OPINIÃO OPINION


Sonia Azevedo Bittencourt 1
Uma alternativa para a política nutricional brasileira?

An alternative for Brazilian nutritional policy?

 


1 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480 8o andar, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil.   Abstract This article focuses on the alternative nutrition policy as a public policy issue. It discusses such important and controversial questions as the efficacy and safety of multimixture. It also analyzes six epidemiological studies focusing on the evaluation of the reliability of results. The article concludes that the numerous ambiguities, gaps, and contradictions in knowledge concerning alternative nutrition do not support the incorporation of this intervention proposal as a food and nutritional policy for Brazil.
Key words Food Policy; Nutrition Policy; Supplementary Feeding; Nutrition

Resumo O artigo focaliza a proposta de alimentação alternativa enquanto tema da política pública. Para isso, são assinaladas questões importantes e controvertidas quanto à eficácia e segurança da multimistura. Analisa também seis estudos epidemiológicos enfocando aspectos metodológicos relevantes à avaliação da confiabilidade dos resultados encontrados. Conclui-se que as muitas ambigüidades, lacunas e contradições do conhecimento não sustentam a incorporação da intervenção proposta no nível de política alimentar e nutricional brasileira.
Palavras-chave Políticas de Alimentos; Políticas de Nutrição; Suplementação Alimentar; Nutrição

 

 

Introdução

 

No Brasil, poucos assuntos têm gerado tantas controvérsias nos últimos anos como a hipótese de associação entre a alimentação alternativa e a recuperação da desnutrição energético-protéica, anemia e hipovitaminoses entre crianças. Entende-se por alimentação alternativa ou multimistura os nomes utilizados para designar a proposta de enriquecer alimentos da dieta habitual da população brasileira com a combinação de alimentos não convencionais, entre eles: farelo de arroz, farelo de trigo, casca de ovo, pó e sementes de vegetais e casca de frutas e verduras.

A promoção do uso da alimentação alternativa começou há quase 25 anos com o trabalho desenvolvido pelos médicos Clara e Rubens Brandão, no Pará. Mas foi a partir da avaliação positiva de um relatório de Roger Schrimpton, para Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), no qual se apontava a redução drástica das formas graves de desnutrição, que a alimentação alternativa passou a ser difundida em todo o País (Nogara et al., 1994). Há quase 11 anos tal alimentação é implementada pela Pastoral da Criança da CNBB (Conferência Nacional de Bispos do Brasil), e há nove anos, por alguns serviços da rede pública de saúde e educação (Beausset, 1992). Mais recentemente, o Ministério da Saúde está propondo a divulgação e indução ao consumo rotineiro de multimistura (Farfan, 1998), como uma das ações integrantes do Programa de Combate às Carências Nutricionais.

Com o propósito de contribuir nessa discussão, foram examinados 18 trabalhos desenvolvidos sobre a alimentação alternativa nos últimos sete anos no Brasil. Na primeira leitura dos documentos, é evidente que a análise do tema não pode prescindir de discussões, mesmo sumárias, de questões que vão desde requerimentos nutricionais, composição química dos alimentos utilizados pela alimentação alternativa, passando pelos resultados de experimentos em laboratórios com animais e de estudos epidemiológicos até da legislação vigente sobre regulamentação de alimentos. Por conseguinte, o aprofundamento apropriado de cada um destes aspectos exigiria a contribuição de um grupo multidisciplinar.

O presente artigo procura condensar as discussões de alguns pontos considerados chaves no âmbito da proposta da alimentação alternativa.

A formulação de políticas que redundem em melhoria do estado nutricional são subsidiadas pelo entendimento da magnitude, distribuição geográfica dos problemas nutricionais e os fatores a eles associados. Ao longo das últimas décadas, uma série de trabalhos (Monteiro, 1995) evidenciou a variedade de agravos nutricionais e a complexidade dos fatores causais envolvidos. Isso traz grandes desafios para a execução de políticas que contemplem necessidades tão heterogêneas, entretanto os modelos de intervenção tradicionalmente implementados privilegiam apenas um fator envolvido no processo causal. Esta também é a concepção para o uso da alimentação alternativa, pois entende que os problemas são essencialmente decorrentes de uma inadequação no consumo de alimento, sendo então sua principal atividade o provimento do mesmo, para corrigir ou compensar os principais nutrientes que são fornecidos de forma inadequada pela dieta.

No processo de construção do argumento, o primeiro requisito diz respeito à análise do valor nutritivo dos alimentos utilizados, buscando relacioná-lo com a plausibilidade dos mecanismos biológicos envolvidos na recuperação do estado nutricional. Na interpretação do valor nutritivo leva-se em conta não só a composição química dos nutrientes, como também seus aspectos qualitativos, estes determinados pelas condições de processamento do alimento, pelas interações entre os diferentes compostos da dieta, presença de antinutrientes e o estado fisiológico (Torin, 1996).

Em geral, as partes dos alimentos aproveitados na multimistura são pobres em calorias, mas apresentam altas concentrações de minerais (ferro, cálcio, zinco, cobre, magnésio, manganês e selênio), vitaminas (A, B2, B6, C, ácido fólico, ácido pantotênico e biotina) e fibras. Em cada tipo de alimento se destaca um ou mais destes nutrientes, porém só nos farelos de trigo e arroz sobressaem também as proteínas (Beausset, 1992; Torin et al., 1994; Nogara et al., 1994).

No entanto, ainda é pouco o conhecimento sobre o impacto das diferentes condições de processamento envolvidas na produção da multimistura, no que se refere à manutenção da quantidade de alguns nutrientes. Em razão da possível variabilidade, existe o comprometimento na estabilidade dos mesmos no produto, e, assim, não há garantias da sua ingestão em níveis identificados nas amostras das tabelas de composição química de alimentos.

O passo seguinte a ser examinado refere-se à definição da quantidade de multimistura necessária para cobrir as recomedações nutricionais e, por conseguinte, prevenir as deficiências nutricionais. Tal definição apresenta, entretanto, duas grandes limitações: as insuficientes bases científicas disponíveis para realizar uma recomendação segura de micronutrientes e a ausência de tabelas de composição de alimentos que sejam confiáveis e completas. Em especial, para os minerais e fibras, as diversas tabelas apresentam uma enorme variação no conteúdo dos mesmos em diferentes amostras do mesmo alimento (Davidson et al., 1979; Shils & Young, 1988). Sem dúvida, no caso da alimentação alternativa, esta situação é agravada pelos questionamentos, já discutidos anteriormente, sobre as condições de processamento da multimistura.

A interferência na biodisponibilidade dos nutrientes causada pela interação entre eles e a presença de antinutrientes são motivos de significativas polêmicas nos documentos analisados. É descrito que o zinco, ferro, cobre e cálcio, em determinadas concentrações relativas, interferem mutuamente nas suas taxas de biodisponibilidade (Cozzolino, 1997). Pouco também se conhece quanto à magnitude da ação de fitatos, oxalatos e fibra dietética, presentes na multimistura, em reduzir a biodisponibilidade dos nutrientes (Beausset, 1992; Torin et al., 1994).

A importância da discussão da biodisponibilidade dos nutrientes pode ser valorizada considerando-se o exemplo já bem estabelecido do ferro: a biodisponibilidade do ferro é influenciada pela combinação de alimentos em cada refeição. Enquanto o ferro de origem animal é bem absorvido, cerca de 22,5%, o ferro presente em vegetais e cereais geralmente é pobremente absorvido, entre 3% e 10%, como também é fortemente afetado por substâncias na dieta que podem realçar (proteína e viatmina C) ou inibir (fitatos, oxalatos e fibra) a sua absorção (DeMaeyer et al., 1989). É bom lembrar que este é apenas um dos fatores envolvidos na complexa determinação da freqüência e distribuição de anemia no mundo, tanto que experiências desenvolvidas em diversas localidades apontam que a modificação da dieta, para melhorar a ingestão e absorção de ferro, é uma medida que, por si só, não atinge total êxito (Simmons, 1994).

Tome-se como exemplo uma criança entre cinco e nove anos, cujo requerimento de ferro absorvido necessário para o crescimento e reposição das perdas é estimado em 1 mg (Stekel, 1984). Utilizando-se como referência a quantidade recomendada pelo trabalho de Nuñez (1996) (detalhes sobre o estudo na Tabela 2), observa-se, na Tabela 1, que a quantidade de ferro nos alimentos não convencionais é suficiente. Contudo, para grandes parcelas da população brasileira, que apresentam uma dieta monótona, volumosa, à base de vegetais e com densidade calórica baixa, peculiaridades de dietas com baixa biodisponibilidade de ferro (Bengoa et al., 1987), os alimentos não convencionais forneceriam apenas 14,05% do requerido. Ainda assim, para aquelas dietas que incluem substâncias que realçam a absorção de ferro, as de intermediária biodisponibilidade, a adequação de ferro permanece insuficiente. A grosso modo, resta ainda uma quantidade significativa de ferro para se alcançar o requerimento diário, valor provavelmente inatingível pela dieta usual de milhões de brasileiros. Em termos gerais, pode-se concluir que a adoção da multmistura pouco teria a contribuir na melhoria da situação de saúde brasileira, que revela a anemia como o agravo nutricional de maior prevalência entre todos os estratos econômicos.

 

 

 

 

A proposta de utilização da alimentação alternativa na recuperação de crianças se baseia no princípio de que as deficiências nutricionais, tradicionalmente atribuídas a energia e proteína podem ter um componente causal no déficit de micronutrientes (Beausset,1992). Embora essa etiologia pareça provável, ainda não está suficientemente explorada.

Conforme descrito anteriormente, os alimentos da multimistura são pobres em calorias, portanto, à luz dos conhecimentos atuais, orienta-se a sua utilização com uma base de alimentos ricos em calorias, como os cereais e leguminosas. Semelhante exigência, com certeza, pode limitar o suposto impacto da multimistura, visto que, como já foi apontado pelos estudos sobre o consumo alimentar (Inan, 1996), existe um déficit marcante de calorias na dieta de um contingente expressivo da população brasileira, em conseqüência da quantidade insuficiente de alimentos disponível em nível domiciliar.

Mais recentemente, a queda da prevalência de desnutrição energético-protéica se deu simultaneamente ao aumento de resultados de estudos clínicos que demonstravam a gravidade das carências de micronutrientes para o desenvolvimento humano. Tornou-se, portanto, imperativo discutir estratégias para controlá-las (Gueri, 1994).

Apesar de o número de micronutrientes ser considerável, só existem relatos de problemas de saúde pública relacionados com as carências de iodo, vitamina A e ferro. E nesses casos já existem estratégias universalmente conhecidas para prevenção e controle (Bengoa et al., 1987).

Quanto a outros micronutrientes, como zinco, sódio, cálcio, fósforo, cobre, selênio, manganês e magnésio, Bengoa et al. (1987) afirmam que, provavelmente, as dietas usuais com quantidades suficientes de calorias para satisfazer às necessidades nutricionais suprem também as necessidades destes micronutrientes, salvo para grupos de indivíduos de idade e estado fisiológico especiais.

A complexidade das questões levantadas previamente cria desafios para os pesquisadores que procuram entender a relação da multimistura e o estado nutricional.

Também merece destaque o debate sobre as condições sanitárias dos farelos de arroz e trigo, geralmente preparados em nível comunitário ou domiciliar. O fato de os farelos serem subprodutos industriais, usados acima de tudo para nutrição animal, faz com que suas condições sanitárias sejam bastante variáveis (Beausset, 1992 e Nuñez, 1996).

Nuñez (1996) relata que cerca de 20% das amostras de farelo de trigo analisadas em alguns estados brasileiros apresentaram, antes do tratamento térmico, contaminação microbiana acima dos limites estabelecidos para a alimentação humana. Observou-se, também, rápida rancificação nos farelos de arroz, embora os autores afirmem que essas contaminações podem ser controladas no domicílio mediante tratamento térmico (Domene, 1996).

É necessário, outrossim, investigar os níveis de aflatoxinas ­ composto carcinogênico e altamente resistente à destruição pelo calor de tostagem ­ nos farelos (Torin et al., 1994).

É importante chamar a atenção para o fato de haver consideráveis setores da população brasileira sob condições econômicas e culturais favoráveis para a manutenção da transmissão de organismos patógenos, causadas, entre outros fatores, por uma higiene pessoal, doméstica e de alimentos deficientes. Em adição, temos a possibilidade de liberação de ácido cianídrico pela folha de mandioca em decorrência de processamento incorreto (Farfan, 1998; Torin et al., 1994; Nuñez, 1996). Tal substância é essencialmente prejudicial às pessoas com dietas pobres em aminoácidos sulfurosos e vitamina B12.

A introdução no domicílio de alimentos contaminados compromete, sem dúvida, a segurança da multimistura, pois não só poderá influenciar na ocorrência de doenças, como interferir no presumível impacto positivo dos farelos no estado de saúde e nutrição.

Com o intuito de ajudar a compreender os efeitos da multimistura como agente protetor da ocorrência de doenças carenciais e os mecanismos de ação envolvidos, foram realizados dois experimentos com animais de laboratório. Os resultados de Torin (1996) mostraram que a capacidade de recuperação de ratos com multimistura comparados com grupos-controle era quase nula. Por outro lado, a principal conclusão do estudo de Domene (1996) apontou que, para melhorar as propriedades do farelo de arroz há necessidade de adicionar minerais à dieta, invalidando, assim, a proposta de utilizar o farelo de arroz como fonte de minerais para o rato e, provavelmente, também para o homem.

Vários estudos epidemiológicos foram desenvolvidos para determinar a natureza da associação entre o uso da alimentação alternativa e a recuperação do estado nutricional de pré-escolares e escolares. Como pode ser observado na Tabela 2, em que se apresentam as principais características e os comentários dos estudos, tal associação mostra resultados contraditórios.

É importante assinalar que o julgamento destas associações não é simples nem lógico, e que o resultado de cada um desses estudos é só uma faceta na construção do raciocínio epidemiológico, apoiado pelas evidências de questões investigadas pelas ciências básicas.

Procurando oferecer balizas para as discussões sobre o tema, foram sistematizados alguns aspectos metodológicos relevantes à avaliação da confiabilidade dos resultados encontrados. Os números a seguir indicam os comentários para as pesquisas analisadas na Tabela 2.

1) Os autores não definiram o processo amostral. A questão é particularmente relevante, porque garante um número suficiente de participantes com o objetivo de detectar, com segurança, efeitos pequenos ou moderados, mas de importância nutricional (Hennekens & Buring, 1987).

2) Os autores não fornecem informações suficientes para julgar o cálculo amostral proposto.

3) A utilização de voluntários pode comprometer a generalização dos resultados do tratamento (Hennekens & Buring, 1987; Klein et al., 1982), pois quase nunca estes são representativos da população a que pertencem.

4) Dados importantes foram omitidos, tais como a descrição do perfil e atribuições dos entrevistadores, a especificação da forma como os entrevistadores foram treinados e padronizados, além da descrição dos instrumentos de medição. A inexistência de aplicação cuidadosa, no trabalho de campo, das exigências descritas é uma fonte incontrolável de erros (Hennekens & Buring, 1987).

5) Na definição das crianças elegíveis para participarem dos estudos, um aspecto fundamental não foi respeitado, ou seja, incluíram crianças sem necessidade da intervenção (Klein et al., 1982).

6) Os estudos não apresentaram informações necessárias para julgar se os grupos eram aleatoriamente equivalentes, conforme afirmado pelos autores. Chama atenção o fato de que variáveis como idade e ocorrência de doenças, reconhecidamente relacionadas ao consumo de alimentos não convencionais e ao estado nutricional, não tenham sido controladas por nenhuma técnica.

6a) Os estudos apresentaram informações que permitem julgar a comparabilidade entre os dois grupos investigados, entretanto o pequeno número de participantes impossibilitou comprovar verdadeiras diferenças significativas entre algumas variáveis importantes, como: idade, estado nutricional e prevalência de enteroparasitose.

A ausência de controle destas variáveis impede de responder se as mudanças detectadas foram proporcionadas pela alimentação alternativa ou causadas pelos processos normais de crescimento ou, ainda, as flutuações sazonais na ocorrência de doenças infecciosas.

7) Foram relatados problemas na execução do projeto em virtude da falta freqüente dos suplementos, da ausência de manutenção dos equipamentos e da assistência médica insatisfatória. Vale também destacar os trabalhos nos quais se observaram perdas significativas de crianças durante o desenvolvimento dos mesmos. Sem dúvida, tais questões comprometeram a confiabilidade dos resultados encontrados.

8) Em alguns estudos foi definido o número de gramas de suplemento nutricional distribuído a cada beneficiário, entretanto não está claro se houve controle no número de gramas realmente consumido. Assim, não se respondeu à pergunta básica: o suplemento chegou em quantidade suficiente aos participantes (Klein et al., 1982)?

Aqui, merece destaque uma questão de interesse da saúde pública, que é a investigação da relação dose-resposta. Segundo Willet (1990), os efeitos saudáveis de nutrientes só poderão ser apreciados pelo exame de toda amplitude de exposição, podendo, desta forma, identificar qual a quantidade de multimistura que leva à modificação do estado nutricional.

9) A falta de informação sobre a distribuição por idade dos participantes e, em alguns estudos, sobre o valor aproximado dos nutrientes das dietas fornecidas, torna impossível estimar as necessidades mínimas de nutrientes, a fim de apreciar em que medida a dieta, adicionada ou não de multimistura, é adequada (Klein et al., 1982).

Esta informação é essencial, uma vez que permite verificar se as mudanças observadas nos indicadores estudados poderiam ser atribuídas, com confiança, aos nutrientes provenientes da alimentação alternativa, ou se seriam decorrentes de variações no consumo destes nutrientes da dieta habitual da criança.

10) Não está explícito se os entrevistadores tinham conhecimento do grupo ao qual pertenciam as crianças estudadas. Tal fato, com certeza, influencia na observação das variáveis de resultados (Hennekens & Buring, 1987). Em alguns estudos, evidenciam-se, já na introdução dos trabalhos, sinais de tendenciosidade dos pesquisadores com o impacto positivo da alimentação alternativa na saúde e nutrição das crianças.

11) É relatada a influência positiva da alimentação alternativa na prevenção da ocorrência de doenças, porém não são explicitadas pelos autores, entre outras, as seguintes informações: o informante, a periodicidade e o instrumento de coleta de dados utilizado.

Pelas dificuldades enfrentadas para a interpretação dos resultados, fica claro que o desenho de investigação deve ser muito mais complexo do que a simples tentativa de estimar o efeito isolado da multimistura. Assim, as deduções dos trabalhos discutidos não são suficientemente sólidas e generalizáveis a crianças de outras localidades, de modo a permitir que os profissionais estejam seguros do impacto da intervenção.

Outros cinco estudos realizados entre 1983 e 1990 foram relatados no trabalho de Beausset (1992). Apontaram alguns indícios de um possível efeito positivo sobre o estado nutricional, na redução da incidência de infecções e a na melhoria no comportamento psicossocial. Entretanto, da mesma forma que nos trabalhos aqui analisados, a autora concluiu que, por razões metodológicas, os estudos não confirmaram o impacto da alimentação alternativa no estado nutricional.

 

 

Conclusões

 

À medida que o Brasil procura proporcionar serviços que satisfaçam as necessidades da população, é irrefutável que a avaliação de intervenções adquire crescente importância, tanto em relação ao domínio das práticas assistenciais, como no terreno das investigações de efetividade.

Ao analisar os documentos apresentados, em relação ao valor nutritivo e às condições sanitárias da multimistura, parece que as provas que supostamente dariam eficácia e segurança à mesma, não foram aprovadas devidamente. Segundo este argumento, ao faltarem essas qualidades, os recursos podem estar sendo destinados ao desenvolvimento de atividades sem utilidade comprovada.

Por outro lado, os resultados de alguns estudos epidemiológicos mal interpretados configuraram uma imagem de eficácia, legitimando a aceitação da alimentação alternativa. E a partir daí, esta se difundiu com marcada velocidade, tornando-se uma prática.

Reforçando esses achados, existem declarações entusiasmadas de profissionais e mães quanto ao suposto efeito benéfico da multimistura na recuperação da desnutrição energético-protéica. Ainda que esta possa estar inequivocamente associada à introdução da multimistura, é muito difícil estar seguro de que um causou o outro, e que o efeito não ocorreu em razão de eventos paralelos, isto é, supõe-se que a multimistura não seja eficaz por si só, como quando se combina a um conjunto de intervenções, sobretudo, dirigidas à saúde e à educação. Com isso, as conclusões podem se confundir. É complexo estimar o efeito separado de cada fator envolvido na recuperação do estado nutricional (Klein et al., 1982).

Deve ser considerado também o fato de os profissionais, principalmente os agentes comunitários da Pastoral da Criança, serem bastantes motivados para alcançar êxitos no desenvolvimento do seu trabalho. Neste momento, cabe perguntar: o que aconteceria se a proposta da multimistura passasse a ser uma atividade desenvolvida na estrutura burocrática e rotineira dos serviços da rede pública?

Sem dúvida, o papel desempenhado pela alimentação alternativa se presta a inúmeros interrogantes, dependentes de novos avanços científicos na compreensão da tecnologia do processamento dos farelos, dos requerimentos nutricionais do homem, de estudos dietéticos, bioquímicos, clínicos, epidemiológicos e das inter-relações dos nutrientes.

Porém, as muitas ambigüidades, lacunas e contradições do conhecimento nestes campos específicos não sustentam a incorporação, de forma acrítica, no nível de política alimentar e nutricional (Torin et al., 1994; Nogara et al., 1995), de uma intervenção de eficácia e segurança duvidosas.

Pode-se presumir que tal situação possa ser mais um aspecto da política pública brasileira, que não só incorpora uma proposta de intervenção sem uma adequada avaliação, como também a utiliza como desafogo, com o intuito de dar cobertura a uma parcela expressiva da população brasileira; no entanto, as ações, já comprovadas, de recuperação de carências nutricionais não atingem ou não têm condições de assistir esta parte da população, pelas limitações por demais conhecidas.

 

 

Agradecimentos

 

Sheila Rotenberg, Cristina Pinheiro Mendonça, Luis David Castiel e Suely Rozenfeld, pelas contribuições e sugestões.

 

 

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