DEBATE DEBATE

 

 

 

Dina Czeresnia
Adriana Maria Ribeiro  


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Em primeiro lugar, desejo agradecer aos editores do Cadernos de Saúde Pública, por terem propiciado a oportunidade deste debate, e aos colegas que participaram enriquecendo a discussão. É um privilégio poder discutir este artigo com um grupo de especialistas que tanto já contribuiu com estudos a respeito deste tema. Como observou Christovam Barcellos, uma série de trabalhos centrados na abordagem espacial dos problemas de saúde foi publicada nos Cadernos de Saúde Pública nos últimos anos, e o debate neste momento é uma forma de estimular o diálogo entre diferentes autores.

O artigo se propôs a realizar uma interpretação sobre a utilização do conceito de espaço em epidemiologia, fazendo uma revisão dos principais autores cujo pensamento orientou os estudos sobre o tema na América Latina. Ao delimitar-se a análise em Pavlovsky, Max Sorre, Samuel Pessoa e Milton Santos, assumiu-se um recorte que, sem dúvida, implicou reduções. Essa escolha considerou que eles foram os que tiveram maior influência no desenvolvimento das investigações sobre saúde e espaço, mas não teve a pretensão de negar ou muito menos desqualificar a importância de outros, especialmente alguém do porte de Josué de Castro, lembrado por Maria de Fátima Militão de Albuquerque.

O subtítulo do artigo esclarece que se trata de uma interpretação, isto é, o texto não pretende falar em nome da verdade. Ao contrário, é explicitamente um ponto de vista sobre a questão, e isso justifica mais ainda a pertinência e oportunidade do debate.

O argumento central do texto é o de que a teoria da doença orienta epistemologicamente a concepção do espaço em epidemiologia. O conceito de transmissão e a idéia de circulação de agentes de doença no espaço foram fundamentais para essa construção. O conceito de espaço foi utilizado principalmente no estudo de doenças transmissíveis, mais especificamente as doenças endêmicas transmitidas por vetores. O modo de transmissão dessas doenças permite que se alcance mais materialidade nas explicações das relações entre elementos do corpo e do espaço.

Rita Barata interroga que episteme constrói a teoria da doença e se essa episteme não se define inicialmente por uma dada concepção do espaço. Será que há uma anterioridade do conceito de espaço em relação ao de corpo? Ou seja, é o conceito espaço que determina o de corpo ou é o de corpo que determina o de espaço? O artigo pauta-se na idéia de que a concepção de espaço está vinculada à de corpo. O processo de fragmentação do conhecimento foi o de fragmentação do espaço, do corpo e de seu movimento (o tempo). Diferentes sentidos são dados ao corpo, ao tempo e ao espaço, conforme a perspectiva de quem o observa.

A medicina configurou-se mediante uma compreensão dessa relação, expressa nas teorias de doença. A epidemiologia, como uma disciplina articulada à medicina e ao conceito moderno de doença, estrutura-se com base na idéia do corpo orgânico. A relação entre corpo e espaço reduziu-se aos elementos do espaço capazes de se integrarem aos elementos fisico-químicos mediante os quais o corpo é apreendido. As inúmeras tentativas de ampliar as concepções de espaço e de tempo no interior da disciplina esbarraram nos limites impostos por essa construção.

Localizar esse limite esclarece a natureza dos desafios que se apresentam. Um dos principais é lidar com o homem em sua integridade. A visão dual do homem, que o divide em corpo e mente, está na origem desta questão. O problema que restringiu historicamente a abordagem da epidemiologia não diz respeito apenas à redução da concepção do espaço, ou do tempo, mas também à concepção do homem e do seu corpo. Não é à toa que no Congresso de Saúde Coletiva do ano 2000 estará em foco o tema do sujeito.

O sujeito não foi devidamente considerado na epidemiologia, que se constituiu considerando o homem um organismo, articulando-se a uma clínica configurada privilegiadamente com base na microbiologia e na imunologia. A emergência do conceito de risco aprofundou o processo de diluição das relações entre o homem e as suas circunstâncias. A medida da probabilidade da ocorrência entre exposição e evento não integra uma explicação acerca do que ocorre na relação entre corpo e meio.

"Transmissão" ainda preserva um elo entre os dois, mesmo reduzindo esse elo aos elementos do espaço capazes de incorporarem-se à apreensão fisiopatológica do corpo. Sem dúvida, o conceito de risco modificou a relação da epidemiologia contemporânea com a teoria das doenças, como aponta José Ricardo Ayres. Pessoas, tempos e espaços tornam-se ainda mais fragmentados e desconectados. O deslocamento da epidemiologia no sentido de privilegiar as análises de risco é um dos principais condicionantes do uso restrito e da incipiente discussão teórica acerca da categoria espaço, apesar de esta ser tão básica na constituição da disciplina, como destacou Maurício Barreto.

A perspectiva de ampliar o uso do conceito de espaço vincula-se à de construir formas de trabalhar os problemas epidemiológicos com base em abordagens que transitem entre teorias e métodos elaborados por distintas disciplinas conforme ressaltou Eduardo M. Freese de Carvalho. É através dessa abertura que se pode resgatar também o sujeito. Mas a possibilidade de integrar sujeito (pessoa), tempo e espaço, na compreensão dos problemas de saúde e doença das populações ainda esbarra nos limites da(s) teoria(s) da doença.

As importantes transformações, tanto nos problemas sanitários como também no discurso científico contemporâneo, têm aberto novas questões, demandando novas alternativas para pensar a relação entre espaço e fenômenos de saúde. Estas não excluem a pertinência dos modelos de análise de risco. Maria de Fátima Militão de Albuquerque comenta, por exemplo, a importância dos estudos ecológicos, que permitem relacionar eventos de saúde a aspectos específicos da organização do espaço urbano, como o estudo dos efeitos da aplicação de leis que regulam o trânsito sobre a mortalidade por acidentes.

A questão é considerar devidamente os limites do método epidemiológico e não reificar as suas possibilidades, incrementadas por meio de recursos de programas computacionais cada vez mais poderosos. Isso diz respeito aos modelos de análise de risco e também à análise espacial e é um dos pontos mais ressaltados nas intervenções deste debate. As técnicas de geoprocessamento têm viabilizado o estudo de espaços crescentemente particularizados. A fragmentação dos lugares, as inúmeras alternativas de utilização de bancos de dados e de apresentação de mapas, tabelas e gráficos, são também evidência da relatividade das verdades que se enunciam através deles.

Se, por um lado, não há como negar a potencialidade desses recursos, por outro lado, estes devem ser utilizados ancorados em uma sólida base conceitual devidamente explicitada. Conceitos e métodos são sempre redutores, e é importante ter clareza dos limites do conhecimento construído. O melhor método é aquele mais adequado às perguntas que se quer responder.

Mauricio Barreto finaliza sua intervenção com essa questão apresentada também por Christovam Barcelos e Eduardo Freese. Como conciliar a necessidade de maior desenvolvimento teórico do conceito de espaço e seu uso na epidemiologia com o intenso aumento dos recursos técnicos em geoprocessamento? Penso que se deve buscar transitar entre a reflexão teórica e o desenvolvimento de técnicas, e, além disso, buscar se integrar ao máximo a outras áreas de conhecimento. Esse trânsito não é tarefa de um pesquisador isolado, e a dificuldade em realizá-lo diz respeito, principalmente, a disputas de competência. Não fosse a importante presença dessas disputas e a tendência hegemônica de se demarcar a epidemiologia como uma disciplina estritamente técnica, acredito que a oposição entre teoria e método se revelaria uma falsa questão.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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