RESENHAS

 

 

O MISTÉRIO DA CONSCIÊNCIA E DISCUSSÕES COM DANIEL C. DENNETT E DAVID J. CHALMERS. John R. Searle. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1998. 239 pp.

ISBN 85-219-0305-7

 

É possível conhecer a mente humana? Antes de esboçar qualquer resposta a esta pergunta, torna-se imprescindível demarcar o que se entende por conhecer. Isto, em si, já constitui um considerável problema, pois logo implica o objeto de estudo com o 'instrumento' que o estuda.

Para ir adiante no foco desta resenha, vamos encaminhar tal discussão para a tensão relativa a duas supostas modalidades de o que se procura conhecer, ou seja, o 'desconhecível' ­ incognoscível ­ ou o desconhecido ­ cognoscível. Sabemos que a filosofia se configura como o campo clássico que aborda a primeira dimensão (no caso da epistemologia, a própria tensão), enquanto as ciências empírico-lógicas, a segunda.

No entanto, desde a metade do século XX, estamos presenciando um progressivo e, agora, vigoroso avanço do segundo campo sobre o primeiro. Há autores, inclusive, que explicitam a meta de deslocar a própria distinção entre o desconhecido cognoscível e incognoscível da filosofia/epistemologia para o território científico (Traub, 1997).

Pois bem, a mente humana (e a propriedade de autoconsciência) se apresenta como um emblema desta tensão territorial. Há os que consideram a 'consciência-de-si' exclusivamente tratável em termos metafísicos e correlatos. No outro extremo, há os que a encaram como um objeto plenamente abordável pelas ciências empírico-lógicas, no caso, as chamadas neurociências ­ um ramo das ciências cognitivas, que inclui, também, outras vertentes: lingüística, psicologia cognitiva, inteligência artificial e inevitáveis hibridizações entre elas.

Importa salientar que neste, digamos assim, 'campo minado', também procura-se situar os saberes (meta)psicológicos de caráter psicanalítico, no qual o inconsciente se tornou um dos eixos principais na abordagem do psiquismo no século XX. No âmbito das psicanálises, nossos pensamentos e ações conscientes são, em grande parte, determinados pela influência de aspectos inconscientes. Sob tal ótica, uma abordagem dirigida à consciência tende a ser desvalorizada em razão de esta ser vista como algo secundário (ou, quem sabe, mal explorada por Freud ­ em relação a quem chega-se a conjeturar a autoria de manuscritos perdidos sobre o assunto).

No entanto, a partir das produções das ciências cognitivas e também de sua ampla difusão ao público não especializado, cada vez mais são enfatizadas e discutidas noções como intencionalidade, memória, capacidade de reconhecimento, emoções, subjetividade/qualia e consciência ­ todas seriam aspectos do mesmo processo: mente.

Apesar do embricamento entre estas idéias, a questão da consciência se evidencia com mais intensidade, provavelmente, em virtude da dimensão chamada 'ipseidade' ­ consciência-de-si. O argumento principal para a primazia desta via parece vincular-se ao fato de este aspecto específico se configurar como um dos temas que aparentam gerar mais perplexidade nos domínios dos estudos sobre o mental (e, também, confessemos, na perspectiva da economia psíquica de cada um de nós). Debate-se, inclusive, se cabe considerá-lo como um problema epistêmico, ou seja, passível de ser abordado pelos saberes, protocolos e instrumentos do âmbito científico verificacionista, como menciona o filósofo John R. Searle em sua didática coletânea de resenhas acerca de trabalhos de autores sobre a consciência, publicadas originalmente no New York Review of Books.

Segundo Horgan (1996), a consciência teria adquirido um estatuto de problema tratável mediante investigações empíricas depois que cientistas de renome, como Francis Crick (que juntamente com James Watson configurou a estrutura em dupla hélice do ADN) e o Prêmio Nobel Gerald Edelman, entre outros, produziram especulações teóricas acerca da organização e funcionamento neurobiológicos da mente. Estes pesquisadores e, também, Roger Penrose, Israel Rosenfield e os filósofos Daniel Dennett e David Chalmers são os autores resenhados no livro. Vale salientar, ainda, a cuidadosa apresentação de Bento Prado Jr.

Com base na premissa de que estados cerebrais causam estados mentais, um dos pontos cruciais dos trabalhos sobre a consciência, reiterado por Searle em vários momentos do livro, localiza-se no denominado problema dos qualia. Como lidar com as propriedades subjetivas, pessoais, singulares que acompanham a experiência consciente? Qualia é o plural de quale, uma palavra latina que se refere à qualidade abstraída como uma essência universal, independente de algo, como, por exemplo: dor, brancura, dureza. Aliás, o filósofo norte-americano, com pertinência, considera o termo enganoso, por deixar implícita a idéia do quale de um estado consciente ser dissociável da experiência consciente totalizada e ser abordado à parte. Ignorar a dimensão subjetiva da consciência inviabilizaria qualquer possibilidade de concebê-la.

Os domínios das ciências cognitivas, em geral, e o chamado terreno da filosofia da mente, em particular, aparecem como um impressionante campo de produção, com intensas (nem sempre fecundas) batalhas argumentativas entre seus representantes, o que se pode constatar vendo-se, por exemplo, as réplicas de Dennett e Chalmers e tréplicas de Searle. Nessas circunstâncias, há esclarecimentos de posições diante de eventuais mal-entendidos e previsíveis alegações de leituras equivocadas. Isto, claro, entremeado de algumas críticas mordazes e insinuações de caráter mais pessoal. Apesar do irresistível deleite provocado (qualia?) ao acompanhar as diatribes destes escritores ­ algo que vivifica um tipo de texto marcado pela dimensão elaboradamente intelectualizada, os 'atritos' resultantes dessas lutas de prestígio produzem mais 'calor' do que 'luz' (como diria um jornalista econômico.).

Na verdade, tais polêmicas servem como indicador da considerável ignorância que envolve o campo. Não há palavras definitivas (ou, mesmo, que ocupem, provisoriamente, esta condição). Com isto, as discussões tendem a ser inconclusivas. Mesmo assim, são descritos no livro pressupostos que orientam determinadas concepções da consciência como objeto 'desconhecível' ou desconhecido (dualistas ­ de substância, de propriedade; monistas idealistas e materialistas, por sua vez ­ behavioristas, fisicalistas, funcionalistas). E, neste último caso, percebe-se a criação de crenças (desmesuradas?) na capacidade de projetos neurocientíficos virem a desvendar a questão da mente humana e da sua peculiar capacidade de consciência (de possuir consciência).

Não aparece na capa da edição brasileira o subtítulo original, que só se explicita junto ao título interno ­ (...) e Discussões com Daniel C. Dennett e David J. Chalmers. Há, também, falhas de revisão e erros ortográficos ("excessão"! ­ p. 86). A meu ver, os maiores problemas provêm da difícil tradução de vários termos empregados no campo. Possivelmente, o vocabulário disponível reflete a falta de um léxico satisfatório para a abordagem da consciência ­ mais um sintoma da hipercomplexidade do tema. Isto se evidencia na inclusão do pequeno glossário-dicionário ao final do livro. Ao examiná-lo, ocorre a pergunta: qual é a diferença entre autoconsciência (self-consciousness") e consciência-de-si (self-awareness)? Os tradutores assinalam o uso de "ciência" para "awareness", que, apesar de correto (de fato, aware pode significar ciente), induz a erros de compreensão ao longo do texto, por causa da acepção primordialmente científica da palavra. De acordo com a suposta linha de raciocínio adotada, talvez fosse mais conveniente traduzi-la mesmo como consciência. "Sentience" como "sensibilidade" também é problemático. Embora pouco conhecido fora do âmbito especializado, há um vocábulo (dicionarizado) equivalente em Português ­ senciência. Peço, ainda, a devida licença para comentar que a correta intuição de evitar traduzir imagery por imaginário poderia ter outra resolução que a indicada por Prado Jr. ­ "imagiário". Talvez imageria atendesse melhor à proposta neológica que se apresentou.

Em suma, a obra de Searle proporciona, de modo proveitoso e, sobretudo, acessível, entrar em contato com a primordial questão da consciência humana. E, também, com os enormes esforços realizados por eminentes pensadores no sentido de propor hipóteses especulativas e demarcá-la como objeto de estudo pertinente. Seguindo Atlan (1991), o pensamento filosófico de segunda ordem ­ o que pensa o ser que pensa ­ sofre com os obstáculos causados pelo chamado problema corpo-mente. Conforme as respectivas abordagens, é gerada uma multiplicidade de encaminhamentos. A filosofia da mente (neurofilosofia?) é um deles. Sob esta ótica, dificilmente se pode pretender ao enunciado de verdade única, mesmo quando esta proposta de inteligibilidade da consciência procura ancorá-la no arcabouço científico, buscando a suposta firmeza das verdades produzidas sob a égide da Razão. Isto, pelo menos (e não é pouco), esclarece-nos acerca das dificuldades tanto de apresentá-la como um problema ­ estudável pelos dispositivos das ciências empírico-lógicas, quanto de assumi-la como um mistério insondável, próprio de pontos de vista irremediavelmente metafísicos ou de outros 'terreiros'...

 

Luis David Castiel

Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz

 

ATLAN, H., 1991. Tout, Non, Peut-Être ­ Éducation et Verité. Paris: Editions du Seuil.

HORGAN, J., 1996. The End of Science. New York: Broadway Books.

TRAUB, J., 1997. The Unknown and the Unknowable. A Talk with Joseph Traub. July 1997. <http://www.edge.org/3rd_culture/traub/traub>

 

 

MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS. NOVO PARADIGMA ASSISTENCIAL E PEDAGÓGICO. José Paulo Drummond & Eliézer Silva. São Paulo: Editora Atheneu, 1998. 158 pp.

ISBN 85-7379-060-1

 

Embora o texto em pauta esteja direcionado para a assistência e formação médica, a busca de evidências é comum ao conjunto da produção do conhecimento científico. Já se fala de um evidence based movement como essencial ao conjunto das Ciências da Saúde, particularmente no que concerne à tomada de decisões para a solução de problemas, seja na saúde individual, ou coletiva. Em um enfoque mais restrito, interessa-nos lembrar, ainda, que a medicina baseada em evidências utiliza vários princípios e técnicas da epidemiologia, reforçando a importância da difusão e aplicação da0quela na prática dos diferentes profissionais envolvidos com a promoção e proteção à saúde.

O livro está estruturado em seis capítulos, tendo sido escrito por docentes/pesquisadores com diversificada e ampla experiência universitária, nacional e internacional. O capítulo de abertura busca definir a medicina baseada em evidências (MBE) e localizá-la em uma perspectiva paradigmática. Na discussão conceitual, a MBE estaria, filosoficamente, relacionada com a idéia de certeza, mas é com o ponto de vista do julgamento que ela tem maior identidade, conforme destaca o autor: "evidências são dados e informações que comprovam achados e suportam opiniões". O novo paradigma para medicina teria nascido como resposta a três fatores: custos assistenciais elevados, métodos pedagógicos obsoletos, extensão e diversidade da produção científica. Embora reconhecendo a importância da experiência clínica e mesmo da intuição diagnóstica, a nova orientação paradigmática demanda a utilização das pesquisas contemporâneas, com as ferramentas da epidemiologia clínica, bioestatística e informática médica, como indispensáveis ao processo decisório.

O segundo capítulo trata dos conceitos e abordagens metodológicas da bioestatística e da epidemiologia clínica aplicados ao campo específico. A opção de condensar um grande volume de informações conceituais/operacionais (amostra e população; parâmetros e estimadores; testes de significância e intervalo de confiança; probabilidade condicional, medidas de validade de testes diagnósticos; razão de verossimilhança; medidas de redução dos riscos etc.) tornou mais difícil a sua compreensão para os 'não iniciados' na epidemiologia, exigindo certamente um apoio docente para evitar interpretações e práticas equivocadas de um leitor inexperiente. Permite, no entanto, que os colegas da epidemiologia e bioestatística selecionem com maior facilidade o conteúdo mínimo e a focalização necessária para cursos de curta duração, bem como conheçam/explicitem em suas aulas a terminologia específica dessa abordagem da pesquisa biomédica.

Os diferentes meios para obtenção de dados e a interpretação da literatura científica são objetos do terceiro e quarto capítulos. O uso da internet é apresentado de forma extremamente 'amigável', e as diretrizes para uso da informática médica, seja para atualização do conhecimento, ou para tomada de decisão, são explicitadas com uma sólida argumentação. A leitura do capítulo que trata dos critérios de avaliação dessa literatura, para a sua interpretação e atribuição de valores, permite que se identifiquem/priorizem evidências com base em estudos primários (terapia, diagnóstico, risco e prognóstico) ou integradores (artigos de revisão e guias práticos). O quinto capítulo complementa esta seqüência ao formular as aplicações da proposta de uma medicina baseada em evidências, na prática clínica e no ensino, com uma abordagem didático-pedagógica clara e convincente em suas vantagens.

No último capítulo, os autores buscam definir os passos mais adequados ao processo de delineamento de uma investigação clínico-epidemiológica, segundo diferentes categorias como: objetivos do estudo, população-alvo e precisão dos estimadores. Novamente, a abordagem condensada compromete um pouco a compreensão, particularmente ao se colocar em uma mesma tabela desenhos de estudos e técnicas da análise de dados; porém, representa um grande esforço de sistematização.

O livro constitui, portanto, uma iniciativa pioneira no Brasil, com o intuito de difundir a proposta de medicina baseada em evidências, o que já vem acontecendo há algum tempo fora do País. Basta olhar as várias publicações disponíveis na literatura estrangeira e o crescente volume de artigos sobre o tema em revistas de enorme prestígio no meio médico, como o British Medical Journal, o Lancet e o JAMA, para constatar o desenvolvimento da área. Por esse motivo, deve o livro aqui apresentado se constituir em um oportuno convite à leitura, sobretudo para profissionais de saúde que não tenham tido acesso a esta literatura até o momento. Ou ainda, para aqueles com pouca experiência no uso de recursos da internet, pois facilita a identificação de sites e das diversas fontes de informações sobre medicina baseada em evidências, bem como o acesso a eles.

Para finalizar, julgaríamos importante ressaltar que a medicina baseada em evidências não pode ser tomada como panacéia para resolver as incertezas técno-científicas no âmbito da decisão clínica. Se, por um lado, limita o autoritarismo personalizado que tradicionalmente caracteriza o ensino e a prática médica, como bem lembram os autores, por outro, corre-se o risco de se atribuir exclusivamente aos ensaios experimentais randomizados a possibilidade de validar evidências no campo da saúde, no qual a maioria dos estudos são de natureza observacional. Esta advertência não deve ser tomada como uma impossibilidade de se preconizar o uso da MBE em nosso campo de atuação, e, sim, a necessidade de se incrementar este movimento em nossos programas de ensino-pesquisa, a fim de incorporar continuamente, em nossos modelos/práticas assistenciais, as melhores (ainda que incompletas) evidências para a Saúde Pública.

 

Zulmira Maria de Araújo Hartz & Evandro da Silva Freire Coutinho

Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz

 

 

BEYOND ACCEPTABILITY: USERS' PERSPECTIVES ON CONTRACEPTION. T. K. Sundari Ravindran; Jane Cottingham & Marge Berer. London, 1997: Reproductive Health Matters and World Health Organization. 121 pp.

ISBN 0 9531210 0 3

 

Reproductive Health Matters apresenta-se como "uma revista comprometida com a publicação de pesquisas orientadas pela 'perspectiva centrada nas mulheres' (women-centered perspectives*), não só no campo da contracepção mas em todas as áreas relacionadas à saúde e aos direitos reprodutivos". É uma das melhores e mais conhecidas publicações produzidas por e para mulheres. É, digamos claramente, uma revista feminista. Esta co-edição com a Organização Mundial de Saúde (OMS) significa, na minha opinião, uma valorosa conquista e um reconhecimento da importância da abordagem de gênero para as questões e impasses colocados no campo da saúde reprodutiva: este organismo internacional, de indiscutível importância na definição de políticas e estratégias relacionadas à saúde dos povos de todo o planeta, normalmente tão afeito a posições neutras e ortodoxas em campos naturalmente 'minados' pela política, parece que resolveu sair 'de cima do muro'.

A reunião que resultou na presente publicação foi patrocinada e apoiada pela OMS juntamente com outros organismos internacionais, inclusive o Banco Mundial. Por que, pergunto-me, essas tradicionais instituições que, embora preocupadas desde há muito com questões relacionadas a uma possível 'explosão demográfica' ­ como o planejamento familiar, tecnologias contraceptivas e outras ­ aliançam-se agora com grupos oriundos do movimento feminista? As explicações são muitas e complexas, mas alguns pontos são indiscutíveis: o movimento organizado de mulheres conquistou visibilidade e credibilidade, inclusive em fóruns internacionais, como mostrou a Conferência do Cairo e, posteriormente, a de Beijing; o cenário global de saúde das mulheres é preocupante, agravando-se mais recentemente com a expansão alarmante da epidemia de HIV/Aids entre a população feminina; o conceito de gênero, que assume a questão do poder nas relações entre homens e mulheres, vem conquistando legitimidade científica e revelando-se essencial para a compreensão não só das vulnerabilidades às infecções transmitidas sexualmente, como também de outros fenômenos que atingem as mulheres em escala planetária, como a gravidez adolescente, o aborto, a violência sexual e outros tantos.

Assim, premidos pela urgência de respostas e estratégias que controlem e/ou minimizem os danos causados pelas desigualdades entre os gêneros, vemos hoje, sentados à mesma mesa, pesquisadoras e/ou ativistas feministas e autoridades desses organismos, buscando juntos novos conhecimentos (para eles, não para nós!) que lancem luzes sobre os complexos processos sociais, econômicos, sexuais e culturais que influenciam as tomadas de decisões de homens e mulheres no que diz respeito à contracepção e à prevenção das doenças sexualmente transmissíveis. O que fica claro ­ e este é o fio condutor de todos os artigos da revista ­ é que "existem muito mais coisas entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia". Saudamos esse reconhecimento com otimismo e entusiasmo. Não é de hoje que as Ciências Sociais aplicadas à saúde e aquelas(es) que adotam o enfoque de gênero levantam este debate, contrapondo-se a uma visão objetivista, pretensamente neutra, que reduz a subjetividade humana ao comportamento ­ ainda hegemônica, é bom lembrar ­ e que, conseqüentemente, acredita que uma informação (nem sempre) bem dada, um método oferecido (quando o é) e um pouco de estímulo (quando há) possam resolver os dilemas de mulheres e homens relacionados à saúde reprodutiva e sexual. A incorporação do conceito de gênero à área de saúde, sem dúvida, tem sido fundamental para a desnaturalização e desmistificação dessa compreensão reducionista e ineficaz. Muitos indicadores demográficos e de saúde no Brasil são prova cabal do equívoco dessa visão.

Enfim, a publicação em análise, intitulada "Beyond Acceptability: Users' Perspectives on Contraception', só pode ser saudada por nós, que atuamos (e militamos) no campo da saúde e dos direitos reprodutivos, como uma iniciativa importantíssima que poderá abrir novas perspectivas para as políticas e estratégias de saúde que se delineiam para o próximo milênio.

Como o próprio título da publicação explicita, os artigos abordam e analisam questões de saúde reprodutiva a partir da aceitabilidade pelos usuários. Como pontua Cottingham, na apresentação da revista, as pesquisas sobre aceitabilidade no campo da contracepção sofrem, historicamente, de problemas relacionados à clareza conceitual e, até recentemente, de lacunas na compreensão do contexto de vida das mulheres que influenciam suas escolhas sobre métodos contraceptivos. Algumas pesquisadoras feministas, segundo ela, vêm problematizando a maneira como a aceitabilidade tem sido conceitualizada e medida. A crítica mais comum é a não contextualização da vida das mulheres e o impacto que os serviços têm sobre suas escolhas. Outras fazem objeções ao termo 'pesquisas sobre aceitabilidade', em razão de sua afinidade com a linguagem dos programas de controle populacional, que encorajavam táticas para o recrutamento de novos adeptos para o planejamento familiar. Muitas, ainda, centram o debate na questão política mais ampla que questiona se um novo método serve aos interesses estratégicos das mulheres. Mais que se preocupar se um método é aceitável para um grupo particular de mulheres, algumas ativistas estão preocupadas se novos métodos aumentam o controle das mulheres sobre suas vidas sexual e reprodutiva, ou favorece o controle do sistema biomédico sobre elas. Além disso, há a preocupação com o crescente risco das mulheres para as DST/HIV.

Essas e outras ­ explosivas e polêmicas ­ questões são apresentadas e debatidas nos artigos dessa edição. Cottingham assim define o eixo central da publicação: o que faz as pessoas escolherem um método contraceptivo? Pergunta aparentemente simples mas que envolve, como veremos, imensas complexidades.

Todos os artigos analisam e/ou ilustram abordagens que procuram responder às questões sobre a regulação da fertilidade e o contexto social e sexual em que essa se dá, com base na percepção e na vivência de homens e mulheres. Examinam fatores que interferem em por que e como métodos contraceptivos são usados. Consideram os variados, dinâmicos e mutáveis relacionamentos sexuais entre homens e mulheres, tentam compreender como as pessoas podem agir diferentemente com diferentes parceiros e, por fim, como as escolhas das mulheres para se protegerem freqüentemente dependem das atitudes e do apoio (ou não) de seus parceiros. Investigam, ainda, alguns dos preconceitos que as mulheres têm sobre seus corpos e saúde e os valores e medos a eles relacionados. Por fim, revelam que mulheres, numa mesma comunidade, podem gostar ou não dos atributos de um método e optar por ele ou rejeitá-lo, o que explicita a complexidade das questões aí envolvidas.

As pesquisas que originaram muitos dos artigos foram realizadas em diferentes países e continentes e, portanto, permitem-nos uma contextualização das diversidades culturais, econômicas, étnicas e sexuais. Algumas incluíram homens, geralmente os parceiros das mulheres estudadas, o que reflete uma tendência recente de se considerar o envolvimento e a participação masculina na esfera da saúde reprodutiva, o que é muito bem-vindo. Alguns estudos são multicêntricos, envolvendo uma população de estudo bastante significativa.

Sobre novos métodos contraceptivos, destaca-se um trabalho realizado no Chile a respeito da utilização do anel vaginal de progesterona, indicado especialmente para mulheres no pós-parto. Ainda sobre métodos hormonais, um dos artigos faz uma revisão dos estudos sobre a aceitabilidade daqueles mais usados nos programas de planejamento familiar e enumera as restrições e medos mais comuns das mulheres em relação a esses métodos, além de chamar a atenção para as constantes mudanças de suas necessidades em relação à regulação da fertilidade, elucidando suas experiências, preferências e práticas.

O tema da vasectomia foi abordado em um artigo, que analisa, através de estudo multicêntrico, os fatores que influenciam os homens na opção por esse método, além do papel desempenhado por suas parceiras, e aponta para a necessidade e viabilidade de se desenvolverem estratégias educacionais que motivem mais homens a contribuírem para a saúde reprodutiva do casal.

Outro artigo, resultado de uma pesquisa realizada com trabalhadoras sexuais do Zimbabwe, na África, aborda a aceitabilidade do preservativo feminino tanto pelas mulheres, quanto por seus parceiros afetivo-sexuais. Este estudo revela uma importante questão, que perpassa muitos dos outros artigos: a importância e o papel dos serviços de saúde no aconselhamento e no suporte aos usuários para que os obstáculos relacionados às escolhas contraceptivas possam ser superados. Isso, porém, não é tudo: os profissionais de saúde podem e devem aprender com as mulheres sobre suas necessidades, levando em conta que estas mudam ao longo da vida. E, no nível societário, é essencial encorajar a aprovação social para as mudanças desejadas, o que implica trabalhar valores e ideologias quando se almeja a saúde sexual de homens e mulheres.

Por fim, Berer, a editora da revista, discute em seu artigo a fundamental questão da 'dupla proteção', ou seja, o caminho para o sexo seguro para mulheres e seus parceiros que estão em risco para as DST, incluindo o HIV, e a gravidez não desejada. Os preservativos masculino e feminino promovem a dupla proteção, mas a aceitabilidade desses métodos leva a usos inconsistentes e irregulares. Essa autora conclui sobre a importância de se desenvolverem novos métodos que superem esses obstáculos e ofereçam a dupla proteção. Afinal, não podemos mais manter a contracepção separada da prevenção das DST, o que limita, segundo ela, os esforços para integrar os conceitos e comportamentos relacionados à dupla proteção na cultura sexual.

Não podemos deixar de lembrar que estamos, ainda e mais uma vez, no terreno político, pois investimentos em novos métodos e pesquisas dependem, acima de tudo, de decisão política. E essa decisão não 'cai do céu', como revela a epidemia de Aids: por que, afinal, as pesquisas relacionadas às especificidades da ação do HIV no corpo feminino ou sobre os efeitos das drogas terapêuticas nas mulheres, ou mesmo o investimento em programas preventivos voltados para as mulheres mais vulneráveis, são ainda tão escassos? Por que a sobrevida das mulheres contaminadas é tão menor que a dos homens? As desigualdades e iniqüidades sociais e de gênero persistem, especialmente nos países do Terceiro Mundo e nas populações economicamente marginalizadas, tanto de países pobres, quanto de ricos. E a luta continua.

Assim, pela diversidade dos temas tratados, pela abrangência das pesquisas que originaram os artigos dessa publicação, por sua abordagem conceitual e metodológica e pela importância dos problemas diagnosticados e das propostas apontadas, a leitura desse número de Reproductive Health Matters é recomendável para todos os que estão comprometidos com transformações no campo da saúde coletiva e, em particular, da saúde reprodutiva. A título de conclusão, lembro que nós, pesquisadores, profissionais de saúde e/ou militantes de movimentos de saúde, temos muito a caminhar nesse campo. E, sobretudo, temos muito a aprender com os assim chamados usuários, mulheres e homens que são os sujeitos concretos que escolhem, usam e abandonam métodos contraceptivos e de proteção contra as DST ­ os que têm acesso a eles, é bom lembrar ­, pois estes, quando ouvidos, revelam a complexidade que essas questões assumem na vida das pessoas e das sociedades. Porém, não basta a intenção de ouvir, é necessário, como mostram os artigos da revista, saber perguntar e, principalmente, saber interpretar o que é falado. Daí a importância do conceito de gênero para a compreensão da vida sexual e reprodutiva de mulheres e homens, contextualizado em suas diversidades econômicas, sociais e culturais. Afinal, esse conceito nasceu de um movimento social, o movimento das mulheres organizadas na luta por seus direitos, entre eles os Direitos Reprodutivos. O recente reconhecimento da importância da análise pela perspectiva de gênero é resultante de um longo, aguerrido, e muitas vezes doloroso, processo de luta e participação das mulheres nas muitas instâncias da vida social e política, tanto no espaço público, quanto no privado. A constatação, por parte das instâncias institucionais e políticas, como a OMS, de que uma visão estreita, biologizante, comportamentalista e supostamente 'neutra' não tem trazido os resultados esperados e necessários no explosivo campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos é conquista importante dessa luta.

 

Regina Helena Simões Barbosa

Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

A ERA DO SANEAMENTO. AS BASES DA POLÍTICA DE SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL. Gilberto Hochman. São Paulo: Editora Hucitec/Anpocs, 1998. 260 pp.

ISBN 85.271.450-4

 

Na véspera do Natal de 1919 ­ em meio ao terror motivado pelas mortes de milhares de vítimas da gripe espanhola, terror este que chegou ao ponto de levar a imprensa a sugerir o adiamento (jamais o cancelamento!) do Carnaval de 1920 ­, o Plenário da Câmara de Deputados aprovou, por 112 votos a favor e nenhum contra, a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública. Depois de rápida votação no Senado, a redação final do projeto foi aprovada no penúltimo dia daquele mesmo ano. Criou-se, assim, um órgão do governo federal, que expandiu em 1924, e que estaria coordenando e executando serviços de saneamento rural, de profilaxia da lepra, da sífilis e de doenças venéreas em 17 das vinte unidades da federação, além do Distrito Federal e do Acre.

Em A Era do Saneamento, Gilberto Hochman nos mostra que a criação desse órgão, da legislação que amparou sua atuação e a rápida expansão de seus serviços são um marco no processo de formação do Estado brasileiro, "tal como este viria a se constituir no pós-30". Em outras palavras, entre as duas primeiras décadas deste século e o Estado inaugurado pela Revolução de 30, haveria mais elementos de continuidade do que aqueles já demonstrados pela literatura com relação à política econômica. Isto é, também no que diz respeito à prestação direta de serviços na área de saúde pública, o processo de expansão das funções do Estado ­ típico do século XX ­ não foi inaugurado no Brasil em 1930: deu-se como resultado de um intenso movimento de reforma entre os anos 1910-1930.

E o que é particularmente interessante no cuidadoso e competente trabalho de reconstituição e análise históricas empreendido por Gilberto Hochman é que ele nos demonstra como a Era do Saneamento é uma etapa importante da formação do Estado brasileiro em três dimensões cruciais: 1) a expansão do poder coercitivo do Estado sobre a sociedade, passando a interferir na esfera da conduta privada, por meio da imposição de regras de comportamento; 2) a expansão das funções do governo federal vis-a-vis os governos estaduais, por meio da penetração territorial da União e 3) a expansão das funções do Poder Executivo vis-a-vis o Poder Legislativo, por meio da ampliação das atividades e da burocracia do primeiro.

Entre 1902 e 1909, sob a liderança de Oswaldo Cruz no comando da Diretoria Geral de Saúde Pública, produziram-se no País uma legislação e arranjos institucionais que fundaram a autoridade sanitária, consolidando a dimensão coercitiva do poder estatal (p. 95-110). Mas, até 1910, a expansão do poder coercitivo do Estado permaneceu "restrita à base territorial sobre a qual o poder central era capaz de legislar e agir, sem negociar com os poderes locais" (p. 102), isto é, no Distrito Federal e no território do Acre. A partir dos anos 10, a questão federativa passou a ser o elemento central da disputa política em torno de um projeto de reforma sanitária, sendo esta a dimensão de análise sobre a qual Gilberto Hochman se detém mais detalhada e detidamente. Finalmente, a expansão do Poder Executivo, dimensão apenas mencionada no trabalho, teria sido um resultado da implementação das decisões tomadas na véspera do Revéillon da década de 20.

Assim, se "a Constituição de 1891 manteve-se intacta até a emenda constitucional de 1926, na prática estava sendo reescrita ao longo da Primeira República, (...)" (p. 144). E, uma vez decididos e implementados novos arranjos institucionais, "estavam lançadas as bases de uma concentração e centralização do poder e de um ativismo estatal não previstos pelas elites no momento do cálculo e da decisão de transferir atividades para o poder central" (p. 242).

Porém, como foi possível que isso ocorresse na ordem oligárquica da República Velha? Como foi possível aprovar uma legislação e implementar uma política que contrariava os princípios federativos da Constituição de 1891? Como foi possível aprová-la, por esmagadora maioria, em uma arena decisória dominada por representantes das oligarquias políticas estaduais, ciosas de sua autonomia regional e privada? Por que razão estes mesmos representantes teriam autorizado a criação de órgãos e legislação que implicariam a ampliação da autoridade do Poder Executivo da União? Como explicar, portanto, que a disputa política no interior das instituições de uma ordem política pautada pelos princípios do liberalismo (à moda dos coronéis) e de um federalismo autárquico tenham dado origem a novas instituições que viabilizariam a estatização e a nacionalização da política de saúde pública?

Gilberto Hochman nos demonstra que este fenômeno ­ apenas aparentemente contraditório ­ foi resultado, de um lado, da percepção por parte das elites da interdependência crescente da vida social expressa na transmissibilidade das doenças e, de outro lado, da convergência em torno de um projeto de reforma dos serviços de saúde pública, obtida ao longo da primeira década, entre as idéias de uma elite setorial e os interesses das elites políticas regionais. Ou, como sintetiza Gilberto Hochman, a possibilidade de aprovar e implementar uma política pública e nacional de saúde no Brasil da Primeira República foi resultado do encontro da consciência com o interesse (Capítulo 4).

Com efeito, o autor demonstra como a emergência da "consciência pública" sobre a responsabilidade governamental em saúde foi resultado do sucesso do movimento sanitarista do início do século em articular o "diagnóstico do país doente" à ausência do poder público no combate às "doenças que pegam" ­, particularmente, a crônica e generalizada presença de epidemias e endemias. Tais males públicos, caracterizados pela não-exclusão, atingiriam igualmente ricos e pobres, por causa da generalização da interdependência social; além disso, teriam conseqüências sobre a capacidade produtiva dos trabalhadores e sobre a inserção do País no comércio internacional. Assim, "o resultado mais geral da sociabilidade gerada pelo micróbio da doença seria um sentimento de comunidade nacional, associado a demandas pelo aumento das responsabilidades do Poder Público"(p. 59).

Todavia, para além do aumento do poder coercitivo do Estado que a politização do fenômeno da "doença que pega" implicava, nas propostas do movimento sanitarista dos anos 10, a "interdependência sanitária demandaria a constituição de uma autoridade capaz de implementar políticas em todo o país, desconhecendo as fronteiras estaduais, sobre toda a população, restringindo quando necessário a liberdade individual e o direito de propriedade" (p. 82). Para este movimento, o fato de que a doença não respeita fronteiras demandaria a criação de um Ministério de Saúde Pública, que centralizaria e unificaria as ações do setor. Portanto, o prognóstico apresentado por aquela elite setorial desafiava a ordem política e constitucional da República Velha.

Se em 1910, a autoridade sanitária brasileira, ainda que restrita ao Distrito Federal, já havia aumentado consideravelmente seu poder coercitivo, isto é, já havia criado regulamentos e instituições para fazer cumprir as leis que restringiriam o avanço da transmissão de doenças, a persistência de endemias e epidemias no território nacional revelava que o arranjo institucional que permitia a ação voluntária dos governos locais era claramente insuficiente. E entre 1916 e 1920, a elite intelectual interessada na reforma da saúde pública no Brasil conseguiu inscrever a questão da penetração territorial do Estado na agenda de reformas do setor saúde pública. Mas, entre a aceitação da necessidade de uma reforma na organização da prestação dos serviços e a definição de seu conteúdo ­ isto é, do novo arranjo institucional da política de saúde pública ­, teria lugar um intenso processo de debates. Entretanto, era no âmbito do Legislativo que a decisão deveria ser tomada, visto que este era simultaneamente o lócus das decisões acerca das atribuições da União e palco privilegiado de negociação dos interesses federativos.

Para explicar o insucesso da criação do Ministério da Saúde Pública, como propugnava o movimento sanitarista, paralelamente à aprovação pelo Legislativo da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública e a aceitação pelos estados da transferência de funções de execução de serviços sanitários para o governo federal, Gilberto Hochman apóia-se em um arcabouço conceitual que privilegia o contexto institucional em que estas decisões são tomadas e o cálculo das unidades decisórias relevantes com vistas à maximização de seus interesses. Muito embora o autor considere que os interesses econômicos das elites exportadoras, a experiência da tragédia da morte em massa das vítimas de epidemias e endemias crônicas, assim como o fato de que um representante das oligarquias periféricas estivesse no comando do Executivo Federal em 1919, sejam elementos importantes para a compreensão da aprovação de uma reforma sanitária, estes não seriam suficientes para compreender por que razão, daquela conjuntura particular, emergiu um desenho de política pública que daria origem a políticas centralizadas no governo federal. Na verdade, a "coalizão política que viabilizou a transferência de responsabilidades para o poder central resultou de um cálculo em torno de custos e benefícios da estatização e das regras que presidiriam essa transferência" (p. 239). Em virtude da ausência de um movimento de base popular, esta coalizão era composta basicamente pelas elites políticas e seus representantes e por uma elite setorial.

Se a criação de um Ministério de Saúde Pública encontrou intransponível resistência nas bancadas de representantes das oligarquias estaduais, uma solução de compromisso permitiria a criação de um Departamento Nacional de Saúde Pública que 'auxiliaria' os estados mediante convênios. Nestes convênios, o governo federal aportava recursos humanos, instalação de capacidade técnica, conhecimento científico, poder de polícia e ­ na prática ­ grande parte do financiamento das ações em troca da subordinação dos governos locais à autoridade da burocracia federal.

Esta fórmula preservaria a autonomia política dos estados, pois garantia a prerrogativa formal da adesão voluntária dos governos locais à política federal. Ela permitiu simultaneamente que os estados mais pobres franqueassem suas fronteiras para que a União ali atuasse com total independência em relação aos organismos locais, e que o Estado de São Paulo se mantivesse autônomo em relação aos serviços federais. Para os estados que se avaliavam como frágeis diante das custosas tarefas sanitárias impostas pelas dimensões da "doença que pega" ­ na verdade, a esmagadora maioria ­, os custos da presença do governo federal seriam inferiores aos benefícios derivados de sua atuação. Estes passariam a atuar segundo a "lógica de obter o máximo do poder central" (p. 193). Para o Estado de São Paulo, dotado de uma capacidade técnica que precedeu historicamente aquela criada pela União, os custos de aceitar a presença federal eram percebidos como superiores àqueles derivados de assumir de forma autônoma a prestação de serviços. No entanto, a nacionalização dos serviços lhe permitiria minimizar os custos derivados do fato de que a doença não respeita fronteiras. A fórmula 'convênios' permitia que São Paulo cuidasse de si e o governo federal, dos demais. O "resultado foi o aumento da presença do poder central nos estados, enquanto São Paulo implementava sua própria reforma sanitária, a partir de 1917, preservando-se da intervenção sanitária da União" (p. 211). Simultaneamente, o "Poder Público se constituía ampliando seu território, suas responsabilidades e sua capacidade de implementar políticas sanitárias" (p.188) e o "poder central estabeleceu uma enorme capacidade de definir e executar políticas de largo alcance, a qual, pelas suas características institucionais, não teria concorrentes" (p. 205).

Por sua excepcional qualidade, A Era do Saneamento é uma leitura obrigatória para todos aqueles que se preocupam com os dilemas contemporâneos das políticas sociais no Estado Federativo Brasileiro.

 

Marta T. S. Arretche

Universidade Estadual Paulista ­ Campus Araraquara

* a 'perspectiva centrada na mulher' (women-centered perspective) é, na definição das editoras da revista, "aquela que olha para as experiências, valores, informações e questões pelo ponto de vista das mulheres cujas vidas são afetadas. Tal perspectiva permite identificar e compreender as necessidades de saúde reprodutiva das mulheres e, assim, avaliar e melhorar as políticas e práticas existentes", o que é " crucial para se conquistar a saúde e os direitos reprodutivos para as mulheres".

 

 

MEDIAR, MEDICAR, REMEDIAR ­ ASPECTOS DA TERAPÊUTICA NA MEDICINA OCIDENTAL. Jane Dutra Sayad. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1998, 196 pp.

ISBN 85-85881-441-0

 

Em tempos como os vividos hoje, em que mais que nunca a ideologia do consumo tenta convencer todos das benesses da evolução tecnocientífica, de cujo acesso depende a qualidade de vida que se pode desfrutar e à qual, no plano das ciências biomédicas, um destaque crescente é dado pela mídia ­ e, de fato, assumido na prática pelo cotidiano de vida das pessoas ­ aos sucessos da indústria farmacêutica, atuais ou prestes a ocorrer, certamente a publicação do livro que ora aqui se comenta representa um subsídio valioso à reflexão crítica que se impõe. Nessa publicação, há grandes temas e questões tratados, para os quais, pelo menos para os que nos pareceram mais importantes, conviria chamar a atenção: A Medicina enquanto mescla de arte e de ciência; as bases da terapêutica como sendo, em momentos distintos, devedoras do Racionalismo e/ou do Empirismo; em outras palavras, em relação a este último, pode o leitor acompanhar que resposta à pergunta-chave foi sendo dada em relação a quanto e até onde a terapêutica foi, no decorrer da história, sendo visualizada como atividade pré-científica, com fundamentos essencialmente empíricos. Mesmo que aceitando o progresso da intromissão de parâmetros tidos como científicos na pesquisa e na prática farmacoterapêutica atual, quanto tem ainda essa prática a dever a elementos, em sua essência, empíricos?

Nos limites da síntese que nos propusemos efetuar aqui, caberia destacar a propriedade com que a autora traçou a trajetória histórica da terapêutica partindo da mitologia grega, nela enfatizando os papéis, de alguma forma antitéticos, representados por Asclepius, o deus da medicina e suas duas filhas, Higea e Panacea, realçando mais adiante a terapêutica galênica, influente desde os seus albores no século I de nossa era até o século XIX. Chama-se a atenção, em seguida, para a contribuição do Iluminismo, que solapa o que restava da concepção mágico-esotérica da doença e do seu tratamento. Mais adiante, aborda a essência do pensamento sobre terapêutica de correntes nascidas na França, na segunda metade do século passado, que são, igualmente, visualizadas enquanto repercutem no Brasil, tal como se reflete no que se publica no País, tendo sido realizada exaustiva busca nas revistas médicas de maior expressão entre nós à época, especialmente os Anais da Academia Imperial de Medicina, que, depois da Proclamação da República, passou a se chamar Academia Nacional de Medicina. Mais que tudo, com base nessa revisão bibliográfica, pretendeu-se traçar a trajetória evolutiva, particularmente a partir do século XVIII, da busca, no Brasil, de uma terapêutica fundamentada na ciência. Acompanha-se, assim, tanto o embate das correntes prevalecentes e, de algum modo, fundadas em pressupostos que guardavam forte oposição entre si, representadas pelo vitalismo e pelo mecanicismo, quanto, mais adiante, a forma como foi recebida ou recusada a teoria microbiana das doenças, com toda a marcante influência no seio da teoria e prática médicas européia e fora da Europa, a partir das duas últimas décadas do século passado.

Sem sombra de dúvida, estamos diante de obra cuja leitura enriquece ­ além de ser extremamente prezerosa de se fazer ­ sobretudo pelo caráter exaustivo da revisão histórico-evolutiva realizada pela autora, permitindo ao leitor situar-se nas grandes correntes de pensamento que estiveram subjacentes à terapêutica ocidental, incluindo suas repercussões na medicina brasileira a partir de meados do século passado.

Particularmente estimulantes são as considerações presentes na terceira e última parte do livro contribuindo sobremaneira para que o leitor aprofunde uma visão crítica do processo saúde/doença, de seus determinantes e da intervenção sobre o mesmo.

Tal como enfatiza mui apropriadamente a autora, persistem, hoje, problemas básicos dos terapeutas do século XIX, relacionados ao quanto de 'arte' e de 'ciência' existiria na sua prática. Além da questão envolvida com o grau de intromissão dos componentes 'arte' e 'ciência' para além da terapêutica, mas na própria Medicina como um todo, cremos serem outros temas fundamentais, os quais poderiam ser identificados como subjacentes às motivações da autora quando da seleção do seu objeto de estudo (originalmente pensado para sua tese doutoral, em boa hora, agora, publicada) e passíveis de ser assim explicitados: Em que dimensão a terapêutica teria bases explicativas e/ou práticas no racionalismo (peculiar sistematização teórica para explicar a ação terapêutica) e no empirismo (ação fundada na experiência dos resultados)? Qual o entendimento possível da terapêutica como ciência aplicada? Qual o tipo de envolvimento ou contribuição das correntes organicistas ou vitalistas na teoria e prática terapêuticas?

Considerando a hipervalorização atribuída em nossa sociedade ao consumo e à identificação do mesmo com o bem-estar e a felicidade, com o conseqüente caráter de responsável pela vivência de melhor nível de saúde outorgado ao medicamento, constituir-se-ia talvez uma lacuna o não-aprofundamento maior na questão da medicalização e do quanto esse fenômeno ­ e o uso que, ao fim e ao cabo, é dado ao medicamento ­ tem relação com práticas condenáveis da indústria farmacêutica. Contudo, por mais que sejam importantes e passíveis de contextualização nas considerações do livro ora comentado, esses aspectos mui provavelmente não se inseriam nos propósitos maiores do estudo, ao final tão competentemente realizado, nas dimensões e alcances pensados pela autora.

 

José Augusto C. Barros

Departamento de Medicina Social Universidade Federal de Pernambuco

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br