DEBATE DEBATE

 

 

 

Maurício Lima Barreto

Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia.


Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

Debate on the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

 

 

O espaço e a epidemiologia: entre o conceitual e o pragmático

No movimento de construção da epidemiologia social latino-americana, no decorrer da década de 70, necessitava-se avidamente de novos conceitos que o liberasse das amarras impostas pelo modelo epidemiológico, surgido no pós-guerra e que se cristalizava a partir do livro Principles and Methods in Epidemiology de MacMahon, Pugh and Ipsen (MacMahon et al., 1960), publicado no início da década anterior. Nesse contexto, surgem, entre outros, debates em torno das desigualdades sociais intermediados pelo conceito de classe social ou sobre a utilização do conceito de espaço na busca de explicação para as conformações geográficas definidas, principalmente, pelas endemias.

Uma revisão da geografia crítica da saúde nos leva a alguns autores fundamentais, como Pavlovsky, Maximilian Sorre e Milton Santos. Os trabalhos de Pavlovsky, parasitologista de grande importância no contexto da antiga União Soviética a partir da década de 30, eram pouco conhecido fora da cortina de ferro. Pesquisadores ocidentais de esquerda, após visitas àquele país, passavam a divulgar as idéias pavlovskianas. No Brasil, o grande divulgador foi o iminente e militante parasitologista Samuel Pessoa. Embora a contribuição de Pavlovsky tenha sido transcendental para o entendimento de muitas idéias da dinâmica dos agentes infecciosos, deve-se chamar a atenção para o fato de que o núcleo de suas idéias, que emergiram de um intenso programa de pesquisa empírica, centrava-se nos agentes infecciosos que circulavam como zoonoses em áreas previamente inabitadas. Historicamente, esse era o momento da intensa expansão das fronteiras agrícolas e industriais da extensa União Soviética.

Na França, no mesmo período e de forma independente, um geógrafo, Maxmilian Sorre, com uma vasta obra e contribuições nas mais diversas áreas da geografia, preocupa-se também com a questão das doenças infecciosas e busca entender suas determinações no campo de confluência da geografia, das ciências sociais e das ciências biológicas, desenvolvendo o conceito de complexo patogênico. Mais tarde, outro autor busca ampliar esse conceito para os demais problemas de saúde, denominando-o de complexo sócio-patogênico. Porém, na perspectiva da epidemiologia social, é a divulgação dos trabalhos de Milton Santos, principalmente aqueles produzidos a partir da segunda metade da década de 70, que tem um impacto significante, pois trazia no conceito de espaço a possibilidade de articular os complexos elementos da dinâmica das sociedades, bem como da sua historicidade. Uma questão importante é nos perguntar porque um conceito tão poderoso, como bem coloca Czeresnia & Ribeiro, teve a sua aplicação geograficamente restrita à América Latina e tematicamente restrita a questões relacionadas, quase exclusivamente, às endemias. Sem ter tal pretensão, acredito que a busca de resposta para tal indagação nos ajuda a entender um pouco mais dos percalços relativos à evolução da epidemiologia em nosso continente.

A reafirmação de uma geografia nova em contraposição à geografia tradicional foi acompanhada de profundos debates, que perpassaram por profundas redefinições das bases teóricas desta disciplina. Embora se deva enfatizar, como o fazem autores relacionados com a geografia nova, que as tendências hegemônicas no interior da geografia continuam a dirigir-se para outras direções, preocupadas com as questões locacionais e com o desenvolvimento dos métodos quantitativo, deslocadas dos fundamentos teóricos postos em conceitos como o de espaço. Os defensores da geografia nova fizeram um trabalho radical de crítica ao modelo hegemônico. Nesse percurso e tendo em vista o limite aqui definido, eu gostaria de reportar-me a dois trabalhos fundamentais para entender o processo de gestação da geografia nova: o primeiro, Explanation in Geography, por David Harvey (Harvey, 1969), na Inglaterra; e o outro, La Production de l'Espace, por Henry Lefebvre (Lefebvre, 1991), na França. Ambos os autores, enquanto intelectuais de sólida formação marxista, foram ambientados em diferentes tradições epistemológicas e científicas. Harvey, geógrafo, herdeiro da tradição indutivista anglo-saxônica, centra-se na idéia de que é necessário trabalhar com os fatos, processá-los, analisá-los. Vai além, porém, ao conceber que estes só passarão a ter pleno sentido quando alicerçados por sólidas teorias. O autor, embora reconheça a importância da rota teorético-dedutiva, enfatiza que teorias somente alcançam status científico quando podem gerar hipóteses passíveis de serem testadas, ou seja, que sigam as etapas do método científico. Acontecem casos em que a teoria antecede aos métodos que irá testá-lo, porém existem também teorias que nunca disporão de tais métodos. Portanto, nunca serão científicas. Nessa linha, em um trabalho seguinte, no qual busca construir uma teoria sobre a cidade, Harvey (1973) pontua que "a ponte entre as imaginações sociológica e geográfica somente pode ser construída se possuirmos instrumentos adequados"(Harvey, 1973:37). Outros aspectos importantes considerados pelo autor e que podem servir de esquema para análise de outras disciplinas são: a) a relação entre os argumentos metodológicos da geografia comparados com os do conhecimento, em geral; b) o relacionamento entre as afirmações feitas pelos metodologistas da geografia e a prática dos geógrafos, como revelado pelo seu trabalho empírico; c) o relacionamento entre as formas explanatórias aceitas pelos geógrafos e as formas explanatórias aceitas pelos praticantes de outras disciplinas.

O ambicioso programa proposto por Lefebvre (l991), um filósofo, tinha por objetivo construir ou descobrir uma unidade teórica entre campos que são apreendidos separadamente, quais sejam: o físico, o mental e o social. Adverte que, na busca dessa teoria unitária, não se poderia descartar os inevitáveis conflitos dentro do conhecimento. Como conseqüência, controvérsias e polêmicas seriam inevitáveis. Questiona a razão pela qual os esforços de construção de uma teoria unificada de espaço, anunciados em épocas passadas, haviam sido abandonados. O seu projeto emerge do profundo diálogo e reflexões em torno de Hegel, Marx, Nietzsche, Freud, entre outros, da sua aproximação com os movimentos artísticos e da sua militância política e, ao final, deixa claro que "este livro foi informado desde o seu início até o fim por um projeto...de uma sociedade diferente, um diferente modo de produção, aonde a prática social seria governado por diferentes determinações conceituais" (Lefebvre, 1991:419).

Nos trabalhos de Milton Santos (Santos, 1980), que, além de conter contribuições originais para a constituição da geografia nova, será o difusor dessas idéias em nosso meio, sistematiza-se o conceito de espaço que será acolhido por alguns epidemiologistas que entendiam que este se ajustava bem ao projeto de uma epidemiologia social. Alguns poucos trabalhos epidemiológicos tem sido produzidos utilizando-se desse referencial. É importante chamar a atenção para o fato de que, na introdução do livro que inaugura esta fase (Santos, 1980), o autor expressa que ali iniciava o seu "projeto ambicioso", consagrado ao tema do "espaço humano", o qual ele propunha completar em etapas, sem desconhecer os riscos que se colocavam para o cumprimento da tarefa.

Parece-me que, apesar do vigor do debate intelectual dos programas de trabalho filosóficos e científicos de onde paulatinamente emerge o conceito unificado de espaço, o qual permitirá pensar em uma nova geografia, esta não consegue firmar-se como hegemônica, porém deixa marcas na organização disciplinar da geografia. O deslocamento dessa experiência para a epidemiologia nos mostra que ainda existe um longo caminho a ser percorrido, bastando observarmos como os debates epistemológicos e metodológicos, no seu interior, ainda são incipientes.

Parafraseando Harvey (1973), a ponte entre as imaginações epidemiológica e geográfica somente pode ser construída se possuirmos os instrumentos adequados, veremos que, queiramos ou não, em verdade, existem duas pontes. Por uma, circula o conceito de espaço (derivado da geografia nova), o qual, apesar da sua importância, como bem pontuado no artigo em debate, tem tido, até o momento, uso limitado no campo da epidemiologia. Na outra, com tráfego intenso, vemos o florescimento do uso de técnicas geocartográficas e geoestatísticas em torno dos denominados sistemas de informações geográficos - SIGs (derivados da geografia tradicional). Várias questões podem emergir desta constatação (inclusive quanto à sua veracidade), porém, para os praticantes da epidemiologia, não tenho dúvida de que a questão mais imediata na hora da travessia é: tenho de optar por uma das duas ou posso circular livremente entre elas?

 

HARVEY, D., 1969. Explanation in Geography. London: Edward Arnold.

HARVEY, D., 1973. Social Justice and the City. London: Edward Arnold.

LEFEBVRE, H., 1991. The Production of Space. Oxford: Blackwell.

SANTOS, M., 1980. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Editora Hucitec.

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