ARTIGO ARTICLE

 

 

João Carlos Pinto Dias1


Vigilância epidemiológica em doença de Chagas

Epidemiological surveillance of Chagas disease

 

1 Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz. C.P. 1743, Belo Horizonte, MG 30190-002, Brasil. jcpdias@cpqrr.fiocruz.br   Abstract Chagas disease still constitutes an important medical problem in affected countries. In some, the extent of the disease is still unknown and control programs have not been implemented. In others the disease has been reduced due to regular control programs and other economic and social factors. Epidemiological surveillance with community participation to guard against disease transmission is now the basic challenge. Applied research and in-depth reformulation of health systems are required to establish efficient and sustainable Chagas disease surveillance programs, considering low density of peridomiciliary vectors as the most relevant factor. In addition, a large population of already infected, poor individuals require specific medical attention and social security. As a consequence of health care decentralization, Federal institutions such as the Brazilian National Health Foundation (FNS) are being progressively decommissioned, and new participants must be engaged in the process. Communities themselves, together with regional and local institutions, must take charge of surveillance in order to guarantee its efficiency and sustainability.
Key words Chagas Disease; Triatominae; Epidemiological Surveillance; Vector Control; Prevention and Control

 

Resumo A doença de Chagas ainda representa importante problema médico e social nos países afetados. Em alguns deles, a extensão da doença segue desconhecida e programas de controle não foram implementados, mas, em outros, a endemia foi efetivamente minimizada mercê de controle e mudanças sociais e econômicas. Nesses casos, uma vigilância epidemiológica participativa e permanente sobre as formas de transmissão constitui, hoje, o horizonte operacional. Isso requer pesquisa aplicada e profundas reformulações no sistema de saúde, objetivando uma vigilância duradoura, eficiente e auto-sustentável, capaz de controlar, em especial, os triatomíneos em baixa densidade e presentes no espaço peridomiciliar. Por outro lado, remanesce uma população significativa de já infectados, a requerer atenção médica e previdenciária, tudo isto geralmente localizado em regiões e/ou populações mais pobres. Face ao desmonte progressivo de instituições federais como a Fundação Nacional de Saúde, no Brasil, em nome do processo de descentralização, instituições locais e regionais, bem como a comunidade, precisam assumir essa vigilância de maneira compartida e eficaz, o que pressupõe maturidade social e política dos novos atores envolvidos.
Palavras-chave Doença de Chagas; Triatominae; Vigilância Epidemiológica; Controle de Vetores; Prevenção e Controle

 

 

Introdução e antecedentes

 

Decorridos praticamente 55 anos desde que Emmanuel Dias formulou o esquema básico para o controle dos triatomíneos domiciliados, os programas de controle da doença de Chagas em toda a área endêmica, hoje, se defrontam com o tema da vigilância epidemiológica como um dos maiores desafios a enfrentar em suas etapas mais avançadas (Dias, 1944, 1957; Dias, 1997; Rocha-e-Silva, 1979; Coura, 1997). Já Carlos Chagas assinalava que o controle da doença se encontrava ligado a decisões políticas e a um esquema que levasse em conta a população afetada, seus interesses e seus direitos de cidadania (Chagas, 1981). A rigor, concorda-se que a transmissão vetorial do Trypanosoma cruzi constitui-se na forma mais importante de transmissão da doença de Chagas humana (DCH), sendo para isso fundamental a ocorrência de mínimas densidades do triatomíneo infectado colonizando a vivenda humana (Rabinovich et al., 1979; Litvoc, 1985; Dias & Coura, 1997). Nessa perspectiva, a DCH se distribui em bolsões ou clusters, que se superpõem naturalmente à distribuição dos triatomíneos domiciliados nas áreas endêmicas, sendo universal a observação de que o combate sistemático a esses vetores reduz drasticamente ou elimina a expansão da doença (Dias, 1957; Forattini, 1980; WHO, 1991; Schmunis, 1997). Por sua vez, o controle da transmissão vetorial resulta, a médio prazo, na geométrica redução das outras principais formas de transmissão da DCH, a transfusional e a congênita, através da progressiva diminuição da infecção entre doadores de sangue e mulheres grávidas (Dias & Coura, 1997; Schofield & Dias, 1999). A vigilância epidemiológica, inicialmente entendida como uma fase ou etapa do programa antivetorial, hoje é assumida como uma estratégia de ação e compreende, além do componente entomológico, outros elementos da cadeia epidemiológica da tripanossomíase (Dias, 1991, 1993a). Nos anos 60, Gamboa provou, na Venezuela, um esquema misto de vigilância entomológica (Dias, 1988) através dos sensores de Gomez-Nuñes (1965), com revisão periódica por agentes de saúde, que funcionou por algum tempo e foi posteriormente proposto para ampliação (não concretizada) por Gonzalez et al. (1987). Historicamente, o esquema proposto por E. Dias (1957) já contemplava a instalação de uma atenção permanente e horizontalizada para as situações de muito baixa densidade do triatomismo domiciliar, a ser lograda após a fase de ataque químico ao vetor sob cobertura ideal e com a devida continuidade e contigüidade nas ações (Dias, 1957). Essa situação materializou-se em Bambuí, Minas Gerais, Brasil, quando, ao final de 1973, foram observadas a virtual eliminação do Triatoma infestans do município e a redução dos índices de infestação do vetor secundário, o Panstrongylus megistus, a menos que 4% dos domicílios existentes. Em paralelo, desapareceram os casos agudos da moléstia e a prevalência da infecção, medida por sorologia em populações infantis não selecionadas, fora reduzida a níveis próximos a zero nos grupos etários inferiores, indicando a virtual interrupção da transmissão da DCH no município. Situação semelhante ocorria no Estado de São Paulo, já não se justificando, em ambas, a continuação de rociados em massa contra triatomíneos que eventualmente invadiam algumas habitações (Dias, 1974, 1993b; Rocha-e-Silva, 1979; Souza et al., 1984). Para Bambuí, em caráter experimental, foi instalado um sistema municipal de vigilância epidemiológica (VE) com participação comunitária através de um consórcio entre a população, o professorado rural, a Prefeitura e o Instituto Oswaldo Cruz, sob a assistência do então DNERu (Departamento Nacional de Endemias Rurais). Esse esquema envolveu diferentes atores, teve caráter de ações compartidas entre a população, o sistema de ensino, a Prefeitura e um órgão federal. Além disto, foi antecedido por um levantamento soroepidemiológico e seguiu monitorizado por levantamentos periódicos. Ao que se sabe, foi o primeiro esquema de vigilância epidemiológica com participação comunitária contra a doença de Chagas efetivamente instalado e até hoje em funcionamento (Dias & Garcia, 1978; Dias, 1991). Em São Paulo, pouco depois, instalou-se uma vigilância entomológica ativa, com pesquisa regular de focos e expurgo seletivo nas unidades positivas pela SUCEN (Superintendência de Controle de Endemias) (Souza et al., 1984). Em 1975-1976, um sistema híbrido entre o Estado de Minas Gerais e o DNERu (posteriormente SUCAM ­ Superintendência de Campanhas de Saúde Pública), colocou em vigilância entomológica grande área no Vale do Jequitinhonha, com notificação de focos por agentes municipais (principalmente professores) e rociado através de equipes do Centro Regional de Saúde de Diamantina. Em 1978-1979, experiência semelhante e com grande participação comunitária se instalou na região do Chaco, Argentina, sob o comando do Programa Provincial com sede em Resistencia (Argentina, 1986; Dias 1988). Dessas quatro experiências pioneiras, as duas primeiras persistem até hoje, em funcionamento e efetivas, sofrendo algumas modificações operacionais ao longo do tempo. No Vale do Jequitinhonha, pouco a pouco, o sistema foi sendo desativado, por causa da falta de adesão dos municípios e da progressiva desativação do papel executivo do Centro Regional. No Chaco, o programa também foi desacelerado por câmbios políticos que resultaram em afastamento dos técnicos responsáveis. A partir dos anos 80, principalmente com a evolução técnica e a prioridade política conferida ao programa brasileiro, este teve de, cada vez mais, assumir atividades de vigilância, em virtude da boa evolução de seus resultados, principalmente a partir de 1984, produto de um modelo semelhante ao de Bambuí (Dias, 1987, 1991). Desde o final dos anos 80, atividades de VE na luta antichagásica se fizeram necessárias em vários países que, com a evolução de seus programas, se acercavam de níveis mínimos de triatomíneos domiciliares, como a Argentina, o Uruguai e o Chile. Em 1991, formulada a Iniciativa do Cone Sul para a Eliminação do T. infestans e Controle da Transmissão Transfusional da Doença de Chagas, ampliou-se a demanda por sistemas eficientes e viáveis de VE, já entendida como estratégia e, hoje, já proposta para países ainda de elevada endemicidade, como Bolívia e Paraguai (Dias, 1988; Schofield & Dias, 1999). De modo geral, os modelos de controle da DCH foram centrados basicamente no combate ao vetor e formulados a partir dos esquemas clássicos da luta antimalárica, verticalizados e centralizados.

O início das experiências de VE, ocorrido no Brasil, coincidiu com tempos de exceção política em que a participação comunitária era desestimulada, quase inviável. Experiências poucas, até então, geralmente mostravam fracasso e/ou a rápida desativação dos sistemas implantados, geralmente manejados de fora e verticalmente, pouco participativos, que não tomavam em conta nem os interesses nem as peculiaridades da população: geralmente duravam enquanto permanecia o agente externo e o suporte financeiro do ensaio (Dias, 1991). A partir dos trabalhos de E. Dias, nos anos 50 e 60, verificou-se que a sustentação de esquemas de vigilância horizontalizada iria depender em muito de agentes e recursos externos e de uma forte motivação da população (Dias & Garcia, 1978). Um exemplo disso ocorreu em Bauru, São Paulo, Brasil, no início dos anos 70: um esquema de vigilância entomológica instalado pelo então Serviço de Profilaxia da Malária, envolvendo postos de notificação em escolas, chegou a funcionar notificando casas positivas, para expurgo, tendo sido desativado "por razões administrativas" (Rocha-e-Silva et al., 1970). Tecnicamente, grandes inversões em recursos humanos em estruturas federais ou estaduais pesadas não se justificavam para o controle de eventuais e raros focos adventícios ou residuais de triatomíneos em áreas já trabalhadas. De igual modo, a densidade baixa de triatomíneos reduzia em muito a sensibilidade da pesquisa entomológica de um agente de saúde, tornando caras e pouco eficazes as visitas domiciliares realizadas periodicamente por equipes regionais. Por outro lado, não existiam detectores passivos de triatomíneos que fossem eficazes permanentemente, em especial, no peridomicílio, âmbito em que os inseticidas eram menos efetivos e em que ocorria a maioria dos focos de triatomíneos, especialmente no Brasil. Somando-se a tudo isto, ao final dos anos 60 ainda não se dispunha de insumos e estrutura para ampliar o contexto da VE na DCH, mormente em bancos de sangue e no nível do indivíduo infectado. Os ensaios de Bambuí, entre os anos 1972 e 1974, estabeleceram um modelo compatível de vigilância entomológica com participação comunitária e reforçaram a validade da soroepidemiologia como instrumento de vigilância e de medida de impacto (Dias, 1991, 1993b). Os então naturais óbices à participação, frutos do momento político, foram contornados através do consórcio institucional (Prefeitura, Instituto Oswaldo Cruz, DNERu) e do envolvimento de toda a população, motivada através do interesse e da capacitação de professores rurais do município (Dias & Garcia, 1978). De maneira simples, depois de continuada capacitação, professores rurais do município sensibilizaram toda a população rural para a melhoria de suas casas e para a atenção a possíveis triatomíneos nas mesmas. A população passou a capturar os insetos suspeitos (com alto nível de acerto quanto a triatomíneos) e a enviá-los às escolas rurais, transformadas em sentinelas avançadas do sistema e encarregadas de fazê-los chegar à sede municipal. Até hoje, funcionários da Prefeitura Municipal e da Fundação Oswaldo Cruz recolhem essas notificações e realizam a visita domiciliar para pesquisa e borrifação, sempre que se trata do vetor da esquizotripanose. Aos poucos, esse modelo foi sendo melhorado, a partir de muitas experiências e discussões na SUCAM (hoje FNS). É importante lembrar que, então, o Programa Nacional já lograra cobertura integral da área endêmica brasileira e, como produto, colocara várias centenas de municípios livres do T. infestans, além de inúmeros outros com taxas de infestação domiciliar abaixo de 5%, com espécies nativas e ubiqüistas. Ao mesmo tempo, consolidava-se a abertura democrática do País, e a participação popular era incentivada em todas as áreas, especialmente na da Saúde, culminando na 8a Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, em 1986. Esta, retomando Alma-Ata, plasmou um sistema nacional descentralizado, com maior execução de ações nos níveis periféricos, priorizando as ações de prevenção e a rede básica de saúde, alicerçada nos princípios da eqüidade, da universalidade e do controle social. A descentralização dos grandes programas, a começar pelo de malária, passou a ser uma tendência progressiva em toda América Latina. Também avançava a questão transfusional em vários países endêmicos para DCH, aprovando-se leis, eliminando-se a doação de sangue remunerada e ampliando-se a cobertura de seleção sorológica de doadores. Na década de 80, por sua vez, o tratamento específico da doença, ainda que já mostrando efetividade em casos agudos e em crianças de baixa idade, parecia deixar muito a desejar nos casos crônicos que constituíam a imensa maioria dos infectados (Dias, 1988). Tudo isso, principalmente no Brasil, fez com que a última década se caracterizasse, de um lado, pelo progressivo desmonte do antigo programa vertical e, por outro, pelos desafios à instalação de uma VE sustentada nos níveis periféricos e ampliada nas estratégias da soroepidemiologia, no aumento da cobertura dos bancos de sangue e, mais recentemente, do tratamento de casos crônicos de baixa idade (Dias, 1998). Entre 1986 e 1989, a SUCAM já considerava amplamente a questão da VE como forma de consolidar os sucessos já alcançados no controle do vetor, mas também já entendendo que nos novos tempos era necessária uma mudança na forma de atuar. Numa série de seminários (realizados em João Pessoa, Belo Horizonte e Londrina), com a participação da SUCEN, da comunidade acadêmica e de técnicos do programa argentino, entendia-se que a luta antivetorial mostrava novo perfil epidemiológico e pressupunha uma VE que contemplasse os seguintes pontos:

a) Uma baixa densidade de vetores domiciliados, que tornava difíceis e ineficazes os usuais métodos de pesquisa domiciliar por agentes de saúde;

b) A proporção cada vez maior de focos residuais ou adventícios ao nível do peridomicílio;

c) As mudanças sociais dependentes do modelo econômico, causadoras de intensas migrações rurais, levando à urbanização da doença; e

d) As cada vez maiores modificações ambientais de causa antrópica, gerando profundas mudanças fauno-florísticas e estabelecendo novos espaços abertos em áreas de colonização recente, por exemplo, na Amazônia Brasileira (Dias, 1994).

De forma geral, o esquema montado ainda prevalece, transformando-se as antigas visitas periódicas de técnicos federais por agentes municipalizados e vinculados aos sistemas locais de saúde, aptos a sensibilizar a população, criar e supervisionar pontos estratégicos de notificação de triatomíneos ("PITS"), rociar as vivendas positivas e participar de outras ações de saúde pertinentes ao perfil epidemiológico local (Dias, 1997). Para maior efetividade e cobertura, esses agentes foram dotados de motocicletas e, em muitos casos, diante de baixas densidades regionais, um mesmo agente se ocupa de dois ou mais municípios, que funcionam em consórcio para a VE. Para as situações de baixíssimo triatomismo, ou na periferia de áreas endêmicas, foi estabelecido o que se chamou de "vigilância institucional", numa época em que os sistemas locais de saúde ainda estavam sendo esboçados: agentes regionais visitam os municípios em questão e nestes desenvolvem amplas atividades de sensibilização sobre a doença e seu controle. A partir daí, deixa-se instituído um sistema simples de detecção de triatomíneos e sua notificação, pela população, a um órgão ou agente municipal, geralmente alocado no centro de saúde. Esse centro notifica ao Distrito Regional da FNS ou ao seu agente mais próximo, que procede à avaliação do caso e toma as providências pertinentes.

Estas mudanças não se deram com facilidade e tinham implicações com a cultura dos próprios agentes e das instâncias de administração. Em 1991, escrevia-se: "Transition from the vertical attack phase to the horizontal surveillance is not simple. It represents more than mere modification of administrative and technical approach, requiring a complete change in thinking by those directly involved with the programme and the community. In Latin America, governments have tended to be very centralised, which has weakened the decision-making power of the municipalities. Moreover, field operations have traditionally taken priority over epidemiological considerations, and planning has been carried out in a bureaucratic way that emphasizes attainment of technical objectives and at the expense of epidemiological or social targets" (Dias, 1991:80). Os anos 90 se caracterizaram por uma evolução política na concepção dos sistemas de saúde, em geral, e da VE. Na 9a Conferência Nacional de Saúde (1992), entendeu-se a municipalização como o caminho fundamental, chegando-se a votar pela imediata extinção da Fundação Nacional de Saúde (FNS, ex-SUCAM e FSESP ­ Fundação de Serviços Especiais de Saúde Pública), o que causou grande reação da comunidade científica brasileira, através de manifesto e representações da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (Dias, 1998). O sumário desmonte da Fundação pegaria milhares de municípios despreparados, e o controle das endemias, que se horizontalizava gradualmente, iria ao caos. Não havendo quem assumisse o risco e as responsabilidades decorrentes, o processo foi sustado e mesmo a 10a Conferência, quatro anos depois, entendeu que a descentralização deveria ser responsável e gradual, a partir de amplas negociações e discussões em todo o País. Ao mesmo tempo, descentralizava-se o clássico Serviço de Malariologia na Venezuela, levando à paralisação quase o total das ações anti-Chagas. Na Argentina, ao fim dos anos 80, a descentralização também se impôs de maneira muito rápida e radical, gerando muita dispersão e perdas de recursos da luta antichagásica, anteriormente levada por um programa nacional (Argentina, 1986). No Uruguai, atingidos níveis de triatomismo domiciliar baixíssimo, o País entrou todo em vigilância pelos idos de 1994, tanto por razões epidemiológicas, como também pela assustadora desativação de seu Programa Nacional, que ficou reduzido a menos de duas dúzias de técnicos (Salvatella & Rosa, 1995). O Chile, também logrando excelentes resultados contra seu principal vetor, o T. infestans, também ampliou sua VE na imensa maioria das áreas endêmicas, num sistema misto de agentes regionais e lideranças locais, especialmente vinculadas às Unidades de Saúde e de Ensino (PAHO, 1993; Schofield & Dias, 1999).

O presente artigo analisa a evolução da vigilância epidemiológica contra a doença de Chagas, na transição do milênio e diante dos novos desafios e perspectivas que se apresentam, mais particularmente em relação às experiências e à realidade político-social do Brasil.

 

 

Diferentes esquemas, possibilidades e requerimentos da vigilância epidemiológica contra doença de Chagas

 

Por definição, a VE se supõe permanente e deve ser sustentada e ampliada nos diferentes níveis de promoção da saúde. Como estratégia, a VE se aplica a todas as etapas do programa contra a doença e objetiva a prevenção e a redução do agravo em todas as suas formas de transmissão e de evolução mórbida. Como fase operacional, se refere de modo genérico à transmissão vetorial e se instala quando a taxa de infestação domiciliar se reduz a 5% ou menos das unidades domiciliares existentes em um município. Esse limite foi estabelecido pela observação direta e por modelos matemáticos, que o colocam praticamente no limiar da transmissão da DCH pelo triatomíneo, também não se justificando, nessa situação, campanhas maciças com inseticidas na região em causa (Dias, 1957; Freitas, 1963; Rocha-e-Silva, 1979; Souza et al., 1984; Dias, 1987).

Considerando como base o controle do vetor, de maneira geral, os principais atores da VE são a própria comunidade, os sistemas locais de saúde e educação e instituições de saúde pública ("malariologias", programas nacionais, fundações ou superintendências de saúde). As unidades básicas de vigilância são os municípios ou microregiões epidemiológicas, eventualmente as localidades. Com a evolução do conceito de vigilância e das novas políticas de saúde, praticamente, não mais se adota o modelo de vigilância ativa e vertical, no passado levado a cabo por grandes instituições centralizadas que visitavam os municípios e faziam a pesquisa triatomínica casa-a-casa, rociando seletivamente aquelas achadas positivas. As grandes tendências depois de Alma-Ata prevêem ações de VE horizontalizada e integrada na comunidade, com participação desta e amplo controle social. Os princípios básicos desse modelo sanitário foram adotados pela 8a Conferência Nacional de Saúde do Brasil, em 1986, sendo incorporados na Constituição de 1988, de maneira geral, sob a égide do conceito de "Saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado". Esses princípios se aplicam genericamente ao espírito da VE em doença de Chagas, podendo dividir-se em termos das ações e da gestão conforme o esquema apresentado na Tabela 1.

 

 

São os mesmos princípios da medicina familiar e do modelo clássico de atenção primária à saúde, que modernamente se espera serem perpassados para maior eficiência, pelos enfoques de gênero e de inter e transculturalidade. O modelo, como um todo, se aplica preferencialmente às regiões e/ou populações menos desenvolvidas, onde ocorrem grandes desequilíbrios sociais, como é o caso pertinente à tripanossomíase americana (Dias, 1988, 1991). Como pontos fundamentais e críticos para a realidade presente da doença de Chagas, destacam-se, quanto à ação, os desafios da sustentabilidade, da credibilidade e da eficiência. Quanto à gestão, praticamente todos os enunciados são pontos-chave, aqui se entendendo a integralidade como relativa à visão de conjunto da doença, tanto em seus níveis de agravo e de prevenção como em suas relações com outras doenças e problemas da comunidade. A questão da culturalidade se observa cada vez mais presente, na medida em que a doença e seu controle são pertinentes não somente ao setor da saúde, mas envolve múltiplos parceiros na educação, na comunicação, nas áreas do trabalho e da produção, no âmbito político, etc.

Pragmaticamente, a VE em doença de Chagas se faz sobre o vetor domiciliado, sobre a transmissão transfusional e sobre os casos agudos e congênitos, assim como sobre a evolução dos casos crônicos. Conforme o momento e a região, predomina em importância um ou outro desses setores, geralmente sendo prioritários o vetor, a transmissão transfusional e os casos crônicos, por sua maior transcendência. A experiência corrente demonstra que, de modo geral, o controle eficaz do vetor se reflete positivamente e vai minimizar a médio prazo as demais formas de transmissão, sendo, portanto, fundamental em todas as áreas rurais endêmicas, de onde provem a imensa maioria dos infectados. Por seu turno, a urbanização desenfreada e as intermináveis migrações humanas fazem crescer o risco da doença transfusional, sendo esta a prioridade em áreas urbanas (Dias, 1994). Todavia, em algumas cidades como Tegucigalpa, Guayaquil e várias da Bolívia (Sucre, Cochabamba, Santa Cruz, Tarija, Tupiza, etc.), o problema do vetor é muito importante no âmbito urbano. Para uma visão de conjunto, a Tabela 2 resume as principais situações a serem enfocadas na VE contra a doença de Chagas, com as respectivas estratégias básicas. Em termos gerais, a ausência de colônias intradomiciliares de triatomíneos, o impedimento da doação de sangue infectado e o pronto tratamento do recém-nascido infectado constituem-se nos principais objetivos de uma VE sobre a transmissão do parasito a indivíduos suscetíveis. Já quanto às pessoas infectadas, o objetivo básico primário é reduzir a morbidade e frenar a evolução para formas graves, além de reforçar-se educativamente a não-doação de sangue pelo indivíduo infectado. Casos agudos tornam-se cada vez mais raros nas áreas bem trabalhadas, mas não podem ser menosprezados durante a vigilância, pois indicam transmissão ativa e balizam a necessária investigação epidemiológica. Secundariamente, e com impacto menor, o tratamento específico nos casos indicados (especialmente congênitos e eventuais agudos) faz reduzir de modo relativo a população circulante do T. cruzi, reduzindo-se, assim, o risco da propagação da doença (Dias, 1997). Assinale-se que essa visão da VE em doença de Chagas é essencialmente teórica, sendo muito raros os casos de sua aplicação em regiões mais amplas e em rotinas não experimentais. Não obstante, as ferramentas e estratégias disponíveis já têm sido empregadas com sucesso, em escala menor, em várias oportunidades, no Brasil, Argentina, Uruguai e Bolívia (Salvatella & Rosa, 1995; Dias, 1997; Guillén & Alfred, 1999). Na prática corrente, a maioria dos esquemas de VE/Chagas se limita à vigilância entomológica, com ou sem apoio de soroepidemiologia (Dias, 1993a, 1997, 1998).

 

 

Para efeitos práticos, a instrumentação e a execução de uma VE contra a DCH, nos diversos níveis, pressupõem uma série de premissas já estudadas por vários autores e que são, a seguir, sumariadas (WHO, 1983; Dias, 1986, 1991):

• Os equipamentos, insumos e recursos humanos para iniciar e sustentar o programa devem estar disponíveis e nunca em falta. Os insumos necessários devem ser facilmente adquiridos. Os gastos exigidos devem ser mínimos para a população (geralmente pobre), sendo os principais custos pertinentes ao governo, nos seus diferentes níveis, que também deve ser o encarregado pela organização do esquema e pelo suprimento e estoque dos principais insumos.

• Os métodos devem ser discutidos e planejados com a comunidade e serem compatíveis com as práticas, crenças e atitudes locais e regionais. Mais que isso, como a vigilância contra a esquizotripanose geralmente não é a maior prioridade nas áreas afetadas, as atividades e estratégias do programa devem ser fortemente vinculadas com outros projetos da população, especialmente os de saúde, de educação e de desenvolvimento social.

• A manutenção de centros ou instituições regionais de referência (core-groups) constitui-se numa necessidade fundamental para prover suporte técnico e garantia de qualidade para as atividades periféricas. É o caso de unidades de entomologia, de atenção médica, de laboratórios de referência sorológica, de pontos de referência à educação, etc., que, atualmente, no Brasil, têm sido em geral supridos pelos Distritos Sanitários da FNS.

• O papel da comunidade é definido de acordo com as características de cada população ou região, através de ampla negociação e da identificação de elementos facilitadores e dificultadores. De modo geral, a existência de sistemas de saúde e de educação organizados e, principalmente, de comissões locais de controle ou promoção social facilita em muito o funcionamento regular da VE. No caso do Sistema Único de Saúde do Brasil, como se verá adiante, seu formato teórico se faz bastante favorável a uma VE contra a doença de Chagas, em moldes ideais.

• Como elementos fundamentais à logística e à estratégia da VE, sobejamente comprovados em várias observações e seguimentos, estão a coerência do sistema e a rapidez da resposta às notificações e problemas surgidos. No primeiro caso, as combinações acordadas e os papéis definidos ao princípio e ao longo do processo devem ser de conhecimento geral da comunidade e dos atores do processo, ficando, especialmente, bem claros os elementos técnicos e o comando do mesmo. Igualmente, todas as notificações e problemas apresentados devem receber uma resposta, o que sustenta a participação comunitária.

• Quanto à rapidez do atendimento, é óbvio que quanto mais rápida for a intervenção (focos de triatomíneos, casos humanos a tratar, situações epidemiológicas a investigar, etc.), tanto maior será o benefício decorrente, o que também reforça a coerência do sistema e a participação dos interessados (Dias & Garcia, 1978).

• A rede básica de saúde e os conselhos municipais devem participar tanto no planejamento quanto na execução e na avaliação da VE, incorporando-se nesta outros aspectos de interesse à população, como a melhoria e o manejo da habitação, a atenção médica ao infectado e os aspectos previdenciários e trabalhistas do chagásico.

• Deve ser dado especial destaque aos aspectos de educação e organização social, nos moldes entendidos por Paulo Freire (educação como espaço à criação e à liberdade) e por Hortência de Hollanda (saúde como espaço à compreensão da vida). Em particular, é fundamental que o espaço formal da educação seja necessariamente envolvido no processo da VE contra a doença de Chagas, nas regiões pertinentes.

• É imperioso que o processo leve em conta a maturação das instituições envolvidas, tornando-as mais democráticas e próximas de seus próprios servidores e das populações onde atuam.

• O componente de investigação deve ser permanentemente vinculado à VE, como forma de aprimorá-la em seus aspectos técnicos, educativos e conceituais.

 

 

Situação atual da vigilância epidemiológica em diferentes esquemas e países

 

Com o desenvolvimento dos programas de controle na última década, especialmente enfocando o vetor e a transmissão transfusional, uma série de avanços e problemas tem se apresentado como escopo para o futuro imediato. O controle vetorial realizado na Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela, em paralelo com melhorias evidentes no sistema de hemoterapia, tem colocado a VE como a maior prioridade programática para esses países, na virada do milênio. Outros países, como Bolívia e Paraguai, ora iniciando seus programas, também já incorporam as estratégias de VE na própria fase de ataque ao vetor. De maneira geral, aqueles países onde o principal vetor é ou foi o T. infestans, de início, tiveram como principal desafio a sua eliminação, como premissa às atividades da Iniciativa do Cone Sul (WHO, 1997; Schofield & Dias, 1999).

Considerando a experiência já acumulada, no Brasil e outros países sul-americanos, hoje já se implanta ou prepara a VE como estratégia em todas as regiões endêmicas trabalhadas, independentemente da fase operacional. A grande tendência é a vigilância passiva, ou seja, os focos de triatomíneos, residuais ou adventícios, sendo detectados pela própria população, devidamente capacitada e minimamente organizada nesse sentido. Historicamente, desde os trabalhos de Bambuí, em 1974, na verdade, o sistema tem tido uma natureza mista, sendo a população detectora/informadora e agindo uma instituição ou governo como estimulador, supervisor e efetor. Outras vezes, o sistema tem sido montado pelos antigos programas nacionais ou regionais de controle da doença de Chagas (SUCAM, SUCEN, Programas Nacionais de Chagas ou Malária, etc.), na medida em que se esvai a fase de ataque em termos da progressiva redução dos índices triatomínico-tripanosômicos em nível domiciliar. Trata-se também de adequar a boa relação de custo-efetividade dos clássicos programas verticais (Dias, 1987; Oliveira Filho, 1989; Schofield & Dias, 1991; Akhavan, 1996; Basombrio et al., no prelo). Em geral, até aqui, os países têm-se restringido à vigilância contra o vetor, não se encontrando sistemas participativos envolvendo a população nos campos da transmissão transfusional ou congênita, tampouco em um sistema organizado para atenção médica. Um desdobramento imediato dessa preocupação tem sido a lenta mas progressiva tendência à implantação de serviços de assistência ao chagásico, em algumas regiões estratégicas, geralmente aproveitando a universidade (Campinas, Uberaba, Belo Horizonte, São Paulo, Londrina, Recife, Caracas, Córdoba, Cochabamba, Santiago, Montevidéu, Assunção) e/ou instituições (Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Belém, Jujuy, Santa Cruz de la Sierra, Tegucigalpa, Buenos Aires, etc.). Como constatação, verifica-se que uma das maiores falhas dos sistemas nacionais de vigilância até aqui implantados (Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela) tem sido a falta de participação formal e contínua dos respectivos sistemas nacionais de educação, o que é lamentável por causa do enorme potencial de trabalho conjunto. Isso parece ser ligado a diversos fatores que distanciam as instâncias de promoção social nos países em desenvolvimento, como a grande rotatividade de autoridades, a falta de coordenação dos governos, a falta de estímulo ao trabalho conjunto, a falta de sintonia entre os programas formais de educação e as realidades e interesses locais, etc. (Briceño-León, 1993; Dias, 1993a). Não obstante, como atividade supletiva, isoladamente os ministérios e instituições de saúde desses países têm improvisado algum material educativo e informativo sobre a DCH e as atividades de vigilância, para distribuição entre pessoal técnico, professores e população. São exemplos dessa iniciativa o Manual para Vigilancia, da Argentina (1986), as publicações no Uruguai (Salvatella & Rosa, 1995) e Doença de Chagas: Textos de Apoio, da SUCAM (1989). Na Bolívia, o Ministério da Saúde tem incentivado os promotores de saúde das localidades e municípios a revisarem periodicamente as vivendas rurais e a formularem um gráfico contínuo da taxa de infestação, que é apresentada à população e serve para a orientação das atividades de rociado e melhoramento da habitação (Guillén & Alfred, 1999).

 

 

Perspectivas no Brasil: VE e Sistema Único de Saúde

 

Os horizontes de uma VE atuante no Brasil, para hoje e para o futuro, mostram-se cada vez mais vinculados à implementação e ao bom funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que começou a ser implantado a partir da 8a Conferência Nacional de Saúde, em 1986, com base na descentralização, na eqüidade, na universalidade, nas ações predominantemente em nível periférico e no controle social. Tem sido um processo lento e progressivo, entravado por uma cultura imediatista, curativa, centrada em hospitais, de um lado, e por tremendos interesses políticos e financeiros, de outro (Dias, 1998). Não tem sido fácil romper essas barreiras para a simples execução das tradicionais ações médicas e curativas, muito menos para o controle de endemias que, muitas vezes, são restritas a populações rurais, pobres e politicamente inexpressivas. O panorama que se divisa pode ser otimista, em sua perspectiva logística e ética, mas é muito preocupante no nível operativo e de sustentabilidade. No plano histórico, a inserção no SUS da VE contra a DCH é possível, urgente e necessária, até porque as clássicas estruturas de controle estão sendo ativamente desmontadas por determinação da política globalizante e neoliberal hoje vigente no Brasil e em outros países endêmicos. Esses aspectos podem ser analisados através de seus elementos positivos e negativos, sendo urgente que deles tomem ciência os gestores do SUS, os políticos e a população. De concreto, a VE deveria consolidar e aprimorar os grandes avanços obtidos no controle da DCH em nosso país, havendo risco de que isso não aconteça por falta de uma reflexão consistente e responsável, assim como pela não viabilização do SUS, ou pela incompetência para nele inserir-se essa vigilância. Elementos favoráveis e os desfavoráveis a esse desideratum precisam ser discutidos. Em seu marco teórico, a descentralização se mostra como um importante caminho, beneficiando diretamente a população e dando-lhe rapidez, integralidade e eficiência nas respostas quanto a uma VE em doença de Chagas. Como princípio geral, é consenso de que as ações municipalizadas e em conjuntos regionais de resolução mostram-se tecnicamente exeqüíveis, mas dependem de organização, disponibilidade, competência e mecanismos de sustentabilidade. Alguns elementos envolvidos na experiência brasileira podem ser apontados na Tabela 3, num exercício não terminado para a reflexão e aprofundamento para os diferentes protagonistas.

 

 

A Tabela mostra em conjunto uma série de perspectivas e problemas. Como tem sido apontado, está posto um dilema importante na condução da VE, em particular, contra a doença de Chagas no Brasil, e, como um todo, no tocante aos programas de controle de endemias. A descentralização que vem ocorrendo é teoricamente correta, mas não tem sido acompanhada pela preparação racional dos níveis periféricos para assumir as tarefas correspondentes (Dias, 1998). De maneira sucinta, em nome da modernidade e da racionalidade administrativa, o governo brasileiro está desmontando rápida e inexoravelmente suas antigas estruturas de controle de endemias e saneamento básico para populações pobres, em nível federal. Na instância estadual, é flagrante o enfraquecimento das secretarias estaduais de saúde, em termos de suas antigas ações finalísticas, inclusive em termos de medicina curativa, de laboratórios de serviço e referência, e mesmo de ações de coordenação e supervisão técnica aos diversos programas. Do quadro acima, os elementos facilitadores existem e, de alguma forma, têm impulsionado as mudanças, como se assinalou em 1996, na 10a Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, através do conjunto de temas denominado "O SUS que Deu Certo". Ali, basicamente, verificou-se que as ações descentralizadas são possíveis mediante clareza e competência técnica de gestores e gerentes, aliadas ao envolvimento correto e consciente da comunidade e a um esquema que funcione e que apresente financiamento sustentável, tudo isso respaldado por um contexto político eticamente correto. Entendeu-se que o SUS é ainda muito jovem e incipiente; há bastante o que aprimorar e amadurecer. A população brasileira, representada nessa Conferência, reviu a questão das ações contra as endemias e votou unanimemente pela reversão da decisão de 1992 de simplesmente desativar a Fundação Nacional de Saúde, em nome de um processo responsável e construído por toda a sociedade. Como elementos bastante positivos, algumas experiências de consórcios municipais de saúde e de programas inteligentes de saúde familiar (PSF) acenam com perspectivas concretas de seu aproveitamento para ações locais e microregionais de controle de endemias. Já uma expectativa inicial, postulada desde 1986, de criação de centros regionais de controle de zoonoses (CCZs) que se encarregariam destas ações, tem apresentado implementação muito lenta e de baixo impacto, salvaguardadas importantes exceções, como o CCZ de Uberlândia, Minas Gerais, que funciona bem. Na verdade, esses centros ainda têm dificuldades a superar, como a de manterem-se em funcionamento com parcos recursos, desenvolver experiência em pesquisa e serviços nas endemias prevalentes, alcançar abrangência regional, escapar às nuances políticas locais e regionais, etc. Além do mais, ficam sobrecarregados com patologias urbanas agudas, como a dengue, e de rotinas pesadas, como as de raiva e de animais peçonhentos. Entende-se que ampla discussão é necessária para um melhor funcionamento desses centros. O mesmo tem acontecido, mutatis mutandis, com laboratórios regionais de serviço e referência (Dias, 1998). Lamentavelmente, as instâncias mais representativas do Governo não compareceram à 10a Conferência e, na seqüência, tem sido açodado o desmonte das instituições, sem discussão nem planejamento. Basta ver o quadro das demissões incentivadas e da não reposição de vagas por aposentadoria em todo o Ministério da Saúde e, nas secretarias estaduais, o não andamento da Norma Operacional Básica/96 ­ NOB/96 (Brasil, 1996), as perdas importantes de técnicos e especialistas, o enfraquecimento visível do processo do SUS como um todo. A Gerência de Doença de Chagas da FNS, em Brasília, estima em, pelo menos, 60% a perda de recursos humanos do Programa Nacional de Controle da Doença de Chagas, como um todo, havendo Estados com o programa praticamente parado, como Tocantins e Alagoas (em fase de "ataque" e de transição) e Paraná (praticamente todo em fase de VE). Não tem havido a respectiva reposição da perda do recurso humano pelos governos regionais ou municipais, em virtude dos funcionários desviados de função e aposentados. O que têm feito algumas coordenações regionais, como Goiás e Minas Gerais, é priorizar as áreas tradicionais de dispersão do T. infestans, para, ali, racionalizar seus recursos humanos, em galopante redução. Neste ponto, tem sido fundamental o bom funcionamento da Iniciativa do Cone Sul para a Eliminação do Triatoma infestans e a Interrupção da Transmissão Transfusional da Doença de Chagas, que tem induzido os países a priorizar essas atividades (Schofield & Dias, 1999). Ao lado da falta de cultura e de experiência para ações como a VE/DCH em níveis mais periféricos, os problemas mais evidentes têm natureza política e dependem pouco de técnicos e cientistas, que em suas reuniões e congressos constatam a situação e fazem apelos geralmente inócuos às instâncias de decisão. Tudo isso é agravado pela evolução natural dos fatos políticos e administrativos no nível das instituições envolvidas. Uma contradição essencial nesse contexto se verifica entre os pressupostos essenciais de democracia e participação, estabelecidos no SUS e alardeados pelos governos, e a postura autoritária e não participativa assumida por autoridades federais e estaduais de nosso País, quando impõem regras, prioridades, decisões, cortes orçamentários e esquemas de trabalho totalmente à revelia da população. Em paralelo, a cumplicidade se estabelece de forma aleatória e obscura, entre Executivo e Legislativo, com a ausência do Judiciário, no loteamento dos cargos técnicos e na condução de programas balizada por interesses político-partidários. De outro lado, grandes interesses se defrontam frente ao "negócio" da saúde, gerando competições freqüentemente obscuras e quase sempre em detrimento da população. Nesse quadro, o SUS naturalmente se defronta com grandes dificuldades, gerando desânimo e perda de credibilidade (Dias, 1998). O que se observa hoje no Brasil em termos da luta contra a doença de Chagas é, ao mesmo tempo, estimulante (nível de controle obtido) e preocupante (consolidação do trabalho por uma VE eficiente e sustentável). As boas notícias correm por conta da minimização da transmissão vetorial, atestada por inúmeros inquéritos soroepidemiológicos, assim como pelo avanço do controle transfusional, que hoje cobre mais de 90% das transfusões realizadas no Brasil (Dias & Schofield, 1998).

A VE para doença de Chagas que agora se impõe tem de ser ampliada e consolidada, nas perspectivas de sua construção histórica e, principalmente, no contexto do Sistema Único de Saúde. Em outras palavras, a vigilância já formulada e estabelecida em suas bases operacionais terá maior ou menor sucesso de acordo com a evolução do SUS como um todo e com as competências locais. Não parece haver outra saída, desde que o modelo clássico não pode mais ser exercido pelas grandes estruturas como a FNS e a SUCEN, em vias de desativação. De prático, o SUS tem se estabelecido como alternativa teoricamente viável, embora muito ameaçado por questões particulares, problemas políticos, má gestão, falta de liderança e uma enorme rotatividade de seus gestores e gerentes. Salvo em caso de epidemias, não têm sido suas prioridades as ações preventivas (incluindo o saneamento básico) e o controle de endemias, especialmente as rurais. De forma geral, constata-se que a situação da VE em doença de Chagas no Brasil não é boa, não está realmente inserida no SUS e requer imedi-atos encaminhamentos. Como já visto, Estados e municípios, em geral, estão abarrotados de problemas e ausentes do processo. Falta-lhes experiência, portanto a sua prioridade em do- ença de Chagas não é significativa. Por sua vez, a FNS também se debate nos estertores de sua transformação de agente efetor para agência de coordenação e repasse de recursos, um processo atabalhoado que se trava em Brasília, longe das bases, com poucos parceiros e interlo- cutores, provavelmente determinado de cima para baixo e sem muita chance de modificações.

 

Uma possibilidade prática

 

Baseada nestes fatos, a Coordenação Regional da FNS em Minas Gerais, entre 1995 e 1997, procurou, ao máximo, reciclar seus técnicos e pessoal de campo, envolvê-los com as forças do SUS e fazer deles especialistas em saneamento e controle de endemias ligados aos municípios e ao Estado, operando como agentes de catálise, capacitação e supervisão. Uma tese levada à 10a Conferência Nacional de Saúde e 3a Conferência Estadual de Saúde, aprovada em plenário, contemplava essas possibilidades sem desativar sumariamente a Fundação em detrimento dos municípios e população, mas estabelecendo um processo gradual e responsável de transição. Reforçando-se as ações finalísticas nos municípios, propôs-se a coexistência (ou inserção) dos distritos sanitários da FNS com as instâncias regionais da Secretaria de Saúde, mantendo-se nesses níveis regionais estruturas e pessoal capacitados a formar, supervisionar e dar referência às ações na região, inclusive mantendo-se uma reserva de pessoal capacitada a realizar ações supletivas e de emergência em municípios mais carentes. Em particular, para Minas Gerais, uma série de hipóteses de trabalho que se buscava, à época, envolvia as ações da FNS com os programas estaduais de Saúde da Família e de Consórcios Intermunicipais de Saúde, ambos muito pertinentes às atividades de saneamento, VE e controle de endemias (Dias, 1996). Um problema seria a questão fundamental do financiamento das ações de VE, ainda pendentes na Norma Operacional Básica/96 - NOB/96 (Brasil,1996), especialmente no nível dos municípios mais pobres. A questão orçamentária poderia ser compatibilizada pela NOB/96, à época, prevendo-se adicionais de controle de endemias e vigilância epidemiológica, diretamente repassados aos municípios conforme critérios populacionais e epidemiológicos, reservando-se ao Estado o necessário pressuposto para a manutenção e provimento dos programas e estruturas no nível estadual/regional (Dias, 1996, 1998).

 

 

Desafios presentes e necessidades de investigação

 

Por tudo acima assinalado, seria ingênuo pensar que o controle da DCH está terminado no Brasil, em vista dos bons indicadores hoje conhecidos. Também não se pode esperar que a necessária vigilância se estabeleça em geração espontânea, ao largo da implantação do SUS e dos intermináveis decretos de Brasília, cada vez mais burocráticos e menos participativos. No presente, a situação confortável da baixa transmissão poderá resultar, a curto-médio prazo, numa progressiva perda da vontade política e da competência técnica para o controle da esquizotripanose. Provavelmente, uma eventual recrudescência do problema se dará de forma lenta e progressiva, exatamente nos bolsões de pobreza e nas regiões politicamente menos representativas, e, também, de acordo com as densidades e a capacidade de domiciliação dos triatomíneos locais. Fatores de conforto e tranqüilidade para os centros de decisão correspondem à evolução lenta da doença, à lenta recuperação das populações dos triatomíneos domiciliados, ao progressivo esvaziamento das populações rurais e, naturalmente, à anomia (invisibilidade) das populações chagásicas, em geral (Dias, 1988; Briceño-León, 1993). Há riscos concretos de uma recuperação do triatomismo domiciliar nessas áreas mais deprimidas, se não se consolida uma VE minimamente atuante, assim como em áreas novas, de colonização recente, como a Amazônia, a partir de migrações humanas e de focos naturais (Forattini, 1980; Schofield, 1994; Diotaiuti et al., 1995; Dias & Coura, 1997). Esses riscos são, em parte, diminuídos pelo próprio processo de adaptação dos triatomíneos à vivenda humana, que é lento e requer simplificações genéticas, biomorfológicas e de comportamento (Schofield, 1999). Os principais horizontes e necessidades da VE na luta antivetorial são o envolvimento sustentado da população, um melhor componente educativo nos programas, a luta no peridomicílio, a captura de triatomíneos em baixas densidades e a questão da domiciliação de espécies silvestres e ubiqüistas. No campo da transmissão transfusional, o panorama no Brasil e em vários países é mais otimista, em relação à atual tendência de aumento de cobertura nos bancos oficiais e privados. Porém, alguns aprimoramentos técnicos são ainda oportunos, especialmente quanto à simplificação de uma boa sorologia para serviços menores, ao melhoramento da quimioprofilaxia e à melhor indicação médica da hemoterapia (Schmunis, 1997). Para a transmissão congênita, os grandes problemas têm sido a detecção precoce do caso e o pequeno grau de cobertura especializada para gestantes e recém-nascidos nas áreas endêmicas, também não existindo drogas ou outros esquemas de prevenção para a gestante infectada (Dias, 1997). Seguem as pesquisas por melhores fármacos para a terapêutica específica e para a quimioprofilaxia nos diversos casos de transmissão, ainda pendente na comunidade científica uma vacina com os necessários poderes antigênicos e inocuidade. Para os indivíduos já infectados, a vigilância se volta para a detecção do caso e seu manejo precoce, buscando-se prevenir as doações de sangue e de órgãos, de um lado, e a morbi-mortalidade pelas formas mais graves da doença, de outro (Dias, 1997).

A situação presente preocupa mais em relação à transmissão vetorial, desde que são mínimos os níveis de prevalência da infecção chagásica entre doadores de sangue e gestantes, no Brasil (Dias & Coura, 1997). Os maiores desafios, nesse contexto, prendem-se à domiciliação de espécies secundárias e silvestres, um processo geralmente lento e dependente de alta pressão triatomínica e de câmbios adaptativos nas espécies em questão (Schofield, 1998). A motivação da população e a manutenção de seu interesse e participação constituem outros aspectos essenciais, um problema que tende a agravar-se com a progressiva diminuição de casos, da morbi-mortalidade e de triatomíneos domiciliados (Dias, 1991, 1993a). Já do lado da doença instalada e da prevenção das formas graves, a VE se depara com problemas, principalmente de diagnóstico, de cobertura médico-assistencial e de competência dos profissionais envolvidos (Dias, 1991, 1997; Salvatella & Rosa, 1995).

Em termos gerais e espelhando todo o contexto das atividades contra a doença de Chagas no Brasil no momento atual, a realidade da VE deixa a desejar e pode ser resumida na seguinte série de críticas e observações pontuais:

• apresenta grande dificuldade de implantação (indicadores, agentes, negociação);

• encontra-se praticamente restrita à entomologia (pequeno avanço em soroepidemiologia);

• no campo, está restrita aos PITs, com baixa supervisão;

• trata-se de um sistema pouco aberto ao SUS e à educação formal;

• é um tema pouco articulado com outros agravos e problemas da população;

• é também pouco aberto a outros temas da própria doença de Chagas;

• as atividades são pouco priorizadas nas instituições (FNS, SUCEN, Secretarias);

• há pouca criatividade no nível da população;

• a atividade tem pouca sustentação como programa;

• é pouco sustentada laboratorialmente;

• é pouco móvel e resolutiva nas questões mais amplas da comunidade;

• ainda apresenta dúvidas e confusões técnicas;

• ainda é lenta, como resposta, em muitas regiões ou comunidades;

• ainda está longe da cultura municipal, que prioriza a atenção médica.

Da experiência acumulada, especialmente no Brasil, Argentina e Uruguai, observa-se, na prática de uma VE instalada, uma série de constrangimentos que vêm sendo apontados há algum tempo e que merecem análise quanto aos encaminhamentos presentes e futuros. Como mais imediatas e tradicionais, as questões de vigilância entomológica têm sido dominantes, mas, hoje, se incorporam novos componentes. De maneira simplificada, as principais perguntas seriam (Dias, 1987, 1991, 1997; Tonn, 1991; Salvatella & Rosa, 1995):

 

a) Como manter uma vigilância contínua em áreas com progressiva redução da endemicidade?

 

Aqui interagem fatores políticos, educacionais e de motivação populacional. Os agentes de vigilância devem estar municipalizados e ser capazes de exercer atividades de educação e outras tarefas de proteção à saúde, sintonizadas aos diferentes interesses e prioridades locais. O estímulo externo é importante, em termos de avaliações e supervisões periódicas. No contexto do SUS, os resultados e problemas relacionados à VE/Chagas devem ser levantados e debatidos nas conferências e nos conselhos municipais e regionais de saúde.

 

b) Como controlar os triatomíneos no peridomicílio e detectá-los em baixas densidades?

 

Trata-se de problemas ainda não bem resolvidos e muito importantes na fase de VE. A detecção de raros triatomíneos passa por atenção constante da população, o que deve ser motivado e instruído. Pesquisas sobre sensores e iscas de atração seguem em curso, mas sempre apresentam problemas de durabilidade e efetividade no peridomicílio. Em termos de luta química, novas formulações e moléculas têm sido ensaiadas, mas com resultados geralmente pobres. A repetição mais amiúde do rociado (semestral) mostrou resultados satisfatórios em Minas Gerais e Pernambuco, mas a relação de custo/benefício não foi estabelecida (Dias, 1997). O que tem sido mais eficiente, em observações e experimentações recentes, é o manejo físico do peridomicílio pelos moradores, diminuindo ou afastando fontes de alimentação e esconderijos viáveis para os triatomíneos (Dias, 1997; Cassab et al., 1999).

 

c) Como prover uma boa e rápida epidemiologia com vistas às necessidades regionais e municipais?

 

Trata-se de criar autonomia e competência no próprio município, com registros e rotina que permitam a tomada imediata de decisões. A padronização dos dados e apurações pode ser provida pelas instâncias regionais, com a consolidação periódica dos dados e como referência técnica e laboratorial (ver acima, tese levada à 10a Conferência Nacional de Saúde (Dias, 1996)).

 

d) Como manter a qualidade do programa nos níveis periféricos?

 

A melhor resposta é a supervisão técnica periódica, realizada por equipes regionais e debatida nos conselhos e conferências municipais. Indicadores de participação comunitária, de conhecimento da população, de impacto quanto às ações educativas (por exemplo, melhoramento e higiene de habitações), de produtividade de postos de informação, etc. devem ser cotejados com resultados soroepidemiológicos tomados regularmente.

 

e) Como integrar o controle do vetor com outras atividades em saúde e em doença de Chagas?

 

Esta é uma das vantagens do trabalho municipalizado e, em princípio, gerenciado pela unidade local de saúde. O(s) agente(s) local(is) de VE devem capacitar-se para atuação em outros temas e atividades além do controle dos triatomíneos, trabalhar com a comunidade, desenvolver ações educativas, etc. Os laboratórios locais e regionais de sorologia devem capacitar-se à soroepidemiologia em doença de Chagas, ao controle de doadores de sangue e ao diagnóstico da esquizotripanose para os pacientes do SUS, ampliando-se também para outros problemas regionais. No caso dos consórcios intermunicipais, será muito facilitada a racionalização de bancos de sangue e de atenção ao chagásico, de acordo com a capacidade humana e institucional da microregião. Havendo programas locais de agentes comunitários ou de saúde da família, uma grande série de oportunidades se abre à VE/Chagas, não apenas envolvendo o agente local, mas também agindo como fatores de estimulação e de detecção de casos e situações encontrados na comunidade (Dias, 1996).

 

f) Como prevenir a expansão da doença de Chagas para novas áreas?

 

Este tem sido um problema para toda a América, como fruto das intensas migrações humanas (Schmunis, 1997). Em particular, encontram-se as novas fronteiras agrícolas, especialmente a Amazônia, e os perímetros de cidades grandes, tanto na área endêmica como na não endêmica. Isto acontece tanto pelo carreamento passivo de triatomíneos e pelos desbalanceamentos de focos naturais, como pela migração de indivíduos já infectados, aumentando-se o risco de transmissão transfusional, por transplantes e congênita. Uma outra situação emergente, nos espaços urbanos, é a reativação da infecção chagásica já instalada mediante superinfecção de agentes imunodepressores, como o HIV (Dias & Coura, 1997). Todas essas situações pressupõem uma atenção permanente, em forma de VE, priorizando-se, especialmente, os casos humanos e as transfusões de sangue, e, eventualmente, a detecção e controle domiciliar do vetor. Nas áreas de malária, no Brasil, a FNS já envolve os laboratórios específicos que, ao examinarem centenas de milhares de lâminas de pessoas febris, estão atentos para a detecção eventual do T. cruzi circulante, o que tem acontecido e ensejado a investigação do caso por agentes regionais e/ou locais de saúde (Dias, 1991).

 

g) Como enfocar a VE nas formas transfusional e congênita de transmissão?

 

Este é o caso básico para o funcionamento do SUS em seus distintos níveis. Para a transmissão transfusional, os problemas básicos no Brasil são a ampliação para 100% da cobertura à seleção sorológica de doadores e o encaminhamento daqueles infectados à necessária atenção médica e previdenciária. Ambas atividades se coadunam perfeitamente com o funcionamento do SUS e devem estar afetas aos gestores municipal e regional. No caso da via congênita, os modelos de VE idealmente partem do diagnóstico precoce em gestantes, já no pré-natal, com acompanhamento da criança e tratamento específico precoce, quando houver transmissão. Ao revés, num modelo mais simplificado, propõe-se para áreas endêmicas uma sorologia convencional das crianças aos seis meses de vida (detecção de IgG próprio da criança, significando infecção), para tratamento imediato das positivas e atenção médica a suas mães (Dias, 1997). São funções e estratégias também pertinentes à rede básica de saúde e aos correspondentes gestores, aqui estando implícitos tanto a capacitação e a motivação dos profissionais de saúde para o problema quanto a existência e bom funcionamento de laboratórios locais ou regionais.

 

h) Como armar a VE sobre os indivíduos já infectados?

 

Como acima, trata-se basicamente de desenvolver uma estrutura de diagnóstico e tratamento, em complexidade crescente, nas áreas endêmicas. Os principais níveis de entrada serão os bancos de sangue, os inquéritos soroepidemiológicos e a demanda espontânea da população, estes sendo geralmente casos sintomáticos. Como regra básica, admite-se que a maioria dos casos agudos se enquadra bem no tratamento ambulatorial, assim como mais de 85% dos casos crônicos.

 

Investigação necessária

 

A VE em doença de Chagas, embora formatada em seus aspectos essenciais e demonstrada na prática sua viabilidade, ainda carece de aprimoramento em alguns pontos existentes e para enfrentear situações novas ou desconhecidas, requerendo pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Um risco concreto frente aos bons indicadores epidemiológicos conseguidos em áreas bem trabalhadas é o da redução da pesquisa e da capacidade crítica de técnicos e administradores de programas em relação a novas situações e ao resíduo epidemiológico, como aconteceu com a malária em tempos recentes (Dias, 1998). Em doença de Chagas, isso já se faz sentir através da redução substancial de recursos e interesse para a pesquisa, por parte de diferentes agências de financiamento. Não obstante, há importantes necessidades de investigação, especialmente em VE, sentidas tanto nos aspectos operacionais e aplicados como nos mais básicos (principalmente aqueles mais voltados para o diagnóstico, a terapêutica e o comportamento de vetores silvestres e secundários). Como um apêndice a este tópico, a Tabela 4 resume os campos de maior interesse para a investigação em VE, apontados por pesquisadores e técnicos de programa em diversos seminários, publicações e grupos de trabalho (Dias, 1974, 1986, 1997; Rocha-e-Silva, 1979; Souza et al., 1984; Argentina, 1986; Gonzalez et al., 1987; WHO, 1991; Salvatella & Rosa, 1995).

 

 

À guisa de conclusão, dir-se-ia que a VE em doença de Chagas é viável e necessária, mas ainda não está terminada em sua formulação. As principais perspectivas residem hoje na inserção dessa vigilância nos sistemas locais e regionais de saúde, amparada por efetiva participação comunitária. Os maiores problemas residem especialmente na sua continuidade, desde que, com o tempo e a esperada redução dos índices de transmissão, diminuem o interesse e a prioridade. Por outro lado, a implantação e o bom funcionamento dos sistemas de saúde em áreas deprimidas são complexos e a população tende a ficar desamparada com o desmonte das tradicionais estruturas mais centralizadas que se encarregavam do controle da doença de Chagas. O impasse está criado, prevendo-se recrudescência do triatomismo domiciliar e da incidência da doença nas áreas mais pobres e menos organizadas. Por tudo isso, cabem ainda várias investigações, ao lado de um esforço adicional pela reorganização da vigilância possível, em cada país afetado.

 

 

Referências

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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