Eduardo Navarro Stotz

Debate sobre o artigo de Suely Rozenfeld

Debate on the paper by Suely Rozenfeld

Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.

 

 

 

 

O trabalho apresentado por Suely Rozenfeld propõe uma discussão que considere a revisão conceptual e histórica do elemento central da farmacovigilância ­ as reações adversas causadas por medicamentos em seres humanos. A oportunidade de ampliar o debate para além dos aspectos estritamente técnicos do artigo consiste, a meu ver, na consideração da farmacovigilância enquanto parte de política regulatória na área da saúde, a ser ainda implantada no Brasil. O assunto abordado é extremamente relevante e atual: a política de saúde em nosso país, crescentemente 'inampizada', reduz-se cada vez mais à assistência médica na qual a principal tecnologia utilizada é o medicamento. Infelizmente, apesar do aumento dos gastos com assistência médica, a maioria da população continua vivendo uma situação de saúde grave e difícil.

A vigilância de medicamentos consiste em ações de caráter técnico-científico. Melhor dizendo, trata-se de ações fundamentadas e legitimadas cientificamente. À "cientificação da técnica" (Lenk, 1990) que se observa nessas ações, não corresponde, contudo, como a própria autora reconhece, um protocolo de diagnóstico (e, portanto, uma tecnificação da ciência experimental) suficientemente sólido e consensualmente aceito. Essa debilidade obriga-nos a lembrar a advertência de Steven Rose (Rose & Appignanesi, 1989) de que, se a ciência pode ser vista como um espelho da natureza, é um espelho curvo e distorcido pelas expectativas e visão de mundo daqueles que a dominam. O fim de qualquer neutralidade possível é também o fim, nesses tempos de ciência 'pós-normal' (Funtowicz & Ravetz, 1997), de qualquer inocência. Nessa perspectiva, gostaria de chamar a atenção, em face dos problemas de natureza metodológica assinalados pela autora, para algumas questões.

Sistemas de monitoramento de reações adversas são cientificamente fundamentados em determinado tipo de racionalidade. A racionalidade médica dominante (alopática) no mundo ocidental segue o padrão de racionalidade da ciência moderna, fundada na visão analítico-reducionista e de caráter generalizante. Ainda que a idéia de multicausalidade seja proposta como modelo explicativo, na prática predomina a causalidade linear. Originada a partir da anatomoclínica, trata-se de uma medicina do corpo, das lesões e das doenças (Camargo Jr., 1990). Mas há outras racionalidades médicas possíveis. A homeopatia, por exemplo, partindo do pressuposto da impossibilidade de conhecer todos os antecedentes causais das doenças, investiu, com Hahnemann, no conhecimento dos efeitos da doença em sua totalidade ­ o que exigiu tratar os doentes (ainda que conformados em 'tipos' de enfermos) e não a doença. Cabe ainda acrescentar que a investigação homeopática teve como ponto de partida o problema das reações adversas dos medicamentos, levando Samuel Hahnemann a abandonar a prática médica e iniciar os seus estudos sobre os medicamentos (Hahnemann, 1982).

Do ponto de vista social, por outro lado, a farmacovigilância está fortemente condicionada pelo processo de medicalização que caracteriza o desenvolvimento da medicina contemporânea. Um aspecto importante desse tema é o da iatrogenia farmacológica abordado por Barros (1995) e que remete ao problema das reações adversas ­ problema central da farmacovigilância segundo a autora.

Por último, fica a inquietação política relacionada tanto ao problema do protocolo de diagnóstico já comentado, quanto ao da carência de bases de informação/notificação no Brasil. É sabido, ainda, ser a indústria farmacêutica fonte importante de informação dos prescritores (médicos, estudantes residentes, balconistas) de medicamentos. Tal situação apenas acentua a necessidade de pensar formas de regulação de caráter social. Uma política regulatória organizada através de um sistema nacional de farmacovigilância não deveria abranger também outros eventos ligados ao uso de medicamentos? Um sistema que possa considerar a complexidade dos fatores envolvidos na ocorrência das reações adversas (Sevalho, 1997), além de mais adequado do ponto de vista científico-técnico, não contemplaria melhor as exigências de uma forma de regulação socialmente controlada, na medida em que incluiria os diferentes atores relevantes na organização desse mesmo sistema?

 

BARROS, J. A. C., 1995. Propaganda de Medicamentos: Atentado à Saúde? São Paulo: Editora Hucitec/Sobravime.

CAMARGO JR., K. R., 1990. (Ir)Racionalidade Médica: Paradoxos da Clínica. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

FUNTOWICZ, S. & RAVETZ, J., 1997. Ciência pós-normal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, 2: 219-231.

HAHNEMANN, S., 1982. Organon de la Medicina. Buenos Aires: Editorial Albatros.

LENK, H., 1990. Razão Pragmática: A Filosofia entre a Ciência e a Práxis. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

ROSE, S. & APPIGNANESI, L., 1989. Para uma Nova Ciência. Lisboa: Gradiva.

SEVALHO, G., 1997. Vigilância Epidemiológica e Farmacovigilância, "Gatos de um Mesmo Saco": Impressões Históricas e Conceituais. (no prelo)

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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