CARTAS LETTERS

 

 

Programa de erradicação do Aedes aegypti: inócuo e perigoso (e ainda perdulário)

The Aedes aegypti eradication program: useless, hazardous (and wasteful, in addition)

 

Lia Giraldo da Silva Augusto 1
João Paulo Machado Torres 1
André Monteiro Costa 1
Carlos Pontes 1
Tereza Carlota Pirez Novaes 1


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Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz. Rua dos Coelhos 450, 1o andar, Boa Vista, Recife, PE, 50070-500, Brasil.

 

 

Senhor Editor,

No mundo das fibras ópticas, da engenharia genética e da informática, no qual a ciência aponta para novos paradigmas, onde a interdisciplinaridade e a integração do social com o ambiente é o núcleo de seu discurso, deparamos-nos com o trágico programa que propaga "um país não pode ser derrotado por um mosquito", conforme material de divulgação do Ministério da Saúde.

Considerando que: a) a dengue é uma doença provocada por um vírus que se aloja no mosquito Aedes aegypti, que o transmite ao homem através da picada; b) o mosquito tem um estágio larvário no seu ciclo de vida que depende de criadouro contendo água parada para seu desenvolvimento; c) se não existissem criadouros para as larvas que se transformam em mosquito, não haveria a doença; um programa eficaz seria aquele que centrasse seu foco na eliminação de criadouros e não no mosquito adulto, que faz gastar inutilmente recursos fundamentais para outras áreas, como o saneamento básico e a educação ambiental.

Independente de outras proposições, repete-se que um Programa eficiente de controle da dengue necessariamente deve centrar-se na eliminação dos criadouros. Entendendo-se criadouro como sendo águas paradas que são depositárias de ovos do mosquito (observação: caixas-d'água ou filtros fechados não são criadouros, são recipientes que devem ser protegidos contra a adição de produtos químicos de qualquer natureza, pois destinam-se ao consumo humano).

Programas que não apontem esse caminho são no mínimo perdulários, independentemente da instituição de origem e da formação intelectual dos consultores que os indicarem.

A dedução lógica do complexo ciclo da doença aponta para um programa operativo baseado em dois pilares: saneamento básico e educação; no entanto, esses componentes foram, na prática, suprimidos do Programa de Erradicação do Aedes, permanecendo apenas a aplicação de venenos nas águas e no ar, colocando em risco a população, já que a expõe a produtos que são conhecidamente neurotóxicos e alergênicos e que, por isto, não dependem de dose para produzir seu efeito tóxico.

A análise do programa oficial, surpreendentemente, mostra uma diretriz diferente desta dedução. A prioridade do programa oficial está apontada para o combate ao mosquito, que é a terceira fase da cadeia de transmissão, pois esta opção é incorreta quanto à compreensão do processo desta doença, levando à inadequação de procedimentos para o seu controle.

Testemunhamos um inadequado uso de inseticidas pelos agentes de saúde que estão sendo auxiliados por recrutas do exército em Recife. Na visita, os agentes de saúde informam que estão colocando na água das caixas d'água um "pozinho que só é tóxico para as larvas do mosquito". Ao verificarmos a natureza desse produto, constatamos no rótulo da embalagem que se trata de um organofosforado, de nome técnico Temefós, cujo nome comercial é Abate (um agrotóxico).

Este produto é bastante conhecido como neurotóxico para humanos, fragiliza músculos e nervos e para o qual há evidências em estudos experimentais de efeito mutagênico (Hazardous Substances Data Bank Number 956, 1993). Quanto a possíveis efeitos carcinogênicos, solicitamos ao Departamento de Química da Universidade Federal de Pernambuco uma avaliação do produto.

Ainda mais surpresos ficamos ao ver que o veneno Temefós é colocado periodicamente em todas as caixas d'água, mesmo aquelas que estão fechadas e que portanto não são criadouros. O cálculo de quantidade de veneno é feito com o auxílio de uma tabela, que em Pernambuco é o dobro da utilizada em São Paulo, e usa como medidas: colheres/bisnagas, levando em consideração o tamanho físico do reservatório, independentemente do volume de água que no momento esteja dentro dele. Assim, podem aumentar em muito a concentração do veneno, pondo em risco a vida de pessoas que estão tomando água com qualidade, certificada pela empresa de saneamento do estado (Compesa) e pela Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde.

Na condição de sanitaristas, reafirmamos que o modelo de combate à doença está equivocado.

Os próprios agentes de saúde, ao pegarem o pacote de veneno, ficam com as mãos cheias da substância tóxica e, como não sabem do risco, expõem-se a esse produto químico sem nenhum cuidado. Por meio deste alerta queremos que a população não permita que se coloque produto tóxico em suas águas de consumo, bem como a Saúde Pública deveria rever urgentemente o modus faciendi deste programa.

A população deve ser orientada para cobrir seus reservatórios, recolher o lixo e não deixar água parada. Na verdade, o controle da dengue deveria ser feito com água, sabão, vassoura, medidas de higiene ambiental, saneamento e educação, tudo muito mais barato do que o uso de substâncias químicas tóxicas. Lembramos que o Manual de Combate à Dengue feito pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (1997) enfatiza que: "Na verdade, se todos colaborassem, não seria necessário usar inseticidas. Afinal, de alguma forma esses inseticidas sempre prejudicam a saúde, especialmente de crianças, idosos e pessoas alérgicas". Mais uma questão que precisaria ser avaliada seriamente é o uso de outro produto tóxico no fumacê: o piretróide, que provoca reações alérgicas em pessoas sensíveis (Meditext (R)-Medical Management 0.0 overview, 01/31/98). Neste sentido, também é um absurdo o uso dessa substância de forma indiscriminada, sem uma avaliação objetiva de sua eficácia e de outros danos que provoca à saúde e ao ambiente.

Como conclusão, poderíamos dizer que a lógica deste programa oficial é ser uma lógica de mercado e não de saúde pública. Para o enfrentamento da dengue, deveríamos resgatar a noção de saúde, de doença, de vida, de veneno, de saneamento e de ecologia.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br