CARTAS LETTERS

 

Os verdadeiros desafios da saúde global

 

The true challenges of global health

 

 

Nelson GouveiaI; Renato Rocha LieberII; Lia Giraldo da Silva AugustoIII

IDepartamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
IIDepartamento de Produção, Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá, Universidade Estadual Paulista, Guaratinguetá, Brasil
IIICentro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


 

 

Sr. Editor,

Em janeiro de 2003, Bill Gates, presidente da Microsoft®, anunciou que estava destinando US$200 milhões para pesquisas sobre doenças que afetam desproporcionalmente os países em desenvolvimento. Segundo ele, o objetivo seria direcionar recursos para pesquisas que busquem transpor obstáculos importantes (denominados grandes desafios) para o progresso mais rápido contra essas doenças, que de maneira geral recebem menos atenção que outros males que afetam os países mais ricos.

Em outubro do ano passado, em artigo na revista Science 1, a Fundação Bill and Melinda Gates, em consórcio com o National Institute of Health dos Estados Unidos, anunciou a primeira lista dos chamados Grandes Desafios Globais em Saúde, para que propostas de projetos de pesquisa sejam encaminhados para avaliação e, se for o caso, para financiamento. O artigo da revista Science explicava ainda como foi realizado todo o processo de seleção desses "grandes desafios".

Todavia, ficamos preocupados com o enfoque de alguns dos desafios apresentados, devido às implicações que as pesquisas induzidas por estes podem apresentar para a saúde e o meio ambiente. Em nosso modo de ver, a anunciada intenção de financiar pesquisas que objetivam o controle de populações de vetores por meio de estratégias genéticas ou químicas, que debilitem ou incapacitem populações de insetos transmissores de doenças, carece de uma preocupação explícita e detalhada, feita sob uma perspectiva ética e eco-sociossanitária.

Apesar de haver menção de que se desejam estratégias (tanto químicas quanto genéticas) que não tenham efeitos adversos sobre o meio ambiente, não há precisão, nem consenso entre pesquisadores das mais variadas áreas, sob o que consistiria o risco, a ausência de risco, ou mesmo o que seria um risco ambiental aceitável, quando, por exemplo, são introduzidos organismos geneticamente modificados ou produtos químicos no ambiente, cujos efeitos podem ser potencialmente danosos ou quando ainda não há condições de provar que são seguros do ponto de vista eco-sociossanitário.

Iniciativas como esta, que oferecem milhões de dólares para o desenvolvimento de pesquisas, podem gerar, por exemplo, a perspectiva de desenvolvimento de novos produtos químicos a serem utilizados no controle de vetores, perpetuando um modelo de controle de endemias vetoriais que vem sendo utilizado há muito tempo, mas cujos resultados não são os mais satisfatórios por não controlarem efetivamente a doença, ou por acarretarem novos riscos para a saúde humana e ao ecossistema.

Existem alternativas, ainda pouco priorizadas pelos órgãos governamentais, que incluem um manejo ambiental integrado e ecologicamente sustentável para doenças transmitidas por vetores. Deve-se estimular estratégias que priorizem o controle integrado de vetores, utilizando recursos da própria natureza e das redes sociohumanas, sociotécnicas e socioinstitucionais, que incluam ainda uma perspectiva de intervenção de saneamento e de manejo sustentável do meio ambiente, de educação e comunicação social, que podem orientar ações muito mais efetivas e promotoras da qualidade de vida das populações vulneráveis.

As relações entre o processo saúde-doença e o meio ambiente são de natureza complexa. Ao reforçar, mesmo que indiretamente, a idéia de que a erradicação de determinadas espécies pode resolver problemas de saúde, comete-se um grande equívoco de estratégia. De fato, esses "desafios globais" apenas repetem velhas estratégias já demonstradas como pouco efetivas, pois invariavelmente terminam por reduzir a complexidade dos fenômenos socioambientais. Ao final do século XX, já estava claro para a ciência que iniciativas que abarcam apenas uma dimensão do fenômeno, sem atentar para as inter-relações dos múltiplos elementos e de suas condições de contexto, ou são engodos destinados ao fracasso ou visam a outros interesses que não os essencialmente de proteção da qualidade da vida e do meio ambiente. E, em muitos casos, transformam questões que são essencialmente sociais e políticas em questões puramente técnicas, inventando novas formas de exploração da natureza que retornam na forma de novos riscos para a saúde humana, como, por exemplo, afetando os sistemas endocrinológico, neurológico, hematológico etc.

As questões de saúde relacionadas com endemias vetoriais devem ser enfrentadas sem que se perca de vista suas dimensões históricas, culturais, sociais, biológicas e ecológicas. Os vetores não podem ser tratados com estratégias de guerra, como até agora vem sendo feito, como se fossem inimigos a serem dizimados. De um modo geral, os desequilíbrios ecológicos, além da falta de controle sanitário e epidemiológico, é que fazem com que os vetores se infectem e tenham condições de transmitir as doenças, sendo todo esse processo decorrência da ação humana no ambiente. Os seres vivos de um modo geral, e os vetores em particular, têm estratégias de sobrevivência em função de sua adaptação evolutiva de milhões de anos, que deve ser levada em consideração.

O mesmo cuidado deve ser dado à questão da transgenia presente no desafio de propor estratégias genéticas ligadas a vetores. A polêmica em torno da criação e manipulação de organismos geneticamente modificados (OGMs) ainda é muito grande. Haja a vista a discussão recente em torno da soja transgênica, um dos OGMs já amplamente comercializados. Para esses organismos, os impactos ambientais nos mais diversos níveis, da produção ao consumo, ainda não estão totalmente delimitados. Nestes casos, assim como para qualquer nova tecnologia, é preciso que se disponha de avaliações do quão segura essa nova tecnologia é, ou se os possíveis problemas por ela gerados são contrabalançados pelos potenciais benefícios para a população. Estudos experimentais, em ambientes controlados, sobre os potenciais efeitos tóxicos desses organismos para os seres vivos devem ser priorizados.

É preciso ter em mente, que a oportunidade de tornar a vida na biosfera do planeta Terra favorável à vida é um compromisso ético da ciência, que sob o prisma de um novo paradigma cientifico, onde a lógica sistêmica de que tudo está ligado a tudo, e a tudo influencia, é o seu eixo central na busca de alternativas para o desenvolvimento humano, de perspectiva sustentável e que inclui como estratégias fundamentais para o seu alcance a redução das desigualdades sociais e o equilíbrio dos ecossistemas.

 

 

Endereço para correspondência
N. Gouveia
Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo
Av. Dr. Arnaldo 455, São Paulo, SP 01246-903, Brasil
ngouveia@usp.br  

Recebido em 11/Mar/2004
Aprovado em 29/Abr/2004

 

 

1. Varmus H, Klausner R, Zerhouni E, Acharya T, Daar AS, Singer PA. Grand challenges in global health. Science 2003; 302:398-9.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br