ARTIGO ARTICLE


 

 

 

 

 

Eloisa da Graça do Rosario Gonçalves 1
Paulo Chagastelles Sabroza 2
Ernesto Hofer 3


Prevalência de infecção por Vibrio cholerae O1 no Município de Manacapuru, Amazonas, Brasil (1992)

Prevalence of Vibrio cholerae O1 infection in Manacapuru, Amazonas State, Brazil (1992)

 


1 Curso de pós-graduação em Medicina Tropical, Departamento de Medicina Tropical, Instituto Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil.
2 Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil.

3 Laboratório de Zoonoses Bacterianas, Departamento de Bacteriologia, Instituto Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ, 21045-900, Brasil.
  Abstract This study focused on the prevalence of V.cholerae O1 infection in 1,196 individuals living in Manacapuru, Amazonas State, through microtitering of vibriocidal antibody and somatic agglutination test. The role of living conditions and individual characteristics as possible risk factors for infection was also assessed. Vibriocidal titers =1: 40 and/or agglutinating titers =1: 80 were considered indicators of V.cholerae O1 infection. Infection prevalence was 25.7%. There was no significant statistical difference (p = 0.05) when analyzed against housing patterns, sanitary facilities, source and treatment of water, destination of domestic waste, sex, or profession. Household location, number of occupants/household, age, and schooling showed significant statistical differences in infection prevalence (p = 0.05).
Key words Cholera; Vibrio cholerae O1; Epidemiology  

Resumo Na presente investigação foi determinada a prevalência de infecção por Vibrio cholerae O1 em 1.196 indivíduos, moradores da cidade de Manacapuru, Amazonas, mediante técnicas de microtitulação dos anticorpos séricos vibriocidas e soroaglutinação somática em tubos. Paralelamente, procurou-se avaliar a influência de condições de moradia e de características individuais como possíveis fatores de risco para a infecção. Como indicativos de infecção por V.cholerae O1, consideraram-se os títulos vibriocidas =1:40 e/ou aglutinantes =1:80. A prevalência de infecção foi de 25,7%, não tendo havido diferença estatisticamente significante (p>0,05) quando confrontada com o padrão de domicílio, instalação sanitária, fonte e tratamento da água para consumo e destino dado ao lixo domiciliar, como também não houve em relação ao sexo e profissão. Quanto à ocupação e ao local do domicílio, à faixa etária e ao grau de instrução, houve diferenças estatisticamente significantes na prevalência de infecção (p<0,05).
Palavras-chave Cólera; Vibrio cholerae O1; Epidemiologia

 

 

Introdução

 

A cólera ainda permanece como um grave problema de saúde pública, apesar de serem conhecidos os mecanismos básicos e as circunstâncias epidemiológicas envolvidas em sua disseminação desde o século passado, com o pioneiro trabalho de John Snow (1855). Estudos epidemiológicos mais recentes têm ampliado o conhecimento sobre a dinâmica de transmissão da doença. Felsenfeld (1965) demonstrou, em laboratório, o papel de grande variedade de bebidas, alimentos e fômites como fontes potenciais de veiculação. Múltiplos veículos de transmissão, incluindo peixes e mariscos, vegetais, água mineral e até a água do banho, foram identificados, igualmente, em condições naturais em vários países (Feachem, 1981).

Durante a recente epidemia ocorrida na América do Sul, investigações realizadas em Piura, Trujillo e Iquitos (Peru), Guayaquil (Equador) e em uma comunidade rural da Bolívia (Blake, 1993) demonstraram associação entre a doença e o consumo de água não fervida proveniente do Abastecimento Público Municipal ou do rio Solimões, como também de bebidas e comidas vendidas na rua. Em nosso país, onde não havia registros de cólera há quase um século, tornou-se necessário o desenvolvimento de estudos a fim de identificar os possíveis fatores de risco para a infecção pelo vibrião colérico, bem como melhor caracterizar os aspectos epidemiológicos da doença.

 

 

Material e métodos

 

Área de estudo


 

O Município de Manacapuru está localizado no centro da Amazônia brasileira, situando-se à margem esquerda do rio Solimões, na confluência deste com o rio Manacapuru, distante 79 km da capital. A área urbana é composta de oito bairros, os quais foram subdivididos em 42 setores, como parte do plano de operacionalização do trabalho de vigilância sanitária exercido pela Fundação Nacional de Saúde (FNS).

Segundo inquérito realizado em agosto de 1990 e atualizado em novembro de 1991 pela FNS, a população urbana consta de 34.607 habitantes, sendo o número de domicílios avaliado em 6.892, com média de ocupação de cinco pessoas por unidade.

 

Obtenção da amostra


 

Empregou-se o processo de amostragem aleatória sistemática, abordando-se 240 grupos familiares, distribuidos em um terço dos 42 setores nos quais a área de estudo encontra-se dividida.

A coleta de todo material foi feita em visitas domiciliares, no período de março a julho de 1992, com a participação de 1.196 indivíduos. Os dados individuais (identificação, sexo, idade, grau de instrução e ocupação) e domiciliares (localização; tipo de material usado na construção das paredes, piso e teto; número de cômodos e dormitórios; tipo de instalação sanitária; fonte e tratamento intradomiciliar da água para uso doméstico; destino dado ao lixo) foram anotados em fichas de investigação epidemiológica.

As amostras sangüíneas foram obtidas por punção venosa periférica, utilizando-se tubos de vacuteiner. A fração sérica foi separada por centrifugação a 3.000 rpm durante 15 minutos e mantida a -20o C. Empregaram-se os métodos de microtitulação de anticorpos vibriocidas, segundo técnica modificada por Benenson et al. (1968) e de soroaglutinação O, conforme proposto por Goodner et al. (1960), empregando-se como antígenos as cepas VC-12 Ogawa e VC-13 Inaba (CDC-Atlanta/USA). A aglutinação OH foi incluída a fim de avaliar a possível sensibilização por outros sorovars da espécie V.cholerae, conforme observações de Bhattacharyya & Mukerjee, 1974; Bhattacharyya, 1993; Sakazaki et al. 1970.

Como indicativos de infecção por V.cholerae O1, foram considerados os títulos vibriocidas =1:40 e/ou aglutinantes O =1:80, tomando-se como parâmetro os títulos de anticorpos apresentados por trinta indivíduos residentes na área, que tiveram cólera bacteriologicamente comprovada.

Os dados obtidos no inquérito foram codificados para entrada em banco de dados construído através do software Epi Info Version 5 (EPI 5). A análise dos resultados consistiu de distribuição de freqüências absolutas e relativas das variáveis e construção de tabelas de contingência, aplicando-se o teste do Qui-Quadrado () para averiguar a associação entre pares de variáveis e/ou atributos.

 

 

Resultados

 

Foram estudados 240 domicílios, nos quais residiam 1.441 pessoas. Em decorrência de recusas ou ausência de membros das famílias no momento da visita, 1.196 indivíduos participaram do inquérito sorológico.

 

Características gerais das condições de moradia


  Tipo de construção

 

Dentre as 240 casas visitadas, 212 (88,3%) eram construídas de madeira e 28 (11,6%), de alvenaria, com piso de madeira em 183 (76,2%) e de cimento ou cerâmica em 57 (23,7%). Em 227 (94,6%), o material do teto era o zinco, amianto ou alumínio (11 destes com forro de madeira); 12 (5%) eram cobertas de palha e uma (0,4%) apresentava laje de concreto. Do total, 231 (96,2%) eram casas permanentes no solo; oito (3,3%) eram construídas sobre colunas de madeira, suspensas do chão (palafitas) e uma (0,4%), sobre troncos de madeira, dentro do rio (casa flutuante).

Para facilitar a análise dos resultados, foram definidos três padrões de domicílios, com base nos critérios acima (tipo de material usado na construção das paredes, piso e teto), associados à avaliação subjetiva do pesquisador no momento da visita. Desta forma, consideraram-se precários os domicílios com paredes e pisos de madeira e teto de palha, as palafitas e a casa flutuante; regulares, os domicílios com paredes de madeira e teto de zinco, amianto ou alumínio (com ou sem forro de madeira) e de bom padrão os que fossem construídos de alvenaria e/ou madeira, com piso de cimento ou cerâmica e teto de zinco, amianto ou alumínio (com ou sem forro de madeira), ou, ainda, laje de concreto.

Segundo os padrões definidos, houve predomínio de domicílios considerados regulares, em número de 165 (68,7%), ao passo que 57 (23,7%) enquadraram-se na definição de bom padrão e 18 (7,5%) atenderam aos critérios de domicílio precário.

  Ocupação dos domicílios

 

Apurou-se que o número de cômodos em cada domicílio variou de um a sete, com maior proporção (38,2%) apresentando três cômodos. O número de moradores por domicílio variou de um a vinte, com 118 domicílios (49,2%) sendo habitados por de uma a cinco pessoas; 107 (44,6%), entre seis e dez pessoas; 15, por mais que dez pessoas.

  Instalações sanitárias

 

Em relação às instalações sanitárias, constatou-se que 192 (80%) domicílios apresentavam fossa biológica; 37 (15,4%), fossa rudimentar, e 11 (4,6%) não contavam com nenhum tipo de instalação, sendo os dejetos lançados diretamente no rio ou em igarapés próximos à residência.

  Fonte de abastecimento e cuidado com a água para consumo

 

A água para uso doméstico era proveniente da Rede Pública de Abastecimento em 191 (79,6%) domicílios; de poço, em quarenta (16,6%); do rio, em nove (3,7%), sendo a água de beber coada em 149 moradias (62,1%), filtrada em 39 (16,2%) e fervida em 22 (9,1%). Além destes cuidados, em 130 (54,1%) domicílios, o hipoclorito de sódio era acrescentado à água na dose de uma a três gotas/litro, diariamente. Em 15 (6,2%), o acréscimo do hipoclorito representava o único tratamento e, em outras 15 (6,2%), a água era consumida sem nenhum tipo de tratamento intradomiciliar.

O armazenamento domiciliar da água de beber era feito em potes de boca larga ou panelas em 108 residências (45%); em geladeira (em garrafas), em 111 (46,2%); e mantida no filtro, em 21 (8,7%).

  Destino dado ao lixo

 

Em 135 (56,2%) domicílios, o lixo era coletado pelo Serviço de Limpeza Pública Municipal, ao passo que era abandonado em 58 (24,1%) (46, em terreno baldio; dez, no rio; dois, em igarapés próximos à residência). Em 47 casas (19,6%), o lixo era queimado.

 

 

Características gerais da população estudada


 

Dos 1.196 indivíduos avaliados, 687 (57,4%) pertenciam ao sexo feminino e 509 (42,5%), ao masculino, com idade variando de dois a noventa anos. Quanto à escolaridade, a maioria (52%) referiu ter instrução primária (da primeira à quarta série), completa ou não, seguida dos pré-escolares (17,8%) e dos analfabetos (13,5%). Referiram ter cursado ou estar cursando da quarta à oitava série 146 indivíduos (12,2%) e 54 (4,5%) tinham instrução secundária.

Em relação à ocupação, 501 (41,9%) indivíduos eram estudantes; 263 (22%) exerciam atividades doméstica; 256 (21,4%) eram menores de idade. Em menor proporção, participaram do estudo quarenta (3,3%) agricultores, 35 (2,9%) operários, 22 (1,8%) comerciantes, 54 (4,5%) servidores públicos e 25 (2,1%) pescadores.

 

Inquérito sorológico


 

Do total de 1.196 amostras estudadas, 307 atenderam aos critérios estabelecidos como indicativos de infecção, representando uma prevalência de 25,7%.

 

Prevalência de infecção segundo condições de moradia


 

Quanto aos diferentes padrões de domicílio, houve 27,4% de infecção entre os moradores em casas consideradas de bom padrão, 25% entre residentes em casas de padrão regular e 25,2%, entre aqueles em precárias condições de moradia. Em relação às instalações sanitárias, constata-se prevalência discretamente mais elevada no grupo de pessoas residentes em casas com fossa biológica (26,4%), em seguida encontram-se aquelas que fazem uso de fossa rudimentar ou negra (24,7%), enquanto na população residente em casas sem nenhum tipo de instalação sanitária a prevalência de infecção foi de 15,4%.

Quando se considerou a fonte de água para consumo doméstico, a prevalência de infecção foi maior entre os que consomem água do rio (33,3%), seguidos daqueles servidos pela Rede Pública de Abastecimento (26,1%) e dos que consomem água de poço (21,3%).

Quanto ao destino dado ao lixo domiciliar, houve maior prevalência de infecção (28,5%) entre os residentes em domicílios onde o lixo era abandonado próximo à residência, seguindo-se de 24,3% de prevalência entre aqueles em cuja residência o lixo era coletado pelo Serviço de Limpeza Pública e de 26,1% entre os que referiram queimar o lixo domiciliar.

O estudo estatístico revelou não haver diferenças significativas (p>0,05) na prevalência de infecção encontrada em relação às diferentes variáveis supramencionadas.

Avaliando-se a forma de ocupação dos domicílios, verifica-se que houve prevalência mais alta (31,8%) no grupo em cujo domicílio residiam de uma a cinco pessoas; nas residências nas quais residiam de seis a dez pessoas, a prevalência foi de 23,2%, e naquelas com mais de dez moradores, foi de 21,5%, sendo estas diferenças estatisticamente significantes (Tabela 1).

 

 

Quando se distribui a sorologia positiva por bairro, observa-se maior prevalência no bairro de Terra Preta (35,7%), seguido do bairro de São José (25,9%), Liberdade (30,3%) e do Centro (29%), segundo dados da Tabela 2. Em relação aos setores, houve prevalências mais altas no setor 25 (35,7%), pertencente ao bairro de Terra Preta; setor 30, (35,1%), pertencente ao bairro da Liberdade, e setor 1 (31,3%), pertencente ao Centro. Estas diferenças foram estatisticamente significantes.

 

 

 

Prevalência de infecção segundo características individuais


 

Houve prevalência discretamente mais elevada de infecção entre as mulheres (27,4%) do que entre os indivíduos do sexo masculino (23,4%). Em relação à idade, observa-se prevalências mais altas nas faixas etárias mais avançadas (a partir da quinta década), atingindo o ápice entre cinqüenta e sessenta anos, com 39,5% (Tabela 3).

 

 

Quanto ao grau de instrução, destacam-se a maior prevalência entre os indivíduos analfabetos (32,9%), seguidos daqueles com instrução primária, completa ou não (Tabela 4). Enfocando a ocupação dos indivíduos, constata-se que os pescadores, seguidos dos que exercem atividades no comércio, apresentaram prevalências de infecção mais altas (32% e 31,8%, respectivamente).

 

 

Estatisticamente, as diferenças notadas na prevalência de infecção entre os sexos e as diversas atividades referidas não foram significativas (p>0,05), ao passo que, em relação à idade e à escolaridade, tais diferenças foram significantes (p<0,05).

 

 

Discussão

 

A prevalência de infecção de 25,7% demonstra que a disseminação do bacilo foi mais ampla do que se poderia supor, considerando-se o número de casos diagnosticados durante o período epidêmico. Este resultado assemelha-se àqueles encontrados em estudos de casos e controles realizados no Peru (Ries et al., 1992; Swerdlow et al., 1992), os quais identificaram a atividade vibriocida, em títulos elevados, em torno de 30% dos comunicantes de casos-índices.

Não houve diferenças estatisticamente significativas na prevalência de infecção em relação ao padrão de domicílio, tipo de instalação sanitária, fonte e tratamento da água para consumo e destino dado ao lixo doméstico. No entanto, salienta-se, ainda assim, a maior prevalência encontrada entre os indivíduos que referiram consumir água do rio, uma vez que, em monitoramento do meio ambiente realizado pela FNS durante a propagação da epidemia de cólera, o V.cholerae O1 foi isolado em amostras d'água recolhidas dos rios Solimões, Manacapuru e Meriti (dados não publicados). Levando-se em conta que a água distribuída pela Rede Pública de Abastecimento provém do rio Meriti, esperar-se-ia que maior prevalência de infecção ocorresse pelo consumo de água fornecida por este serviço. No entanto, pelas informações contidas no Álbum Cartográfico dos Municípios do Estado do Amazonas (Governo do Estado do Amazonas, 1993) e confirmadas pelos técnicos da FNS, tratamento químico à base de sulfato de alumínio e cloro é aplicado antes da distribuicão domiciliar. Além disso, o teor de cloro residual foi averiguado em torneiras domésticas durante a epidemia, sendo considerado dentro do nível bactericida.

Constatou-se que, em relação ao tratamento intradomiciliar da água, em 130 domicílios foi referido o uso diário do hipoclorito de sódio na dose de uma a três gotas por litro. Ressalva-se, porém, que esta medida foi implementada na área em novembro de 1991 (informação obtida junto ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde), quando a epidemia encontrava-se em franca expansão, o que, aliado ao fato de a maior proporção dos domicílios (79,6%) estar ligada à Rede Pública de Abastecimento, tornou difícil avaliar o papel desta medida na proteção contra o vibrião colérico.

Curioso achado é representado pela diferença estatisticamente significante na prevalência de infecção quanto à ocupação dos domicílios. Houve prevalência mais alta (31,8%) entre os indivíduos que residiam em casas cujo número de moradores era de um a cinco, em contraste com as clássicas observações de John Snow (1855), segundo o qual a propagação do bacilo é favorecida pela aglomeração de pessoas. Lembramos a possibilidade de que outras variáveis, como a localização dos domicílios, assim como a idade e o grau de escolaridade dos indivíduos, possam estar influenciando esta diferença.

Quanto à localizacão por bairros, as prevalências mais elevadas foram encontradas justamente nos bairros onde houve maior incidência de casos durante a epidemia (Gonçalves et al., 1993). Um dado interessante a este respeito é que estes bairros (Terra Preta, São José, Liberdade e Centro) situam-se às margens dos rios Manacapuru, Meriti e Solimões, respectivamente, de onde foi isolado o vibrião colérico, como anteriormente referido.

Estes fatos sugerem, portanto, que a prevalência de infecção significativamente mais acentuada nestas áreas reflete, possivelmente, maior contato da população com os referidos cursos d'água e, conseqüentemente, maior risco de exposição ao agente. Observação semelhante foi feita em Hong Kong (Forbes et al., 1968), onde as populações vivendo próximo a coleções d'água apresentavam-se proporcionalmente mais infectada.

Salienta-se ainda que, embora a diferença na prevalência de infecção não tenha sido estatisticamente significante quanto aos padrões de domicílio, estes bairros concentram o maior número de casas flutuantes e sobre palafitas existentes na área. Este tipo de construção, em geral sem instalações sanitárias e água tratada, favorece o consumo de água do rio, enquanto o destino dos dejetos passa a ser, igualmente, o rio, estabelecendo-se um verdadeiro circuito fecal-oral.

Quanto às características individuais, houve prevalência discretamente mais elevada no sexo feminino. No entanto, o fato de maior proporção de indivíduos do sexo masculino ter apresentado a doença na fase epidêmica (Gonçalves et al., 1993) reforça os dados encontrados por John Snow (1885) no século passado, o qual atribui a maior exposição inicial do sexo masculino ao fato de o homem sair mais freqüentemente de casa, sendo os sexos atingidos igualmente em fase subseqüente à onda epidêmica.

Em relação à idade, a acentuação da prevalência com o avançar da idade, alcançando níveis maiores que 30% a partir da quinta década, configura quadro epidemiológico semelhante ao retratado em áreas endêmicas (Mosley et al., 1968a; Mosley et al., 1968b), segundo os quais, em uma área sem história de cólera, a ocorrência da doença atinge todas as faixas etárias quase na mesma proporção. O desenvolvimento de resposta imune, a partir de então, torna-se mais acentuada nas faixas etárias mais altas, refletindo uma presumível reexposição ao antígeno do V.cholerae O1.

Quanto ao grau de escolaridade, a prevalência maior entre os analfabetos, seguidos daqueles com instrução primária, completa ou não, provavelmente está relacionada à maior resistência ou ao acesso mais difícil às medidas profiláticas e de controle da doença neste grupo. A este respeito, Pollitzer (1959) registra observações de vários autores, em cujas experiências os grupos sociais menos esclarecidos mostraram-se mais suscetíveis à infecção.

A análise da prevalência quanto à atividade exercida pelos indivíduos mostra maior infecção entre os pescadores, reforçando as evidências sugestivas de que o contato com a água do rio possa ter representado um possível fator de risco para a infecção.

 

 

Agradecimentos

 

À Fundação Nacional de Saúde, ao Instituto de Medicina Tropical de Manaus, ao CNPq e Coordenadoria de Laboratórios ­ COLAB, FNS/MS.

 

 

Referências

 

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