DEBATE DEBATE

 

Os autores respondem

 

The authors reply

 

Como equacionar a desejável frugalidade e a necessária proteção na saúde do idoso?

 

 

Carlos Dimas Martins Ribeiro; Fermin Roland Schramm

 

 

Inicialmente, gostaríamos de agradecer as contribuições e os questionamentos dos diversos autores que comentaram o nosso artigo, bem como a oportunidade de debatê-lo, propiciada por Cadernos de Saúde Pública. Aproveitando-nos das duas críticas formuladas por Vita, em seu comentário, podemos reduzir o conjunto desses questionamentos a dois principais: (1) Quais as posições substantivas que pretendemos defender? e (2) Como conectamos estas posições à concepção de Rawls? Começaremos pela primeira questão.

Como salienta Kottow em seu comentário, em países em desenvolvimento, como o Brasil, observa-se um desafiante contraste no campo da alocação dos recursos de atenção à saúde. Por um lado, uma imensa desigualdade entre os grupos e indivíduos no acesso aos bens e serviços, em particular a atenção sanitária, com uma grande massa de pessoas sem as mínimas condições de existência. Por outro, os impactos sociais e econômicos de uma medicina desiderativa que corrói os limites entre a satisfação das necessidades sanitárias e a mera satisfação dos desejos, numa perspectiva do progresso médico de aperfeiçoamento biológico não terapêutico que visa a saúde perfeita e o prolongamento infinito da vida humana, e busca a satisfação indefinida dos desejos individuais 1. Um desses impactos é que o acesso aos serviços de alto custo torna-se privilégio de uma minoria, ampliando-se o fosso entre os miseráveis e aqueles que podem usufruir desses progressos para dar conta de suas necessidades, o que implicaria - de acordo com a sugestão de Veras - substituir o paradigma biomédico e "das máquinas" por outro, "mais contemporâneo" e que "tenha em foco a tecnologia do conhecimento e da informação" pertinente para dar conta das doenças crônicas como aquelas que acometem prevalentemente os idosos.

Neste contexto, os cidadãos, os gestores e os profissionais de saúde envolvidos na alocação dos recursos sanitários vivem complexos conflitos morais na distribuição de recursos cada vez mais insuficientes em virtude das restrições orçamentárias, da priorização de necessidades concorrentes, legítimas ou não, ou da apropriação privada dos bens públicos, quando sabemos, por exemplo, que recursos que deveriam ser alocados ao sistema de saúde são desviados para outros fins mais "interessantes" do ponto de vista de ganhos eleitoreiros etc. Em suma, para superar os conflitos morais relativos à alocação dos recursos sanitários, não basta ampliar esses recursos nem exercer um controle efetivo do seu uso público e uma distribuição eficiente dos mesmos, embora estes sejam desafios importantíssimos, que devemos perseguir com muita determinação.

Além disso, é necessário, como salienta Callahan 2, constituir um novo modo de vida, uma nova forma de lidar com o corpo, a saúde, a doença e a morte, que incorpore novos valores para regular as instituições de atenção à saúde, aceitando-se viver dentro de determinados limites, seja em relação à qualidade de vida que desejamos perseguir, ou em relação à duração da vida que podemos razoavelmente almejar, limites esses que não precisam ser vistos como a-históricos e descontextualizados. Desta forma, como assinalam Diniz & Medeiros em seu comentário, trata-se da difícil questão de qual qualidade da vida humana o sistema de saúde deve proteger e que seja consensualmente aceitável pelas pessoas razoáveis.

Propõem-se, então, uma frugalidade consensualmente aceitável para todas as pessoas razoáveis, nas várias etapas da vida, no sentido de que - como salienta Vita em seu comentário - nós temos de ajustar nossas expectativas "aquilo que razoavelmente podemos esperar de instituições que devem distribuir recursos escassos de forma eqüitativa", e não uma frugalidade focalizada exclusivamente no idoso, como crítica Kottow em seu comentário, referindo-se à abordagem de Callahan como utilitarista. Não nos parece ser este o principal problema desta abordagem, já que esse autor propõe um novo modo de vida no qual possamos viver dentro de determinados limites, durante todas as etapas de nossa vida. O problema principal da perspectiva de Callahan é recorrer a um fraco princípio da solidariedade para regular a distribuição dos recursos sanitários públicos, como salientam Schramm & Kottow 3.

Essa frugalidade assume certas características, em cada momento de nossa existência, sendo o artigo uma reflexão sobre a mesma na velhice. Nesta perspectiva, os custos para estender ilimitadamente a vida ou ampliá-la acima de determinada idade considerada não razoável, devem ser assumidos por aqueles que, eventualmente, defendem a busca da "imortalidade" corporal, como parece estar sendo vislumbrada pelo recurso sem limites às mais avançadas biotecnologias. Talvez seja útil pensar essa perspectiva como um "gosto caro", mas, como ressalta Vita, nós não adotamos esta noção. De qualquer maneira, o conceito de frugalidade adotado por nós se aplica essencialmente a desejos pessoais que podem ser considerados não razoáveis dentro de uma inevitável cultura dos limites preocupada, também, com uma alocação eqüitativa dos recursos efetivamente disponíveis num momento histórico determinado. Neste sentido, a palavra frugalidade remete à etimologia latina da palavra frugalitas, que tem, dentre outros, o sentido de "moderação" e "temperança". Mas, dito isso, falta ainda qualificar melhor o conceito de "necessidade" que utilizamos e que não é sinônimo de desejo, visto que uma necessidade é em princípio objetivável - é o que pretendem fazer os vários tipos de indicadores lembrados por Kottow - e, ademais, pode ser entendida como uma "limitação aos desejos e às ações humanas" 4 (p. 678). Esta distinção nos parece importante, pois se aceitarmos a aplicação da frugalidade à satisfação dos desejos individuais, ou seja, que os indivíduos sejam razoáveis em seus pedidos, os mesmos indivíduos terão ceteris paribus o direito de exigir que o sistema de saúde que pretenda ser moralmente legítimo e pragmaticamente efetivo proteja suas necessidades de saúde.

Estas são as nossas posições substantivas. Passemos, agora, para a segunda questão: como conectamos estas posições à concepção de Rawls? Para respondê-la, nos permitam lançar mão de uma distinção, que não utilizamos no artigo, mas que, após os questionamentos dos autores, nos pareceu fundamental para esclarecer o uso que fizemos do princípio da diferença; obviamente que o próprio fato de introduzir essa distinção já denota algumas lacunas e futuros desdobramentos teóricos de nosso trabalho.

Conforme caracterizam Schramm & Kottow 3, uma bioética de proteção se expressa na obrigação de cobertura das necessidades essenciais dos outros, sendo essas necessidades "aquelas que devem ser satisfeitas para que o afetado possa atender a outras necessidades" 3 (p. 953). Nesta perspectiva, um Estado legítimo deve assumir a sua responsabilidade social relativa à saúde das populações e pessoas que compõem sua sociedade, em particular as pessoas e populações mais desamparadas. É aqui que gostaríamos de introduzir a distinção, porque ela ajuda a precisar quais são essas necessidades e quem são os mais desamparados.

Trata-se da distinção do que seria um mínimo social decente para todos e o que estaria acima desse mínimo. Na nossa avaliação, as necessidades em que uma bioética de proteção está fundamentalmente interessada são precisamente aquelas que dizem respeito às condições sociais mínimas para uma vida decente, sendo que tais condições "mínimas" deverão ser definidas de acordo com a conceituação de um determinado imaginário social, também "razoável".

Rawls 5 salienta a importância desse mínimo social, quando propõe um princípio que preserve a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos lexicalmente anterior aos seus princípios de justiça - o princípio de liberdades básicas iguais para todos, o princípio de igualdade de oportunidades para todos e o princípio da diferença. Na interpretação de Vita 6 (p. 212), a prioridade lexical do primeiro princípio sobre os outros dois, como propõe Rawls, somente "pode ter lugar uma vez que as necessidades básicas dos indivíduos tenham sido satisfeitas", entendendo-se por necessidades básicas aqueles interesses vitais relacionados, por exemplo, ao saneamento básico e ao atendimento médico.

Martha Nussbaum 7, por outro lado, enfatiza a importância das instituições sociais e políticas das sociedades democráticas garantirem que nenhuma pessoa cairá abaixo de um limiar mínimo de suas capacidades humanas, considerando que certas funções são particularmente centrais na vida humana e que existe um modo verdadeiramente humano - e não meramente animal - de exercê-las. A autora inclui a saúde na sua lista de capacidades humanas centrais, considerando que um mínimo social requer que a sociedade garanta as bases sociais de bens naturais, como a saúde, embora não os bens em si mesmos.

Num contexto de escassez de recursos em que muitas pessoas estão abaixo deste decente mínimo social, como nos países latino-americanos, os recursos sanitários públicos deveriam ser alocados não apenas em função das necessidades médicas, mas também da capacidade das pessoas de pagar pela assistência. Assim, como sugere Kottow 8, deve-se considerar, na alocação dos recursos de atenção à saúde, qual população vai requerer apoio total (os mais desamparados), parcial ou nenhum suporte do Estado (que podem suprir, parcial ou totalmente suas necessidades de saúde), priorizando aqueles grupos em piores condições. Na nossa interpretação, num contexto de escassez de recursos e para garantir que cada pessoa possa usufruir, pelo menos, de um decente mínimo social, o Estado deveria priorizar a alocação dos recursos sanitários, entre eles a atenção médica, com base numa focalização que consideraria as condições sócio-econômicas dos grupos sociais, conforme estabelece o princípio da diferença, e priorizando os interesses dos cidadãos mais desamparados.

Deve-se ressaltar que a abordagem adotada aqui se refere aos arranjos institucionais do sistema de saúde, não sendo aplicável, sem mais, à distribuição dos recursos sanitários na porta do hospital ou na beira do leito. Neste nível, o critério distributivo é a necessidade médica independente da capacidade de pagar por ela. Assim, por exemplo, se uma pessoa que tenha um plano de saúde de boa qualidade - porque tem renda suficiente para adquiri-lo - der entrada num hospital, ela deve ser atendida e o sistema público de saúde ressarcido pelo plano de saúde, pelos serviços prestados, liberando-se recursos para aqueles que não podem pagar pelo atendimento. Agora, existe - como bem salienta Vita - o problema daquelas pessoas que estão no "meio", ou seja, que nem são suficientemente desamparadas ou amparadas para poder custear suas necessidades de saúde. Este é certamente um problema espinhoso que deverá ser resolvido caso a caso, por exemplo, pelo sistema de Saúde Suplementar.

Nossa aplicação do princípio da diferença talvez seja uma tanto "frugal" - como sugere o título do comentário de Vita - e novas discussões poderão nos fazer ver que ela não é adequada: afinal - como já ensinara Popper 9 - o erro sempre é possível, mas é no processo de tentativas e erros que o progresso se torna possível também, pelo menos em "sociedades abertas". Em suma, nossas reflexões morais atuais têm nos dirigido para a perspectiva exposta aqui, a qual, longe de querer ser conclusiva é, em realidade, introdutória, pois visava, essencialmente, a "colocar em debate um dos importantes dogmas do sistema de saúde no Brasil, que é a universalidade do sistema", como bem entendeu Veras.

Concluímos acatando a sugestão de Moreira, mas integrando-a em nossa perspectiva, dizendo que, por um lado, pedir ao idoso "já tão fragilizado" que contenha suas necessidades é, de fato, cruel, mas, por outro, uma satisfação desmedida dos seus desejos, vislumbrados graças a propagandas, quase sempre enganosas, é pouco razoável e pode ser fonte de injustiças para com outras faixas da população, sobretudo aquelas que, devido à sua condição de portadores de patologias específicas, merecem também uma proteção especial por parte do sistema sanitário. Assim sendo, depois das pertinentes ponderações e críticas recebidas, talvez um novo título de nosso trabalho poderia ser a pergunta "Como equacionar a desejável frugalidade e a necessária proteção na saúde do idoso?".

 

Referências

1. Callahan D. False hopes: why America's quest for perfect health is a recipe for failure. New York: Simon & Schuster; 1998.

2. Callahan D. What kind of life: the limits of medical progress. New York: Simon & Schuster; 1990.

3. Schramm FR, Kottow M. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cad Saúde Pública 2001; 17:949-56.

4. Lalande A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Paris: Presses Universitaires de France; 1972.

5. Rawls J. O liberalismo político. 2a Ed. São Paulo: Editora Ática; 2000.

6. Vita Á. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Editora Unesp; 2000.

7. Nussbaum MC. Women and human development. The capabilities approach. Cambridge: Cambridge University Press; 2000.

8. Kottow M. Sanitary justice in scarcity. Cad Saúde Pública 1999; 15 Suppl 1:43-50.

9. Popper K. The open society and it's enemies. London: Routledge & Kegan Paul; 1945.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br