DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves

 

Debate on the paper by Delma Pessanha Neves

 

 

Cecília Loreto Mariz

Departamento de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. cemariz@alternex.com.br

 

 

O artigo Alcoolismo: Acusação ou Diagnóstico?, de Delma Pessanha Neves vem preencher uma lacuna não apenas na antropologia brasileira, mas em nossas ciências sociais em geral. Neves tem toda razão quando observa que em nossa antropologia, e eu diria o mesmo para a sociologia, o alcoolismo tem sido analisado apenas de forma tangencial. Há de fato uma carência de reflexões sobre o tema. Mas não é somente por suprir essa carência que esse artigo é muito bem vindo. É bem vindo também pela ampla revisão da literatura que apresenta, e ainda por apontar as contribuições dos antropólogos aos estudos sobre o tema, refletindo sobre as dificuldades desses estudos e as possíveis formas de superar tais dificuldades por intermédio do modo pelo qual se constrói o "consumo de bebidas alcoólicas" como objeto sócio-antropológico.

Um argumento central desse artigo é que, nas ciências sociais, o alcoolismo em si não pode ser o objeto de pesquisa, mas o hábito de beber em geral ­ "prescrito e proscrito". Não se pode entender o alcoolismo enquanto problema social sem entender o hábito de beber socialmente aceito, e tampouco sem compreender toda a cultura em torno do consumo de etílicos. Muito apropriadamente, Neves destaca que "as transgressões não podem ser entendidas se apartadas das prescrições exaltadas" (p. 8), salientando que a necessidade de analisar o hábito de beber é legítimo e aceito em cada sociedade.

No início do texto, Neves (p. 8) comenta que "o interesse da pesquisa sobre a ingestão de bebidas alcoólicas tem sido mais concentrado sobre a embriaguez do que o beber e o beber, mais como desvio individual do que comportamento social", mas não deixa claro a que pesquisa está se referindo aí. Com certeza não é a antropológica, pois em todo o resto do seu texto mostra como no caso da antropologia isso não ocorre. Pelo contrário, na antropologia, como também afirmaram outros pesquisadores citados no texto (como por exemplo, Mary Douglas), negligenciou-se o estudo do consumo socialmente inadequado de álcool.

Essa negligência, Neves explica, foi fruto de uma preocupação em se evitar o etnocentrismo. Argumenta que sendo a luta antiálcool muito forte entre grupos religiosos e missionários, a antropologia evitava se contagiar com esse tipo de discursos ideológicos. Por outro lado, a autora também aponta que embora fosse freqüente a embriaguez, o alcoolismo, como um consumo socialmente inadequado de álcool, não existia nas chamadas "sociedades simples" estudadas pelos antropólogos. Os antropólogos estudavam assim, como a ingestão do álcool era organizada e tida como legítima nos diferentes contextos sociais ­ e essa tem sido uma grande contribuição. Mas a crescente proporção de membros das chamadas "sociedades simples" que se tornaram bebedores problemas, desviando de seus padrões de consumo tradicionalmente aceitos, quando entravam em contato com a sociedade industrial moderna, leva a antropologia ao estudo do alcoolismo em geral.

No entanto, um problema se coloca para antropologia: como pesquisar o alcoolismo entre sujeitos que não se percebem nem se definem como alcoólatras? Ao chamar essas pessoas de alcoólatras ou alcoólicas, a antropologia estaria as "acusando" ou as "diagnosticando", abandonando assim a perspectiva especificamente antropológica? Neves (p. 12) argumenta "a entrevista com os heteroacusados de alcoolismo ou com os socialmente reconhecidos bêbados coloca o antropólogo diante da negação do ofício. Ele mesmo rotularia aquele com base no qual deseja compreender o processo de construção da acusação e do descrédito". A solução que autora aponta para o problema acima é que se considerem alcoólatras ou alcoólicos apenas os que se definem como tal, ou seja, aqueles que se encontram em terapias ou em movimentos do tipo dos Alcoólicos Anônimos. Por esse motivo, o bar não seria o melhor lugar para estudar o alcoolismo.

Pergunto se não estaria esse tipo de preocupação, em não definir quem é alcoólatra e estudar apenas a situação de tratamento, deixando de lado o problema mais amplo dos que convivem com o bebedor desviante e sofrem junto com ele as conseqüências sociais de seu desvio ­ ou seja, os familiares e amigos do desviante? Por que a antropologia não poderia adotar categorias sociais nativas entre aqueles para identificar os desviantes, mesmo que essas categorias fossem rejeitadas pelos desviantes? Em geral as categorias de acusação são rejeitadas pelos acusados.

Acredito que faz parte do estudo do alcoolismo e consumo da bebida analisar também os grupos sociais que fazem parte do universo do consumidor de álcool. O estudo sobre o alcoolismo não se refere apenas à identidade do alcoólatra, mas a todo o contexto social que o envolve, seja o bar, o trabalho, a família. Não estaria essa preocupação com a identidade do alcoólatra esquecendo dos problemas de interação social? Não seria uma abordagem reducionista? Se há acusações socialmente elaboradas pelos que estão em volta do sujeito, que desobedece as regras socialmente definidas de beber, por que elas não podem ser estudadas como categorias sociais pela antropologia? Acredito que se pode estudar os que usam essas categorias, como eles a constróem, quando as adotam. Enfim, por que a categoria alcoólatra teria de ser assumida pelo sujeito para ser estudada pela antropologia?

Como fica claro pelos comentários e questões acima, o texto de Neves é muito rico, instigante, traz questões e faz pensar.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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