os responsáveis pela prescrição e os usuários, propiciando a colocação do setor farmacêutico numa disjunção permanente entre cobrir numa necessidade sanitária real e assegurar numa expansão constante do mercado".

Esta pressão deve ser vista no âmbito de um fenômeno amplo e complexo. O panorama de desenvolvimento do projeto industrial farmacêutico transnacional é o de uma sociedade medicalizada, quando as necessidades de consumo são produzidas com a intervenção médica no cotidiano humano.

Na década de 60 alguns movimentos sociais certamente foram importantes para o surgimento de uma preocupação sistematizada em relação aos efeitos indesejáveis dos medicamentos. Nos países desenvolvidos, com o interesse crescente pela qualidade dos serviços de saúde prestados, enquanto bens de consumo envolvidos nas conquistas relacionadas aos direitos civis, e com as inquietações atuariais privadas e públicas com os altos custos da assistência, a utilização de tecnologias médicas passou a representar objeto de avaliação.

Foi também nos anos 60 que se deu o nascimento, nos Estados Unidos, de um "movimento cultural" relacionado com a "ética aplicada", que trouxe em seu bojo a "ética dos negócios", a "ética ambiental" e a "bioética" (Mori, 1994:332). E a bioética é o saber que trata dos limites éticos impostos à prática médica diante das possibilidades de intervenção advindas da produção tecnológica desenvolvida e comercializada pelo complexo médico-industrial, pela indústria de equipamentos médicos e medicamentos.

Especificamente no que diz respeito à principal tecnologia empregada na área saúde ­ o medicamento, cuja prescrição passou a definir a consulta médica e substituiu até mesmo o diagnóstico no colóquio médico-paciente ­ foi, como percebe Suely em seu artigo, marcante a contribuição do trágico episódio da talidomida no processo que deve ter originado a farmacovigilância. A ocorrência de focomelia foi detectada em 1961 a partir da denúncia de um pediatra alemão que associou a doença ao consumo por gestantes do sedativo talidomida. Os primeiros casos da malformação relacionados ao consumo do referido medicamento foram relatados pelo médico Widekund Lenz por meio de carta a uma revista médica internacional, e, segundo Biriell & Olsson (1989), durante muitos anos esta foi a forma mais comum de comunicar as reações adversas aos medicamentos.

Nos anos 60 surgiram trabalhos pioneiros sobre uma vigilância sistematizada das reações adversas aos medicamentos e do seu uso enquanto potencial fator de risco (Cluff et al., 1964; Seidl et al., 1966; Smith et al., 1966a, 1966b).

A vigilância pós-comercialização de medicamentos é, na definição de Last (1989:187), no Dicionário de Epidemiologia dirigido pela International Epidemiological Association, o "procedimento posto em marcha depois da autorização do registro de um novo fármaco; desenhado para procurar informação sobre o uso real do fármaco para uma determinada indicação, assim como sobre a aparição de efeitos indesejáveis. Método para o estudo epidemiológico das reações adversas aos medicamentos".

Nos sistemas ou programas de farmacovigilância, os elementos metodológicos fundamentais são: "1) a fonte ou fontes de informação sobre as reações adversas (entrada de dados), 2) o procedimento de análise desta informação e 3) a comunicação dos resultados aos interessados" (OMS, 1972). Como em qualquer sistema de vigilância epidemiológica, deve-se combinar a seleção de eventos para notificação, a definição das variáveis que serão trabalhadas e a indefinição das fontes de informação. Na perspectiva dos programas ou sistemas de farmacovigilância, a seleção de eventos pode partir seja da consideração de possíveis reações adversas, tomadas de uma forma geral ou de acordo com uma relação de ocorrências estabelecida previamente, seja da definição de alguns medicamentos, cujo uso será acompanhado. Assim, o próprio uso de medicamentos poderá ser acompanhado e estudado, e esta é uma questão central que quero apresentar neste debate.

Uma característica tecno-administrativa é marcante na vigilância epidemiológica e permite tão-somente sua inclusão no âmbito evidentemente mais amplo e complexo da epidemiologia, reconhecendo esta última como disciplina científica voltada para o estudo do adoecer das populações humanas. E assim, dentro do espaço disciplinar da epidemiologia, deve ser analogamente posicionada a farmacovigilância em relação à farmacoepidemiologia, que Last (1989:73) define como o "estudo da distribuição e dos determinantes dos acontecimentos relacionados com os fármacos nas populações e a aplicação deste estudo a uma terapêutica farmacológica eficaz".

Thacker & Berkelman (1988) propuseram recentemente a expressão Vigilância em Saúde Pública (Public Health Surveillance), aceitando sob esta nova denominação uma definição adequada também à vigilância epidemiológica, ou seja, "a coleta, análise e interpretação sistemáticas e permanentes de dados sobre saúde pública, integradas à pronta disseminação dos dados a todos aqueles que devem conhecê-los". Em colaboração com outros autores, Thacker & Berkelman (Klaucke et al., 1988:1) falam no "processo de descrição e acompanhamento de um evento sanitário." (grifo meu). Para Thacker & Berkelman (1988) a palavra contínua ou permanente (ongoing) resume um atributo crítico para a caracterização das ações de vigilância em saúde pública. Além disso, deve ser considerado ainda o aspecto da sistematização das ações. São estas características principais que identificam e fundamentam um sistema de vigilância como um sistema de informação para ação que tem por objetivo principal acompanhar eventos definidos e, se necessário, intervir oportunamente no seu curso.

O conceito apresentado engloba evidentemente a farmacovigilância enquanto um sistema de informação-ação para detecção e controle das reações adversas aos medicamentos. Neste caso, em uma perspectiva mais ampla, a definição de evento sanitário poderia não envolver somente as reações adversas propriamente ditas, mas também outros eventos ligados à utilização de medicamento, definida pela OMS (1977) como "a comercialização, distribuição, prescrição e uso de medicamentos em uma sociedade, com ênfase especial sobre as conseqüências médicas, sociais e econômicas resultantes". Colocado o requisito da prescrição como parte integrante do conceito de reação adversa, o uso de medicamentos revela-se um objeto mais amplo da farmacovigilância.

 

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