DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves

 

Debate on the paper by Delma Pessanha Neves

 

 

Florence Kerr-Corrêa

Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual de São Paulo Julio Mesquita Filho, Botucatu, Brasil. fcorrea@fmb.unesp.br

 

 

Como qualquer outro comportamento humano, o uso de álcool, incluindo o alcoolismo, pode ser visto de vários pontos de vista: médico, antropológico, religioso, moral ou sociológico, entre outros. O termo alcoólatra foi abandonado pela maioria dos médicos, pois a doença correspondente teria de ser alcoolatria, adoração do álcool. A Associação Brasileira de Estudos do Álcool e de Outras Drogas recomenda o termo alcoolismo para a doença e alcoolista para o dependente.

Conforme destaca a autora, foi no século XIX, com os trabalhos de Huss, que os quadros associados ao abuso do álcool foram descritos e sistematizados. Não que não se soubesse dos malefícios que o álcool pudesse causar, mas por causa do preço, seu uso era restrito a ocasiões festivas ou às camadas da população com alto poder aquisitivo. Além disso, a qualidade das bebidas, de um modo geral, era tão ruim, que Grimod de la Reynière 1, em seu manual dos anfitriões, fala da praxe da diluição do vinho com água, ao gosto de cada convidado, pois o vinho de boa qualidade, passível de ser tomado "puro", seria muito caro para recepções. A democratização do acesso às bebidas deu-se com a industrialização, que melhorou a sua qualidade, tornou-as mais baratas e possibilitou a produção, particularmente de destilados, em grande escala.

No artigo, Neves, apesar de falar do uso de álcool, não discorre sobre alguns dos achados epidemiológicos mais interessantes na área e que mereceriam uma abordagem antropológica mais consistente, pois mostram a diferença de representação que o uso de bebidas alcoólicas tem para os gêneros 2. Assim, como bem demonstra a metanálise de Fillmore et al. 3, em todas as culturas ocidentais onde o álcool é a droga legal (para maiores de 18 anos) mais utilizada pela maioria, inclusive no Brasil 4,5, homens bebem mais que mulheres, e jovens mais que idosos. Wilsnack & Wilsnack 6,7 destacam esse padrão universal e recorrente em diferentes sociedades e culturas, considerando quantidade e freqüência, chamando a atenção para o fato de que, apesar das mudanças sociais e oportunidades educacionais e de trabalho, essa diferença entre os sexos permanece.

Na área da saúde, nos últimos 15 anos, o diagnóstico deixou de ser feito apenas naqueles casos em que, comprovadamente, se pode falar de uma doença cerebral (dependência do álcool) ­ casos estes nos quais há um conjunto de alterações cognitivas, comportamentais e fisiológicas comprovadas 8. Ampliaram-se as possibilidades de diagnóstico dos anos 80 para cá, com o advento da classificação americana de doenças mentais, o DSM-III 9. Passou-se a fazer o diagnóstico de uso abusivo (ou nocivo), levando-se em conta os problemas que ocorrem na esfera familiar, jurídica, social, ou mesmo clínica, porém sem a dependência com sua tríade necessária de tolerância, dependência (física e psíquica) e abstinência. Esses casos são pelo menos cinco vezes mais freqüentes que os de dependência 5,10. A isso se junta certo padrão de uso de bebidas alcoólicas chamado de "beber tomando porre" (o binge drinking da literatura inglesa), responsável por mais mortes que a dependência do álcool, seja por dirigir embriagado, seja por comportamentos de risco, levando à violência, homicídios e traumatismos, constituindo-se, ainda, na principal causa de morte entre jovens, no Brasil. Tem-se aqui, o paradoxo da prevenção: casos mais leves e que nem são de doença tornam-se os responsáveis pela maioria dos problemas 10,11.

Para quem trabalha na área de prevenção, os problemas são ainda maiores, e preconceitos intervêm claramente. Se, em muitos países, principalmente mediterrâneos (wet cultures), o álcool é visto como alimento, em outros (no Brasil e em outras dry cultures), sair para beber significa sair para embebedar-se. Nestes, raramente se aprende a beber em casa, com a refeição. No entanto, em muitas línguas, a bebida significa o elixir da vida ("eau de vie", whiskey) ou mesmo algo que tem a ver com a alma (spirit para destilados, em inglês). Complicam ainda mais as coisas, os achados de pesquisas de que o álcool pode prevenir problemas cardíacos, se usado com moderação.

Mas o que é moderação? Interpretando pesquisas semelhantes, americanos indicam quantidades de uso consideradas de pouco risco muito menores que os australianos, para quem 28 drinques por semana para homens e 14 por semana para mulheres seriam de "pouco risco" 12; nos Estados Unidos, recomendam-se 14 drinques por semana para homens e 7 por semana para mulheres 13. Assim, o artigo poderia (e deveria) ser aumentado, para abordar outros aspectos ainda tão intrigantes do uso das bebidas. Concluir-se-ia, então, que o uso de álcool, bem como o alcoolismo, podem ser vistos como doença, vício, xingo ou carma ­ dependendo do ponto de vista do interlocutor.

 

1. Reynière G. Manual dos anfitriões. São Paulo: Editora Degustar; 2002.

2. Simão MO, Kerr-Corrêa F, Dalben I, Smaira SI. Mulheres e homens alcoolistas: um estudo comparativo de fatores sociais, familiares e de evolução. Rev Bras Psiquiatr 2002; 24:121-9.

3. Fillmore KM, Hartka E, Johnstone BM, Leino MV, Motoyoshi M, Temple MT. A meta-analysis of life-course variation in drinking. Br J Addict 1991; 86:1221-68.

4. Kerr-Corrêa F, Dalben I, Trinca L, Simão MO, Mattos PF, Cerqueira ATAR, et al. I Levantamento do uso de álcool e de drogas e das condições gerais dos estudantes da UNESP (1998). São Paulo: Fundação Vunesp; 2001.

5. Carlini EA, Galduróz JCF, Noto AR, Nappo SA. I Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil-2001. São Paulo: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas/Universidade Federal de São Paulo/Secretaria Nacional Antidrogas; 2002.

6. Wilsnack R, Wilsnack SC. Gender and alcohol individual and social perspectives. New Jersey: Rutgers Center of Alcohol Studies; 1997.

7. Wilsnack SC, Wilsnack RW. International gender and alcohol research: recent findings and future directions. Alcohol Res Health 2002; 26:245-50.

8. Cami J, Farré M. Mechanisms of disease: drug addiction. N Engl J Med 2003; 349:975-86.

9. American Psychological Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorder (DSM-III). 3rd Ed. Washington DC: APA Press; 1980.

10. Babor TF, Higgins-Bibble JC, Saundres JB, Monteiro MG. AUDIT: teste para identificação de problemas relacionados ao uso de álcool ­ roteiro para uso em atenção primária. Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; 2003.

11. Kreitman N. Alcohol consumption and the prevention paradox. Br J Addict 1986; 81:353-63.

12. National Health and Medical Research Council. Australian alcohol guidelines: health risks and benefits. Canberra: National Health and Medical Research Council/AusInfo; 2001.

13. National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism. The physician's guide to helping patients with alcohol problems. Bethesda: National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism; 1995.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br