DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Maria Andréa Loyola

 

Debate on the paper by Maria Andréa Loyola

 

 

Ana Cristina Santos

Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. E-mail cristina@ces.uc.pt

 

 

Entre natureza e (re)construção: da sexualidade reprodutiva às sexualidades emancipatórias

O artigo de Maria Andréa Loyola Sexualidade e Medicina: A Revolução do Século XX cruza dois dos mais estimulantes indicadores de transformação social dos dois últimos séculos, assumindo contornos particularmente interessantes embora não necessariamente exaustivos. A minha resposta ao desafio formulado por Cadernos de Saúde Pública para participar neste debate, foi formulada dentro do quadro teórico-empírico a que recorro no meu trabalho em torno das sexualidades ­ com particular incidência para as questões relacionadas com a orientação sexual (Santos, 2002, 2003; Santos & Fontes, 2001) ­, sendo desde sempre assumido o caráter construtivista da minha reflexão. Nesse sentido, o presente comentário crítico não visa a incidir de modo holista sobre os diversos aspectos apontados por Loyola, mas principalmente sobre a problematização proposta em torno dos conceitos sexualidade e reprodução.

Vivemos num período de globalizações diversas em que as características do que tem sido designado por pós-modernidade se tornaram mais claras e as suas conseqüências se radicalizaram e difundiram amplamente. A transformação da sexualidade num ponto relevante para a promoção da identidade veio afirmar a crescente importância de áreas até agora protegidas pela barreira do privado, tais como o gênero, o corpo e a orientação sexual. Tais fatores representaram alterações na vida quotidiana, conduzindo, por exemplo, à emergência de novos laços de segurança, com a destruição dos antigos, baseados na tradição, no parentesco e nas relações de sociabilidade local. A confiança transformou-se, assim, em algo a concretizar, cuja construção "significa um processo mútuo de autodesvendamento" (Giddens, 1996:85), no qual a sexualidade constitui um terreno privilegiado de criação e descoberta. Este contexto transformativo e fluído testemunha a emergência do que Giddens (1995) designa por sexualidade plástica, isto é, a sexualidade convertida em arena de experimentação cujo objetivo primordial é a obtenção de prazer. A nova sexualidade emergente ­ decorrente em grande medida do aparecimento dos meios contraceptivos modernos ­ torna independentes as variáveis sexualidade e reprodução, e transforma o plural "sexualidades" na forma mais adequada de designar a crescente diversidade de modelos possíveis. Passamos, assim, de uma sexualidade compulsivamente associada à reprodução para uma (muitas) sexualidade(s) emancipada(s) e emancipatória(s), precisamente porque mais dependente(s) da nossa capacidade criativa do que da nossa herança natural. Os reflexos destas transformações traduzem-se em nível da identidade pessoal, transformando-se, ela própria, num contexto de múltipla escolha e num projeto reflexivo que consiste numa narrativa sobre nós mesmos, continuamente reconstruída e cada vez mais emancipada relativamente aos desígnios alegadamente imperativos da natureza. Nesse sentido, as identidades sexuais, elemento constitutivo da auto-identidade, são ficções construídas mas necessárias, como bem formulou Jeffrey Weeks (1995). Por tudo isso, gostaria de ver aprofundado o argumento da autora quando defende que quanto mais a sexualidade se autonomiza em relação à reprodução, aos gêneros e aos afetos, mais ela se volta em direção à natureza.

A orientação sexual assume-se central na formação de uma identidade pessoal, face à pluralização dos contextos de ação, das fontes de autoridade e da diversidade de escolhas possíveis, nas quais o próprio corpo está incluído. A multiplicidade de caminhos alternativos à norma exige uma redefinição dos valores e princípios regentes da vida quotidiana. E é neste processo de redefinição ideológica que o contributo da medicina assume um particular relevo na reflexão da autora. Maria Andréa Loyola levanta algumas das inquietações e perplexidades suscitadas por um recente protagonismo da biologia e da medicina na esfera das sexualidades, resultando numa maior incidência de pesquisas que, não obstante o seu caráter científico, freqüentemente ignoram, a seu ver, alguns importantes fatores sociais subjacentes às escolhas e às transformações aparentemente livres e individuais. Entre esses fatores, a autora destaca o poder de imposição da agenda da biomedicina sobre as escolhas individuais, fazendo coincidir os direitos sexuais e reprodutivos também reivindicados pelos movimentos lesbigays com as exigências da experimentação biomédica.

Assumido pela autora foi o objetivo de enriquecer o objeto de estudo por meio de novas hipóteses. Parece-me que uma das virtudes da sua reflexão foi a sua proposta de trabalho em torno dos contornos contemporâneos do poder discursivo dos(as) sexólogos(as), revestido de eficácia justamente porque sustentado pelas novas tecnologias de informação, responsáveis, num primeiro momento, pela divulgação de novas possibilidades no campo da medicina e, num segundo, pelo desencadeamento do desejo em experimentar pessoalmente tais avanços. Interessante seria, seguramente, aplicar tal hipótese de trabalho ao campo da transsexualidade e do transgenderismo. No entanto, gostaria de ver mais detalhada a utilização da homossexualidade enquanto ilustração da relação de poder desigual entre a medicina e a sexualidade, até porque as evidências comprovam que, para uma decisão no sentido de constituir uma unidade familiar ­ incluindo ou não o elemento reprodução ­, contribui uma panóplia de fatores que extravasa a influência exercida pelas novas possibilidades do campo da medicina. Por outras palavras, a decisão objetiva de constituir família ­ dentro da variedade de modelos familiares possíveis ­ não mantém uma relação direta de dependência ou exclusividade com a oferta biomédica. E, no sentido estrito da relação entre medicina, novos modelos familiares e sexualidades, a orientação sexual não tem de constituir necessariamente um elemento de diferenciação.

Resta-me agradecer a Maria Andréa Loyola a oportunidade que me ofereceu de repensar a temática considerada, bem como o estímulo que este seu trabalho proporciona a quem se interessa pela pesquisa das sexualidades no âmbito das ciências sociais.

 

GIDDENS, A., 1995. Transformações da Intimidade ­ Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. Oeiras: Celta.

GIDDENS, A., 1996. As Conseqüências da Modernidade. Oeiras: Celta.

SANTOS, A. C., 2002. Sexualidades politizadas: Ativismo nas áreas da AIDS e da orientação sexual em Portugal. Cadernos de Saúde Pública, 18:595-611.

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WEEKS, J., 1995. Invented Moralities ­ Sexual Values in the Age of Uncertainty. Cambridge: Polity Press.

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