Carlos Machado de Freitas

Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

 

Dos limites e das possibilidades das micronegociações para o replanejamento do trabalho

 

 

Para debater o artigo de Leny Sato, tomo como referência inicial as palavras do samurai Myiamoto, para quem o fogo, grande ou pequeno, possui sempre a extraordinária força de transformação. Atualizando para nossos dias seu enunciado cunhado no século XVII, e tendo como metáfora um dos grandes problemas atuais, os perigos associados à queima de resíduos químicos, podemos considerar que embora o fogo possua sempre a capacidade de transformação, seus subprodutos podem, dependendo da combinação que envolve as características dos produtos em questão e o grau da temperatura do fogo empregado, ser tão ou mais perigosos do que aqueles que se pretendia eliminar, com conseqüências que se estenderão no espaço e no tempo.

Nos dias atuais, de quebra da Consolidação das Leis do Trabalho e em que a palavra chave é negociação, cabe trazer mais elementos para a reflexão de situações como as descritas no artigo em questão. Nestes dias, no âmbito mais global, verifica-se uma contração da classe trabalhadora e industrial, com sua conseqüente fragmentação, havendo o declínio de sindicatos de categorias inteiras, assim como das negociações centralizadas. O resultado disso é uma ampliação das negociações localizadas nas fábricas, com uma força de trabalho dividida entre trabalhadores do núcleo e periferia, sem o compromisso da luta corporativa e o conseqüente esfacelamento dos benefícios sociais padronizados (Kumar, 1997).

Neste cenário global ocorrem múltiplas e complexas interações, visíveis e invisíveis, que se manifestam no dia-a-dia dos locais de trabalho, nos obrigando sempre a olhar e perguntar sobre as possibilidades e os limites das negociações que aí possam ocorrer. Negociações que envolvem uma multiplicidade de formas, entre estas, aquelas que nas palavras de Sato, são "...micronegociações (...) [conduzidas por pessoas comuns] configurando-se como processos de replanejamento negociados (...), [que] ocorrem independente da ação política coletiva que pressupunha uma estratégia articulada...".

Essas micronegociações, podem simplesmente manifestar a continuidade de tantas outras que sempre ocorreram nos locais de trabalho, desde os primórdios da industrialização, mas que nenhuma ou pouca atenção receberam dos pesquisadores da área. Podem também manifestar uma tendência crescente para "novas formas de negociação", que resultam menos de ganhos dos trabalhadores, mas de perdas, dado o cenário de fragmentação e declínio de sindicatos e de outras estratégias articuladas. Nesse caso, e adotando essa perspectiva, essas micronegociações podem estar simplesmente manifestando a tendência atual de transformar as necessidades coletivas em atos individuais ou mesmo de pequenos grupos. Fragmentam-se ainda mais as ações coletivas e articuladas, como as tradicionalmente conduzidas por sindicatos representantes de toda uma categoria e, considerando a perspectiva de Bauman (1999), para quem o mercado abomina a autogestão e a autonomia, só se aceitam as reivindicações que beneficiem a lógica do mercado. Nas palavras de Bauman (1999:291), se "...os padrões de mercado não são atingidos, o melhor que se pode esperar é a indiferença do mercado. Na pior das hipóteses, deve-se contar com a hostilidade do mercado...". Nesses cenários, a ampliação das micronegociações representaria muito mais perdas para os trabalhadores do que ganhos, já que replanejamentos seriam aceitos, desde que, na lógica do mercado, possam representar aspectos como maior lucro, melhoria do produto, redução do tempo de produção, sem que isso represente maior custo em termos de redução da jornada, proteções coletivas e individuais, maior autonomia dos trabalhadores para decidir sobre suas atividades, proteção social, etc.

Por outro lado, essas micronegociações podem representar o aparecimento ou mesmo ampliação de formas de ação política diferentes daquelas que tradicionalmente concebemos. Trata-se da subpolítica que, de acordo com Beck (1997:35), distingui-se da política "...porque (...) permite que os agentes externos ao sistema político ou corporativo apareçam no cenário do planejamento social (este grupo inclui os grupos profissionais e ocupacionais, a intelligentsia técnica das fábricas, as instituições e o gerenciamento de pesquisa, trabalhadores especializados, iniciativas dos cidadãos, a esfera pública e assim por diante), e, em segundo porque não somente os agentes sociais e coletivos, mas também os indivíduos, competem com este último e um com o outro pelo poder de conformação emergente do político". Para Beck (1997), a subpolítica não pode ser vista como representando somente a perda de poder de negociação ou minimização da política. Mais do que isso, significa moldar a sociedade de baixo para cima, oferecendo oportunidades crescentes de que grupos até então não envolvidos na tecnificação essencial no processo industrial, entre estes, os trabalhadores no local de trabalho, tenham uma voz e uma participação no arranjo da sociedade. Nessa perspectiva, a micronegociação pode representar a constituição de formas alternativas de ação política dos trabalhadores, tendo implicações não só nos seus locais de trabalho, mas na sociedade como um todo, ainda que de forma diferente da que concebemos até então. Se é isso, cabem algumas perguntas que o próprio Beck (1997), formula e que devem fazer parte dos debates sobre micronegociações e replanejamento do trabalho, entendidos como inseridos na subpolítica. Entre essas: Quais são suas fontes de poder, suas possibilidades de resistência e seu potencial para a ação estratégica? Estão emergindo novas formas e fóruns organizacionais de debate negociação? Implicam em conflitos com relação às formas tradicionais de se fazer política, como os sindicatos, por exemplo? Qual o nível e a qualidade de organização possuem os grupos envolvidos nessas micronegociações?

 

BAUMAN, Z., 1998. Globalização: As Conseqüências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

BECK, U., 1997. A reinvenção da política: Rumo a uma Teoria da Modernização Reflexiva. In: Modernização Reflexiva - Política, Tradição e Estética na Ordem Social Moderna (U. Beck, A. Giddens & S. Lash, org.), pp. 11-71, São Paulo: Editora Unesp.

KUMAR, K., 1997. Da Sociedade Pós-Industrial à Sociedade Pós-Moderna - Novas Teorias Sobre o Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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