ARTIGO ARTICLE

 

 

 

 

 

 

Alberto Olavo Advincula Reis 1


Análise metafórico-metonímica do processo de constituição do pensamento da saúde pública acerca da adolescente grávida: os anos 60  

Metaphorical/metonymical analysis of public health thinking vis-à-vis teenage pregnancy in the 1960s

 

1 Departamento de Saúde Materno-Infantil, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo 715, São Paulo 01246-904, Brasil. albereis@usp.br   Abstract This article is an analytical essay on a historical moment in the formation of public health thinking vis-à-vis adolescent pregnancy: the 1960s. Its relevance lies in the fact that several assertions produced then still bear great influence on ideas and models concerning adolescent maternity in current public health thinking. From the technical and methodological point of view, one can assume two levels: an explicit one pertaining to the documentary record, consisting of messages clearly communicated by authors of scientific texts, and an implicit one, with elements that could only surface in text discourse through stylistic effects. Based on such assumptions, we explored the specialized literature using a metaphorical/metonymical analysis in search of such implicit dimensions.
Key words Adolescence; Pregnancy; Pregnancy in Adolescence; Social Control  

Resumo O presente artigo constitui-se num ensaio de análise de um momento histórico do processo de formação do pensamento da saúde pública acerca da adolescente grávida: os anos 60. Sua relevância assenta-se, sobretudo, no fato de que várias asserções, então produzidas, ainda exercem grande influência nas idéias e nos modelos referentes à maternidade adolescente no atual estágio do pensamento da saúde pública. Do ponto de vista técnico-metodológico, considera-se que os elementos a serem apreendidos remetem-se respectivamente a dois planos: um explícito, relativo ao registro documental, constituído por mensagens intencionais e claramente comunicadas pelos autores dos textos científicos, e um implícito, que se refere aos elementos que só se apresentariam, na superfície discursiva dos textos, por meio de efeitos estilísticos. Com base nestes pressupostos, procedeu-se a uma exploração de textos em bibliografia especializada valendo-se de uma análise metafórico-metonímica buscando evidenciar sua dimensão implícita.
Palavras-chave Adolescência; Gravidez; Gravidez na Adolescência; Controle Social

 

 

O desvelamento da saúde pública em face da adolescente grávida: teoria e método

 

A dimensão latente e o plano explícito

 

Este trabalho tem sua origem no empreendimento de uma investigação relativa à construção do perfil do pensamento da saúde pública acerca da adolescente grávida de 1930 a 1980, consubstanciada na tese de doutoramento denominada O Discurso da Saúde Pública sobre a Adolescente Grávida: Avatares (Reis, 1993). A metodologia que orientou a referida pesquisa congrega duas linhas de força: uma dirigida à identificação das sucessivas temáticas que concorreram para construção de um perfil do pensamento da saúde pública, e outra referente ao evidenciamento do plano latente, subinscrito à cada temática.

As temáticas puderam ser estabelecidas a partir da identificação da área de conhecimento dominante à qual se remetiam os diferentes textos analisados e do modo de abordagem utilizado, então, para se estudar a adolescente grávida. Tal procedimento metodológico foi elaborado por Soares (1969), no âmbito do inventariamento e sistematização da produção na área da educação (alfabetização), também chamado de pesquisas de estado da arte e, respectivamente, aplicado por Reis (1993), para fins da pesquisa em saúde pública. Procurou-se, complementarmente, identificar os principais assuntos que eram veiculados no âmbito de cada temática. Para a consecução desta tarefa, procedeu-se a uma análise de conteúdo dos textos sobre adolescentes grávidas registrados no Index Medicus.

A noção de perfil do pensamento da saúde pública acerca da adolescente grávida foi derivada dos trabalhos de Bachelard, mais precisamente daqueles presentes em La Formation de l'Esprit Scientifique (Bachelard, 1970) e na Philosophie du Non: essai d'une philosophie du nouvel esprit scientifique (Bachelard, 1966).

A segunda linha de força refere-se à pressuposição de existência de um nível de significação subjacente à articulação explícita presente em toda comunicação (no caso, o pensamento da saúde pública a respeito da adolescente grávida). Esta linha conduziu à elaboração de um modelo de análise interpretativa análogo àquele construído por Freud e apresentado na Interpretação dos Sonhos (Freud, 1980) e na Psicopatologia da Vida Cotidiana (Freud, 1980). Deste modo, considera-se que o nível subjacente não é, apesar de estar à sombra, desprovido de eficácia, uma vez que produz sistematicamente significações no corpo manifesto do discurso. Estes efeitos revelam-se, sobretudo, no nível do estilo textual e nas figuras, de nível retórico, da linguagem (Laplanche, 1985; Juranville, 1987).

Para que se apreenda este plano latente, torna-se necessário debruçar-se sobre os conteúdos, referências e modos da organização significante presentes no discurso manifesto, bem como sobre as operações de linguagem, em particular sobre a metáfora e a metonímia. Este modelo parte da hipótese geral da existência de uma "analogia entre certos processos de linguagem e o dinamismo do inconsciente" (Lacan, 1970; Dor, 1989), já que se considera que a metáfora e a metonímia estruturam o inconsciente da mesma forma como o fazem com a linguagem.

Em relação especificamente aos textos de saúde sobre as adolescentes grávidas, estima-se que estes encerrem enunciados diversos sobre esta população, nos quais se plasma um discurso a ser desvelado em sua dimensão latente. "O não aparente, o oculto retido por qualquer mensagem" (Bardin, 1980:9) aparece na superfície manifesta, devidamente deformado ou disfarçado, como efeito dos processos de metaforização e metonimização.

 

A metáfora

 

Em termos mais imediatos, a metáfora define-se como um procedimento retórico que, operando por contigüidade no plano da língua, é capaz de condensar em uma única e mesma expressão duas ou mais idéias ou representações diferentes (Benveniste, 1966; Saussure, 1968; Colin, 1975; Kaufman, 1996). A letra da música Cálice, dos compositores Chico Buarque de Holanda e Milton Nascimento, editada em um momento, 1976, durante o qual o Brasil vivia um violento período de excepcionalidade política, oferece um bom exemplo de metáfora. Na expressão que a inicia, "Pai, afasta de mim este cálice de vinho tinto de sangue", encontram-se sucessivamente dois procedimentos metafóricos. O primeiro, situando-se num plano fonético-semântico, funde o imperativo do verbo calar-se com o substantivo cálice. Então, tem-se a igualdade fonética 'cale-se' e 'cálice' expressando, num mesmo ato acústico-fonatório, duas idéias distintas, a de silenciar-se e a de vaso ou recipiente. O segundo, "vinho tinto de sangue", une, nesta única e mesma expressão que tem por foco a palavra 'tinto', duas idéias diferentes, a de uma bebida alcoólica avermelhada, vinho tinto, vinho vermelho (espécie e qualidade de vinho) e 'tinto de sangue' significando manchado, sujo de sangue, compuscardo, marcado pelo crime.

Os procedimentos metafóricos, produzidos pelos compositores, permitiram que, além dos impedimentos políticos institucionais, aparecesse no plano manifesto um discurso latente relativo ao não mais querer o silêncio imposto pela tortura.

 

A metonímia

 

A metonímia, como a metáfora, é um procedimento retórico, de palavra, capaz de operar um deslocamento ou uma transferência de sentido de um significante para outro significante (Benveniste, 1966; Saussure, 1968; Colin, 1975; Kaufman, 1996). Tal operação pode se dar tanto no plano de uma relação de conteúdo para continente como na relação do todo para uma parte. Na seguinte expressão, "ontem, no restaurante, comi um bom prato", o sentido de alimento, comida, especiaria gastronômica, migrou, alojando-se em seu continente, o prato.

Os procedimentos metonímicos empregados pelo gourmet fazem com que o dito explícito esteja presente simplesmente como figuração, enquanto que 'o que fala', o significado, isto é, a significação propriamente dita, que consubstancializa semanticamente o discurso permanece oculta, apartada do plano explícito, manifestando-se exclusivamente por meio de um efeito retórico. A iguaria com a qual se regalou o gourmet não é sequer mencionada no plano explícito, mas tão somente o vasilhame, isto é, o prato. Sabe-se que o alimento fora bom porque, pelo conhecimento do procedimento da metonímia, pode-se apreender e 'ler' seu significado deslocado e alojado no vasilhame: "comi um bom prato!".

 

A situação dos estudos sobre adolescentes grávidas nos anos 60

 

A partir dos meados dos anos 40, o fenômeno da maternidade adolescente, definido como questão de saúde pública, começou a tornar-se objeto de interesse generalizado. Neste contexto, os anos 60 representam um período de destacada relevância na compreensão de importantes determinações do atual momento do pensamento e do posicionamento da saúde pública acerca da maternidade e gravidez das adolescentes. Concorreu para isto um certo número de fatores. Eggers & Wagner (1989) observaram que, após a Segunda Guerra Mundial, "a proporção de adolescentes aumentou subitamente" (Eggers & Wagner, 1989:141), o que veio, segundo os autores, constituir a origem de problemas cuja atualidade é evidente.

Na década de 60, especificamente, outros tantos determinantes vieram à tona. Destacam-se, de modo exemplar, a intensa participação da juventude no movimento de transformação dos padrões de comportamento sexual prevalecentes no Ocidente; a aderência gradativa e crescente das mulheres à difusão extensa de componentes do novo arsenal tecnológico capaz de assegurar o exercício da sexualidade na independência das áleas da maternidade; a participação das jovens nas lutas feministas permitindo às mulheres a assumpção de projetos próprios desvinculados de orientações masculinas e tradicionais.

O conjunto destes fatores possivelmente contribuiu para uma maior visibilidade das questões ligadas à maternidade adolescente, cujo indício pode ser observado no aumento da produção literária especializada a respeito deste tema. Os textos sobre gravidez, parto e puerpério de adolescentes registrados no Index Medicus no período de 60 representam, por exemplo, só eles, 51% de todos os textos indexados durante quase meio século (Tabela 1).

 

 

Há de se observar, ainda, que não houve somente um simples crescimento da literatura, como indica a Tabela 1, mas igualmente uma expansão característica das áreas geoculturais das quais proveio parte da produção científica relativa a gravidez, parto e puerpério da adolescente. Países, até então sem tradição de pesquisas divulgadas internacionalmente sobre este tópico, como Austrália, Canadá, Finlândia e México, passaram a estar presentes no Index Medicus (Tabela 2).

 

 

Nos casos observados, relativos a esta expansão geocultural dos textos sobre adolescentes grávidas, não se verificou nenhuma diversificação teórica ou enriquecimento de pontos de vistas epistemológicos ou disciplinares. Estes estudos e pesquisas aglutinaram-se quase que exclusivamente em torno de um eixo de considerações obstétrico-pediátricas.

Foram os trabalhos norte-americanos e, muito secundariamente, os ingleses que passaram a contemplar significativamente outras áreas do conhecimento, tais como educação, saúde pública e psicologia, demonstrando uma superação da problemática biomédica (Tabela 3).

 

 

 

A emergência da adolescente grávida como objeto da saúde pública

 

O período compreendido como década de 60, objeto da presente análise, além de se revelar como um momento bastante significativo e singular no processo de constituição do pensamento da saúde pública sobre a adolescente grávida, tem exercido uma importante influência no entendimento que hoje se tem da maternidade juvenil enquanto evento coletivo. Deste modo, há de se sublinhar que um razoável número de trabalhos de investigação, uma boa quantidade de programas de intervenção e uma boa parte das hipóteses e raciocínios acerca da adolescente grávida encontram-se, ainda hoje, marcadas pelas orientações teóricas que emergiram nos anos 60.

A partir desta década, a saúde pública alterou e remanejou profundamente seu enfoque, uma vez que, abandonando seu interesse pela gravidez (da adolescente), passou a preocupar-se com a adolescente (grávida). Esta mudança de orientação, ao deslocar o interesse da gravidez para a figura da adolescente, permitiu que se colocasse um ponto final nas estéreis discussões a respeito dos supostos agravos médico-biológicos que seriam inerentes à gravidez e ao parto das adolescentes. Deste momento em diante, a atenção da saúde pública passou a ser dirigida à mulher adolescente inserida num contexto econômico, de valores culturais, sociais etc.

Esta transformação sustentou-se e foi determinada, em grande parte, pelo movimento de recomposição da prática médica que, associando os princípios da medicina preventiva e da medicina integral, veio modelar o pensamento da saúde pública. A medicina preventiva e a integral, uma vez articuladas, criaram as condições para que se processassem tanto o remanejamento parcial da estrutura de produção de serviços, como a integração da dimensão sociológica no âmbito da prática médica (Donnangelo & Pereira, 1976; Alvarenga, 1984). Deste modo, houve "necessidade do descentramento do enfoque biológico e a correspondente orientação de cada ato médico no sentido de apreender e interferir com a complexidade do paciente" (Donnangelo & Pereira, 1976:80). Tratou-se, pois, de uma estratégia que, segundo Alvarenga (1984), promoveu uma concepção globalizadora do objeto individual e tentou recuperar a totalidade bio-psico-social do mesmo.

Deve-se ainda considerar, como identificou Reis (1993), que, a despeito de o projeto de recomposição da prática médica, estribado na articulação da medicina preventiva e da medicina integral, ter ganhado amplitude nas últimas décadas da primeira metade do século, seus efeitos, no que diz respeito às adolescentes grávidas, só começaram a se fazer sentir no curso da década de 60. Neste momento, o impacto das proposições da recomposição da prática médica no interior do pensamento da saúde pública sobre a maternidade das jovens, em curso nos EUA, condicionou o abandono de considerações exclusivamente biomédicas, como pode ser observado na Tabela 3, em prol da ponderação de fatores educacionais, psicológicos e sociológicos, fixando em alça de mira a figura integral da pessoa adolescente.

A diversificação de áreas de conhecimentos com referência à adolescente grávida foi igualmente acompanhada de uma transformação nos modos tradicionais de abordagerm da mesma. Conforme indicado na Tabela 4, verifica-se, associada a este espraiamento epistemológico, a emergência de um cabedal de procedimentos de abordagem que vem testemunhar a configuração, nos anos 60, de uma nova temática paradigmática referente à adolescente grávida.

 

 

Observa-se, em particular, que a modalidade de abordagem nos textos norte-americanos já não é mais, uniformemente, clínico-estatística. Ao contemplar a dimensão coletiva da problemática das gravidezes juvenis, a nova temática o faz além da perspectiva clínica, através do exame de funcionamento e eficicência dos programas e da prestação de serviços dispensados à comunidade, de experiências empíricas tendo por objeto populações. A transformação ocorrida no plano de abordagem se vê associada às transformações operadas na área de conhecimento.

 

A epidemia das gravidezes de adolescentes

 

Uma outra característica do pensamento da saúde pública na década de 60 é a de ter ele se centrado em torno de um núcleo significativo de asserções que visavam alertar contra a existência de uma alarmante 'epidemia' de adolescentes grávidas. A partir desta época, são vários os títulos e artigos de divulgação científica (Yousem & Gordis, 1969; Doyle, 1967; Alexander & Delughter, 1981; Noland & Sherry, 1967; Silber, 1991) que estabelecem, com grande ênfase estilística, a necessidade de se posicionar contra a 'epidemia' das adolescentes grávidas.

Entretanto, e contrariamente a tais alarmes, era possível observar, no plano empírico, uma tendência, detectada inicialmente nos EUA e em seguida nos outros países desenvolvidos, se não de reversão, pelo menos de abrandamento na elevação tendencial da taxa de adolescentes grávidas. Assim, o Instituto Alan Guttmacher, ao apresentar e analisar dados do U.S. Bureau of the Census em sua publicação "Eleven Million Teenagers: What Can Be Done about the Epidemic of Adolescent Pregnancies in the USA" (The Alan Guttmacher Institute, 1976:61), mostra, conforme a Figura 1, que as taxas de nascimentos de filhos de adolescentes têm, em sintonia com as tendências da fecundidade geral americana, diminuído desde o início dos anos 60.

No período de 1961 a 1974, as taxas de nascimentos de filhos de adolescentes entre 18-19 anos e de mulheres jovens entre 20-24 anos declinaram de modo análogo e paralelo. Para as adolescentes mais novas, entre 14 e 17 anos, a taxa de fecundidade, neste mesmo período, permaneceu praticamente estável (The Alan Guttmacher Institute, 1976:12).

A despeito destas evidências empíricas, o que se depreende de mais significativo, neste período, é o fato de que a adolescente grávida, enquanto fenômeno humano, superdeterminado e coletivo, passou a se ver, no pensamento da saúde pública, atribuída dos qualificativos de 'enfermidade', 'doença' e 'epidemia'.

Ora, estes diferentes elementos abrem caminho para uma análise interpretativa deste período de formação do pensamento da saúde pública. Torna-se factível evidenciar um plano latente subinscrito na temática alarmista e íntegro-preventivista dos anos 60. Este nível implícito, formado por intenções e idéias subsistindo à sombra das motivações explícitas dos textos, pode produzir efeitos significativos no corpo manifesto do discurso passíveis de apreensão no estilo textual e nas figuras de linguagem usadas nas comunicações científicas, em particular em suas metáforas e metonímias.

 

A metáfora da epidemia

 

No período de 60, a magnitude do fenômeno das adolescentes grávidas passou a ser representada nos textos de saúde pública por meio de qualificativos tais como 'alarmante' e 'epidemia' (Noland & Sherry, 1967; Alexander & Delughter, 1981), tratando-se, evidentemente, de um efeito retórico, de uma metáfora. O exame desta metaforização das gravidezes juvenis enquanto epidemia deverá, conseqüentemente, conduzir à explicitação de uma dimensão latente própria da temática do pensamento da saúde pública nos anos 60.

O termo epidemia, segundo MacMahon & Pugh (1965), foi usado, no passado, para descrever um surto agudo de enfermidade infecciosa passando, posteriormente, a ser estendido às moléstias não infecciosas. Mais precisamente, Almeida Filho (1989:142) vem defini-la como a "ocorrência repentina, não habitual, de um número grande de casos de uma doença específica, em uma área geográfica limitada". Portanto, quando se metaforizam as gravidezes das adolescentes como epidemia estão-se alocando ao fenômeno em pauta os atributos de:

a) quantidade excessiva,

b) fenômeno não habitual,

c) moléstia ou doença.

Esta nova qualificação advinda deste processo de metaforização veio permitir a inclusão da adolescente grávida no campo de abrangência da estratégia íntegro-preventivista. Assim, como indicam Donnangelo & Pereira (1976), tal estratégia caracteriza-se pela capacidade assumida de definir orientações aptas a sustar a epidemia através da identificação e da descrição das condições envolvidas nesta ocorrência. Tendo em conta este processo, cabe indagar se tal modelo, baseado na prevenção da doença, seria um instrumento adequado para se abordar a questão das adolescentes grávidas. Ou, em termos mais específicos, não se podendo considerar a gravidez moléstia (Ciari Júnior, 1973) quais seriam as conseqüências das asserções, acima elencadas, tendo em conta a inscrição metafórica das gravidezes juvenis no processo de saúde-doença?

É na teoria do papel do doente de Parsons (1967) que se podem encontrar os elementos que permitem responder a esta questão. Para este autor, uma moléstia só é aceita e tolerada, socialmente, caso se preencham as seguintes condições:

a) a doença deve ter uma origem não deliberada;

b) os indivíduos atingidos pela doença devem querer dela se livrar;

c) o indivíduo doente deve procurar ajuda competente.

 

A ilegitimidade como metonímia

 

Pelo fato de a adolescente preencher, muito raramente, as condições acima descritas, em especial a primeira delas, sua gravidez passa a ser envolta socialmente por uma aura de rejeição e intolerabilidade. Esta rejeição encontra nos temas veiculados pela temática dos anos 60 seu elemento de confirmação. De fato, tendo-se em conta tão-somente as publicações norte-americanas assinaladas pelo Index Medicus, verifica-se que a 'ilegitimidade' representa sozinha 16% do conjunto dos 12 temas mais freqüentes veiculados pelos artigos acerca das adolescentes grávidas, vindo ocupar o segundo lugar no rank, logo abaixo do tema 'educação'. Quando o tema 'ilegitimidade' apresenta-se associado ao de 'variação demográfica' (quantidade excessiva e/ou não habitual de adolescentes grávidas), ele passa a representar 27% dos principais assuntos da temática íntegro-preventivista dos anos 60 (Tabela 5).

 

 

A ilegitimidade, tal como tratada pelos textos de saúde pública, refere-se aos nascimentos na ausência de casamento (maternidade celibatária) tidos, então, como uma das características da maternidade das adolescentes. Diferentes autores que têm estudado a população das mães celibatárias (Lefaucheur, 1989; Koeppel, 1982) entendem que aquilo que a sociedade estima intolerável não seriam tanto as maternidades das adolescentes, mas a ilegitimidade que freqüentemente a elas se associa. Deste modo, a maternidade adolescente passou a representar, apenas por um efeito de metonimização, o essencial da ilegitimidade, a saber, o intolerável social.

Em outros termos, não podendo fazer explicitamente um discurso moral ou mesmo jurídico-legal em vistas do estabelecimento ou reforço de uma norma social destinada a coibir a bastardia, uma vez que este intento se acha divorciado de seus pressupostos epistemológicos, a saúde pública o refuga para um plano latente. Assim, silenciado, o recalcado do pensamento sanitário, animado por uma motivação persistente, emerge e apresenta-se, desta feita, por intermédio, não de um conteúdo semântico identificável, mas de efeitos estilísticos que fazem a circunspecção do texto científico!

Na medida em que a metonímia indica um recurso retórico mediante o qual uma parte passa, por deslocamento contíguo, a representar o todo, tem-se que a metonimização da adolescente grávida permitiu que os diferentes significantes da ilegitimidade (dentre eles aquele que se remete à significação da ilegitimidade como sendo aquilo "que não atende aos requisitos legais" - Ferreira, 1974:741) passassem a ser deslocados para a área da saúde pública. Como conseqüência deste deslocamento significante, a questão do controle social sobre a livre maternidade migrou do registro jurídico-legal para reaparecer no âmbito do raciocínio sanitarista.

Deste modo, a saúde pública dos anos 60 veio circunscrever implicitamente a adolescente grávida muito mais em considerações jurídicas, do que em procedimentos sanitários ligados ao propiciamento de seu bem-estar biopsicossocial. Vale ainda acrescentar que a saúde pública dos anos 60 ofereceu-se, muito provavelmente, como contraponto às novas pautas de comportamento sexual do jovem dos anos 60, pois, como afirmou Yousem, "1960 is labeled the decade of the sexual revolution" (Yousem & Gordis, 1969:61).

 

Finalmente, o retorno do recalcado

 

Em suma e como achego, há de se lembrar que, na década de 60, as adolescentes grávidas foram enfeixadas como objeto de pesquisa, estudos e interesse da saúde pública por duas perspectivas estreitamente ligadas uma à outra. De um lado, a medicina preventiva e a integral, tendo em décadas anteriores manifestado sua enorme influência na reordenação do conjunto do campo da saúde pública, passaram, a partir dos anos 60, a orientar os estudos sanitaristas voltados, especificamente, para a adolescente grávida. De outro lado, os temas veiculados por tais estudos dão ênfase, em grande parte, à necessidade de se fazer soar o alarme em face da, então chamada, 'epidemia' das gravidezes de adolescentes consoante o ideal preventivista.

Algumas considerações merecem ser feitas a respeito destas perspectivas. Em primeiro lugar, deve-se sublinhar que a inclusão dos paradigmas da medicina integral e da medicina preventiva no interior das orientações da saúde pública implicou a passagem de uma problematização eminentemente médico-biológica das adolescentes grávidas para uma instância de apreensão e análise global e multidisciplinar. Desta maneira, os temas eleitos pelas pesquisas sanitaristas, nos anos 60, vieram a se radicar muito mais nas dimensões psicológicas, sociológicas, econômicas, educacionais, demográficas, do que naquelas pertencentes ao mero solo biológico. Esta mudança de enfoque e de conceitos constituiu-se como uma verdadeira revolução no âmbito dos estudos sobre as adolescentes grávidas.

Outra conseqüência de profundo alcance foram as medidas preventivas que passaram a se pautar por princípios oriundos de um sistema logicamente coerente e tecnicamente consistente. Tais medidas decorreram de orientações assentadas na concepção de história natural da doença e que foram, originalmente, aplicadas no âmbito das doenças contagiosas. Posteriormente, o modelo preventivista, assim concebido, espraiou-se, abrangendo as doenças crônicas para, finalmente, vir modular as intervenções em contextos definidos, por exemplo, pela ocorrência de gravidez em adolescentes.

O evidenciamento destas dimensões constitutivas do pensamento da saúde pública a respeito da adolescente grávida somado à análise de seus temas recorrentes permitiram a organização de um quadro geral compreensivo da década de 60. Tendo por base este quadro, passou-se a operar com uma estratégia analítica direcionada para a dimensão latente do pensamento da saúde pública no período ensejado.

A definição deste objetivo justifica-se à medida que se considera que o nível implícito presente em toda mensagem produz efeitos e transmite significações através de operações estilísticas perfeitamente reconhecíveis e apreensíveis. Desta maneira, utilizando-se de uma análise metafórico-metonímica, pode-se mostrar que os textos de saúde pública, no período considerado, veiculavam, incentivavam e promoviam idéias e ações voltadas muito mais para o fortalecimento de normas jurídico-sociais do que para interesses propriamente sanitaristas. Depreendeu-se da análise em questão que as preocupações da saúde pública se voltavam, antes de mais nada, para a restrição e o apoucamento da ilegitimidade que freqüentemente aureola, no âmbito jurídico-social, as maternidades das adolescentes e menos para os fatores que, envolvendo a promoção do bem-estar, encontram-se apensos ao processo de saúde da adolescente grávida.

Provavelmente, parte da vertente socialmente normativa e politicamente controladora, mais evidente nos primórdios da história da saúde pública e, muito amiúde, em contradição com seus postulados científicos, ao invés de ser superada no âmbito de um processo de ascese racional (Bachelard, 1970), sofreu um recalcamento histórico. Deste modo, permaneceu ela à sombra dos enunciados intencionalmente comunicados pela divulgação científica. Contudo, diante da questão das maternidades adolescentes e em decorrência da sensibilidade particular deste campo, o recalcado agitou-se, manifestando seus efeitos numa produção estilística metafórico-metonímica que este ensaio tentou evidenciar e analisar.

 

 

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