ARTIGO ARTICLE

 

Acesso à internação hospitalar nos municípios brasileiros em 2000: territórios do Sistema Único de Saúde

 

Access to hospitalization in Brazilian municipalities in 2000: territorial distribution in the Unified National Health System

 

 

Evangelina X. G. de OliveiraI; Cláudia TravassosII; Marilia Sá CarvalhoIII

ICoordenação de Geografia, Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro, Brasil
IICentro de Informação Científica e Tecnológica, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIIEscola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho investiga os efeitos de fatores ambientais — as condições de oferta, a configuração espacial, os aspectos sócio-econômicos da população, e o contexto político—institucional — no padrão de internação das populações dos municípios brasileiros. Os dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH) sobre as internações de pessoas com mais de 14 anos de idade, apenas para os procedimentos de maior freqüência de internação, no ano de 2000, em todo o Brasil, foram agregados segundo o município de residência dos pacientes. Foram ajustados modelos aditivos generalizados mistos aninhados, utilizando inferência Bayesiana. Os resultados indicam que a probabilidade de internação aumenta com a disponibilidade de leitos e de atenção básica, e com a capacidade de internação local; e diminui quando são maiores as distâncias a percorrer, nos municípios de maior população e naqueles de renda familiar per capita mais alta. A inclusão dos efeitos aleatórios, de UF e do padrão espacial, permite identificar macro áreas com padrões diferenciados nas probabilidades de internação e os principais fatores que explicam esses diferentes padrões.

Serviços de Saúde; Acesso aos Serviços de Saúde; Eqüidade no Acesso


ABSTRACT

This article investigates the effect of external factors on hospitalization patterns in Brazilian municipalities (or counties): supply, spatial configuration, socioeconomic aspects, and political context. Inpatient data from 2000 for individuals 15 years and over and most frequent hospital procedures, obtained from the National Hospital Information System (SIH-SUS), were aggregated by place of residence at the municipal level. Nested generalized additive mixed models were fitted using Bayesian inference. Probability of hospitalization is shown to increase with hospital bed supply and with primary care and local capacity, and to decrease with increasing distances and in larger and wealthier municipalities. Inclusion of random, State, and spatial patterns effects reveals regional differences in the probability of hospitalization and the main factors explaining such different patterns.

Health Services; Health Services Accessibility; Equity in Access


 

 

Introdução

A eqüidade no acesso aos serviços de saúde é um princípio que orienta o SUS. Violações desse princípio ocorrem quando o uso de serviços é, de algum modo, afetado pela condição econômica, e social, ou pelo local de residência dos usuários 1. Diversos estudos brasileiros apontaram iniqüidades associadas a fatores sócio-econômicos 2,3,4. Barreiras ao uso de serviços de saúde impostas pelo local de residência também ocorrem, em especial, se considerarmos as dimensões do país. De fato, "o ideal de igual acesso aos serviços de saúde para necessidades iguais (...) é uma impossibilidade objetiva do ponto de vista geográfico. Os serviços de saúde estão inevitavelmente concentrados em determinados lugares e, conseqüentemente, são mais acessíveis às pessoas que deles estão mais próximas do que àquelas que estão mais distantes deles" 5 (p. 97).

O ambiente é uma das categorias explicativas do modelo comportamental de uso de serviços de saúde desenvolvido por Andersen, integrando características do sistema de saúde, fatores ambientais externos e fatores capacitantes no nível da comunidade 6,7. Estudos que incluem fatores ambientais investigam mais freqüentemente a disponibilidade do serviço e a acessibilidade geográfica, e demonstram que a utilização se reduz à medida que aumenta a distância entre as pessoas que demandam atendimento e os serviços de saúde 8,9,10,11,12. Esse fato remete ao conceito de disponibilidade efetiva dos recursos 13, segundo o qual a sua presença deve ser corrigida pela resistência exercida por obstáculos — tais como: custos, localização e organização de tais recursos — que se interpõem à busca e à obtenção dos serviços.

Nos estudos de acesso aos serviços que incorporam a dimensão espacial, além da distância entre usuários e provedores de serviços, é preciso considerar o padrão espacial, pois "todas as coisas estão inter-relacionadas, mas as coisas mais próximas relacionam-se mais intensamente do que as mais distantes" 14 (p. 235), constatação que é freqüentemente citada como a "primeira lei da geografia". A proximidade pode ser avaliada tanto no espaço físico quanto num espaço de relações. Note-se, por exemplo, em termos de consumo de serviços em geral, que a população de uma cidade de tamanho médio pode se considerar mais próxima de um centro metropolitano do que de uma cidade menor localizada em sua periferia imediata.

A adequação da métrica da distância, por sua vez, também deve ser avaliada, pois diferentes medidas podem levar a resultados bem diversos. A simples distância linear entre dois pontos pode representar mal a fricção do espaço, cuja intensidade é diferente dependendo dos meios disponíveis para transpô-lo. Assim, os estudos de acessibilidade sugerem que a medida de distância deveria medir os custos de deslocamento em unidades de tempo ou de dinheiro, em vez de em quilômetros 15,16,17.

Considerando a importância de minimizar-se as variações no acesso aos serviços de saúde, este trabalho investiga os efeitos de fatores ambientais que influenciam o padrão de internação das populações dos municípios brasileiros — as condições de oferta, a configuração espacial (considerando tanto o efeito da distância entre o município e os serviços hospitalares utilizados por seus residentes quanto os efeitos do padrão espacial), os aspectos sócio-econômicos da população e o contexto político-institucional.

 

Material e métodos

Nesta pesquisa, foram analisadas internações hospitalares, pagas pelo SUS no ano 2000, em todo o país, incluídas apenas as internações de pacientes com mais de 14 anos de idade (adultos), agregadas por município de residência. O município constitui a unidade de análise deste estudo. A fonte dos dados foi o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH-SUS).

As internações (Autorizações de Internação Hospitalar — AIH — do tipo 1) de adultos no período totalizaram 9.404.746 das 11.937.323 registradas. Neste grupo, foram selecionadas as 6.116.800 internações classificadas nos 37 procedimentos mais freqüentes, os responsáveis, no mínimo, por 0,5% das internações no país (Tabela 1). Três dos 5.507 municípios existentes no país em 2000 foram excluídos da análise por problemas na identificação dos dados.

 

 

O conceito de vizinhança foi operacionalizado como proximidade no espaço relacional, sendo considerados como vizinhos todos os municípios nos quais ocorreram mais de uma internação de residentes do município analisado. Adotou-se, para definir esse conjunto, o corte de mais de uma internação para reduzir a influência de flutuações aleatórias. Em cinco municípios, nenhum destino recebeu mais de um paciente, mas optou-se por não retirá-los da análise e decidiu-se que todos os destinos são vizinhos.

As variáveis utilizadas nos modelos de internação estão apresentadas a seguir, ordenadas segundo as dimensões da análise: oferta, configuração espacial, aspectos sócio-econômicos e contexto político-institucional.

Oferta de serviços

Disponibilidade de leitos: taxa de leitos disponíveis por mil habitantes, média mensal de leitos contratados pelo SUS no ano de 2000 (SIH-SUS) dividida pelo total da população residente 18 (Figura 1). Tanto no numerador quanto no denominador, os valores correspondem ao somatório de todos os municípios vizinhos no espaço relacional. Nos modelos ajustados, foi empregado o logaritmo da taxa.

Capacidade local de internação: indicador com três categorias: (0) municípios sem internações no próprio município; (1) municípios nos quais a proporção de internações no local (número de internações no próprio município de residência dividido pelo total de internações de residentes desse município) varia entre 0,01 e 0,80; e (2) municípios em que a proporção de internações no local foi maior do que 0,80. A categoria de referência é a primeira (sem internações no local).

Atenção básica per capita: total de procedimentos ambulatoriais (da categoria Atendimento Básico) aprovados no ano de 2000, por município, dividido pela população do município. Nos modelos ajustados, foi empregado o logaritmo dessa variável. A fonte de dados foi o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA-SUS).

Configuração espacial

Índice de distância média ponderada (DMP): atribui maior peso às distâncias dos destinos mais procurados 19: DMPi = Sdij*mj/Smj; em que j é o conjunto dos vizinhos de i; dij é a distância entre as sedes dos municípios i e j; e mj é o número de internações de residentes em i no município j (Figura 1).

Para as internações realizadas no próprio município de residência, foi considerada a distância de 1,0km. Nos modelos, foi empregado o logaritmo do índice DMP.

Localização do município: a posição do município (coordenadas do centróide de sua área) serve de base para ajustar uma superfície que representa o padrão espacial.

Condições sócio-econômicas

Tamanho dos municípios: número de habitantes em 2000 18. O tamanho dos municípios reflete as diferenças entre os meios rurais e aqueles caracterizados por diferentes graus de urbanização. Considerando os problemas envolvidos na definição do "urbano" no Brasil 20, optou-se por não usar a população legalmente definida como urbana. Nos modelos, foi empregado o logaritmo dessa variável.

Renda familiar per capita: mediana municipal do rendimento familiar per capita, em múltiplos do salário mínimo (R$ 150,00) vigente em 2000 18. Para eliminar a colinearidade com o intercepto, a variável foi centrada na média. Embora renda e educação sejam dimensões que, no Brasil, afetam a probabilidade de internação hospitalar no nível dos indivíduos 2, a alta correlação encontrada entre esses dois fatores no nível dos municípios levou a incluir, na análise, apenas o indicador de renda.

Contexto político-institucional

Unidade da Federação (UF): os Estados brasileiros foram incluídos como um nível da análise para avaliar o efeito das políticas de saúde nesse âmbito. Como o Distrito Federal é composto por uma única unidade, foi considerado apenas no nível do município.

Cobertura do setor de saúde complementar: proporção da população estadual com plano de saúde privado, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 1998 (PNAD 1998) 21.

Modelos estatísticos

O uso de serviços hospitalares foi medido pela probabilidade relativa de internação padronizada (PRIP) das populações de cada município, definida como: PRIPi = yi/ei, sendo yi a contagem de internações no ano, e ei o número total esperado. O valor esperado foi calculado aplicando-se a proporção nacional de internações SUS à população dos municípios, por sexo e faixas de idade.

Para modelar a probabilidade de internação nos municípios brasileiros, empregou-se o modelo aditivo generalizado misto. Modelos aditivos generalizados incorporam métodos não paramétricos que permitem tratar, além dos efeitos lineares fixos, efeitos não-lineares de co-variáveis contínuas. Os modelos aditivos generalizados mistos estendem as possibilidades de análise, incluindo efeitos aleatórios não estruturados, que podem ser locais ou de grupo, e efeitos aleatórios espacialmente estruturados, que investigam a parcela de variação do fenômeno estudado não explicada pelas co-variáveis ou pelos efeitos aleatórios não estruturados. Os modelos que incluem efeitos geográficos são também chamados geo-aditivos 22,23,24.

Neste estudo, o componente espacial é representado por uma superfície interpolada por P-splines. Splines são polinômios (no caso deste trabalho, de ordem cúbica) ajustados para cada área demarcada por uma grade regular. A ligação entre as superfícies calculadas para cada célula da grade é suavizada utilizando ajuste não paramétrico penalizado (P-splines). O grau de suavização depende do número de células, quanto menor o número de células, tanto maior o grau de suavização 25.

Para ajustar esses modelos, foi utilizada inferência Bayesiana, baseada em simulação MCMC (Markov Chain-Monte Carlo), tal como implementada no programa de domínio público BayesX (disponível em http://www.stat.uni-muechen.de/~lang/bayesx/bayesx.html). Foram realizadas 110 mil iterações, descartando-se as primeiras 10 mil (etapa de burn-in, para estabilização das cadeias), e conservados um a cada cem valores, para reduzir a autocorrelação das cadeias, resultando em amostra de mil, utilizada para cálculo dos parâmetros das distribuições posteriores. Examinada por inspeção do gráfico seqüencial e pelo teste de Geweke 26, a convergência das cadeias foi satisfatória. O ajuste dos modelos é avaliado pelo DIC (Deviance Information Criterion) 27 e pela análise dos resíduos.

A estratégia adotada na modelagem foi a de ajustar modelos aninhados, acrescentando, a cada passo, cada uma das dimensões investigadas. O primeiro modelo incluiu as variáveis que representam a oferta; o segundo introduz a distância; o terceiro, as condições sócio-econômicas; o quarto, o contexto político-institucional, incluindo o nível UF, como um efeito aleatório, atuando positiva ou negativamente sobre a probabilidade de internação dos municípios. O último modelo investigado inclui um termo de estrutura espacial, suavizado por uma P-spline com 12 nós. Outros números de nós foram testados, sem acrescentar informação relevante. Os valores da superfície que representa o componente espacial são atribuídos aos municípios, segundo sua localização, resultando em aumento ou redução da probabilidade calculada para cada município.

Os resultados dos modelos foram explorados utilizando recursos do R, programa de domínio público disponível em http://cran.r-project.org/. Para avaliar alguns efeitos, foi calculada a PRIP predita pelos modelos, variando o valor de uma das variáveis e fixando na média o das outras. Os mapas dos resultados foram elaborados com o programa ArcView.

 

Resultados

Cerca de 22,0% das 6.116.800 internações estudadas foram realizadas em município diferente do de residência dos pacientes. Em 37,0% dos municípios brasileiros (2.055), não ocorreu internação paga pelo SUS em 2000, 2.009 municípios (36,5%) internaram localmente mais de 80,0% dos residentes, e outros 1.442 (26,2%) ficaram abaixo desse valor.

A população total e o índice DMP são as características municipais mais assimétricas, com maior concentração nas classes mais baixas e presença de valores extremos, muitas vezes superiores aos característicos do restante da distribuição (Tabela 2). Tanto o número de leitos por mil habitantes quanto a renda familiar per capita têm distribuição bimodal, a primeira com picos em torno de 2,70 e de 4,10, a segunda com picos em torno de 0,35 e 1,05.

 

 

Os resultados dos modelos estão apresentados na Tabela 3. No primeiro modelo, a PRIP aumenta com a disponibilidade de leitos e de atenção básica, e com o aumento da capacidade local de internação, correspondendo os maiores coeficientes aos desta última variável. Nos municípios sem internação local, a PRIP estimada é menor do que um.

O segundo modelo incorpora a distância, cujo efeito é negativo. Calculando o valor estimado da PRIP para diversas faixas de DMP, verifica-se que a probabilidade de internação cai aceleradamente na faixa de 1,0 até 20,0km. Em relação ao modelo anterior, são observados pequena redução do coeficiente da oferta de leitos, aumento do coeficiente da atenção básica e redução do efeito da capacidade local de internação.

O terceiro modelo introduz as variáveis sócio-econômicas, que apresentam uma relação inversa com a probabilidade de internação. Nos municípios com população superior a 50 mil, essa probabilidade é menor do que um. O aumento da renda média familiar reduz a PRIP mais rapidamente. Em relação ao modelo anterior, o efeito da oferta é ainda menor, tanto para oferta de leitos quanto para atenção básica. No que se refere à capacidade local de internação, volta a crescer o seu efeito positivo, sendo ainda maior a diferença nos municípios com maior capacidade. Em relação à distância, a incorporação das condições sócio-econômicas aumenta seu efeito negativo. A chance de internação é maior para DMP de até cerca de 5,0km e cai aceleradamente, verificando-se que, a partir de 50,0km, a PRIP estimada é menor do que um.

Uma regressão linear simples ajustada com as variáveis do modelo 3 registra r2 de 0,35. Considerando que cerca de 2/3 da variabilidade ainda estão por explicar, o modelo seguinte introduz um novo nível na análise, as UF, para investigar o efeito das políticas estaduais de saúde.

Além do efeito aleatório que estima a influência das UF, o modelo 4 inclui a variável de cobertura do setor de saúde complementar, que apresenta reduzido impacto. Em relação aos modelos anteriores, atinge o valor máximo o coeficiente da disponibilidade de leitos, o da atenção básica continua a cair, permanecendo estáveis os da capacidade local de internação e da distância. O efeito negativo da renda média acentua-se ainda mais, e ameniza-se o do tamanho populacional. O efeito aleatório das UF varia entre -0,483 e 0,444 e, considerando apenas os valores cujo intervalo de credibilidade de 90% (IC90%) não inclui o zero, verifica-se que cinco estados brasileiros — Amazonas, Roraima, Maranhão, Pernambuco e Rio de Janeiro — apresentam coeficientes que reduzem as probabilidades de internação dos residentes de seus municípios em relação à média nacional, ao passo que, em outros sete — Rondônia, Mato Grosso, Piauí, Bahia, Sergipe, Paraná e Santa Catarina — tais coeficientes aumentam aquelas probabilidades (Figura 2). Para os resíduos desse modelo, calculou-se a estatística I de Moran, estimada em 0,15 e significativa (p-valor menor que 2,2 e -16), indicando a presença de estrutura espacial nos resíduos, o que justifica incluir, no modelo 5, um efeito espacial.

Esse efeito espacial dos municípios varia de -0,596 a 0,449, e, para cerca de 35,0% dos municípios, o IC90% exclui o zero. Desses, 1.799 municípios (32,7%) têm valores positivos, e somente 148 municípios (2,7%), localizados na Região Norte e no Maranhão, apresentam valores negativos, vale dizer, internam menos do que o predito pelo modelo. O modelo final apresenta redução nos coeficientes das variáveis de oferta, aumento da influência negativa da distância e relativa estabilidade das variáveis sócio-econômicas. Ainda em relação ao modelo anterior, o efeito espacial altera drasticamente a influência das UF. Além de reduzir o seu efeito, que passa a variar de -0,260 a 0,307, o padrão anterior é alterado. Com efeito redutor na probabilidade de internação aparecem os Estados do Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Goiás. Integram o grupo com valores positivos os estados de Rondônia, Sergipe, Amapá e Alagoas. O efeito da cobertura do setor de saúde complementar, no nível estadual, inclui o zero no IC90%.

O ajuste espacial dos modelos é avaliado pela comparação dos valores preditos e dos maiores resíduos (fora do intervalo -2,2) com o padrão da PRIP observada, bem como pela consideração do somatório dos valores do efeito aleatório estadual e do padrão espacial, considerados apenas nos casos em que o IC90% exclui o zero (Figura 3).

A primeira observação que se impõe refere-se à similaridade do padrão do modelo 5 com o dos valores observados. A segunda reconhece que o movimento do primeiro para o último modelo não é uma evolução pelo qual o ajuste vai sendo melhorado em todo o país de forma homogênea. O exame dos padrões espaciais dos valores preditos, associado ao dos maiores resíduos, permite identificar quatro grandes conjuntos de UF. O primeiro compreende os estados bem explicados desde o primeiro modelo — Ceará, Alagoas, Pernambuco, Sergipe e Espírito Santo, bem como Roraima, Amapá e Acre.

Um segundo grupo é representado pelos estados cujos padrões tendem a ser mais bem descritos pelo terceiro modelo: Rio Grande do Norte, Paraíba, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo. Exceto nos dois últimos, em que pese o melhor ajuste dado pela inclusão das variáveis sócio-econômicas, observa-se presença importante de resíduos em todos os modelos. Em São Paulo, verifica-se que tanto oferta quanto distância superestimam as taxas no eixo São Paulo-Ribeirão Preto e subestimam as taxas a oeste. O terceiro modelo corrige os resíduos do eixo e, suavizado, é mais fiel ao padrão do estado.

O terceiro grupo é composto pelos estados que, embora relativamente bem representados pelo terceiro modelo, melhoram com a inclusão dos efeitos aleatórios — de UF e espacial — como é o caso de Tocantins, Goiás, Mato Grosso, Piauí, Bahia, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

No quarto grupo, ficam estados cujos padrões diferem do conjunto geral — Amazonas, Pará, Maranhão e Rondônia. No Amazonas, o ajuste piora a cada modelo, superestimando a probabilidade predita de internações. Só no último modelo, pela inclusão de um efeito espacial negativo, recupera-se o padrão espacial e reduz-se o número de resíduos. No Pará, o padrão de baixas e altas taxas é mais bem capturado pelo efeito espacial no quinto modelo, com um efeito redutor no norte do estado e aumento no sul. No Maranhão, o ajuste de todos os modelos tem problemas. Os índices de oferta ali registrados contam-se entre os mais altos do país, e sua inclusão gera preditos mais altos do que o observado, não corrigidos pelos outros fatores. Ao contrário dos anteriores, Rondônia interna sempre mais do que o predito. O padrão espacial, dado pelo traçado da BR364, é recuperado já no primeiro modelo, mas o número de resíduos expressivos não é reduzido nem pelo forte efeito espacial positivo.

A medida global de ajuste do modelo, o DIC, indica semelhança dos três primeiros modelos e piora nos dois últimos, refletindo um ajuste médio satisfatório obtido com os efeitos fixos. A inclusão dos efeitos aleatórios (de UF e espacial), entretanto, é indispensável para descrever adequadamente o fenômeno.

 

Discussão

Este estudo investigou o efeito de fatores ambientais no padrão de internação das populações dos municípios brasileiros, limitando o foco ao âmbito do SUS. Para além dos problemas de disponibilidade de informações, este enfoque justifica-se pela expressividade desse segmento, considerando que, segundo a PNAD 1998, 63,8% das internações foram financiadas pelo SUS 21. A mesma fonte aponta variações regionais na cobertura de plano de saúde privado: 75,0% da população brasileira não está coberta, e essa proporção varia de 60,8%, em São Paulo, a 94,1%, no Maranhão. Em termos de rendimento familiar, a PNAD 1998 mostra ainda que, quanto mais baixa a renda, maior a proporção da população dependente do SUS: até três salários mínimos, a participação da população sem plano de saúde privado é superior a 90,0%, ao passo que, na faixa de mais de vinte salários mínimos, ela representa, no Brasil, 23,8% (17,9% em São Paulo e 65,7% no Tocantins).

Tais variações devem ser consideradas quando se interpreta a probabilidade relativa de internação, pois o número esperado está padronizado pela média nacional de internações. As estimativas obtidas são influenciadas, para mais ou para menos, pela composição da população dos diferentes locais, e sabe-se que há municípios em que praticamente toda a população é "SUS-dependente", e outros em que raros são os clientes do SUS. Cabe observar, ainda, que a inexistência de informações que permitam avaliar as necessidades de saúde das populações municipais implica em ter como único ajuste possível a padronização por sexo e idade.

A pesquisa destaca a influência da oferta de serviços e da distância no acesso da população. Considerada apenas a dimensão da oferta, mostra a importância da capacidade local de internação como facilitadora do uso desse serviço. Ao incluir, na análise, a distância, tal efeito enfraquece, refletindo o fato de que os municípios sem leitos contratados pelo SUS estão geralmente próximos de municípios com disponibilidade de tais leitos. A consideração das condições sócio-econômicas dos municípios, entretanto, altera esse quadro, ao reduzir a relevância da oferta de leitos e aumentar a importância da capacidade local e da barreira da distância na probabilidade de internação. No contexto de desigualdade vigente na sociedade brasileira, esses resultados mostram o perfil iníquo do sistema de saúde. Municípios maiores e mais ricos demandam menos leitos do SUS, enquanto, nos municípios mais pobres, o peso dos custos de deslocamento aumenta, são privilegiadas as internações locais, e a probabilidade de internação diminui. Note-se que a população dos municípios mais pobres tem, em geral, características semelhantes àquelas que definem o perfil da clientela SUS.

Os serviços de atenção básica cumprem duas funções complementares. De um lado, há evidências de que cuidados básicos podem evitar o agravamento de problemas de saúde e reduzir a demanda a serviços de maior complexidade 28,29, de outro, geram demanda para os serviços hospitalares. Neste estudo, verifica-se que, no Brasil, o aumento na quantidade de procedimentos de atenção básica impacta positivamente as chances de internação hospitalar, o que pode estar ligado à grande demanda reprimida, para determinados grupos populacionais, por serviços de saúde.

Contrariamente ao descrito em estudos realizados no Brasil e nos Estados Unidos, nos quais a vinculação a um plano privado de saúde facilita o acesso aos serviços de saúde 2,30, a cobertura estadual por plano de saúde privado não afetou a probabilidade de internação. Além do grau de heterogeneidade na cobertura de planos de saúde entre os municípios dentro de cada Estado, é muito provável que parte desse efeito tenha sido captada pela dimensão sócio-econômica.

A inclusão, nos modelos, do nível estadual também não mostrou efeito expressivo, possivelmente porque as dimensões de oferta e distância já incorporam parte importante do efeito de variações nas políticas estaduais de saúde. Além disso, o padrão espacial obtido indica que a maior diferenciação nas probabilidades de internação ocorre em escalas maiores do que as estaduais, apontando a existência de padrões regionalizados. Note-se que a regionalização encontrada não replica as grandes regiões do país, podendo orientar estudos do papel do SUS na regulação da demanda nas diferentes áreas.

A variação do efeito da capacidade local de internação entre os modelos analisados confirma ainda a inadequação dos limites municipais como unidade de referência para a organização e análise da oferta de leitos hospitalares e valida a opção aqui adotada pela contagem dos leitos disponíveis com base naqueles de fato acessíveis, porque acessados. A inclusão da população dos municípios do hospital onde ocorreu alguma internação do município índice é necessária para levar em conta a competição pelos leitos, e essa base populacional poderia mesmo incluir, no denominador do índice, a população de todos os municípios que realmente utilizam os leitos somados no numerador.

A identificação de macro áreas com padrões diferenciados nas probabilidades de internação, e dos principais fatores que explicam esses diferentes padrões, fornece informação relevante para a formulação de políticas específicas ajustadas à realidade local, voltadas para melhorar o perfil assistencial e reduzir as desigualdades geográficas existentes no país. Nos estados onde a oferta é o principal fator explicativo da probabilidade de internação, a distância tem menor influência (seu efeito está incorporado nos mais altos níveis de capacidade local de internação), e as probabilidades de internação entre municípios são mais homogêneas. Nessas condições, os problemas existentes estariam relacionados à insuficiência de leitos e à inadequação, ou baixa qualidade, do cuidado prestado. Por outro lado, naqueles estados onde, mantendo-se constante a oferta, as condições sócio-econômicas assumem papel de destaque na limitação do uso dos serviços, pode-se falar em evidente violação do princípio da eqüidade. Nesses casos, os municípios mais pobres enfrentam menores probabilidades de internação do que os mais ricos, e as políticas de melhoria no modelo assistencial têm que considerar também a redução dessas desvantagens.

Embora complexo, o método aqui explorado é ainda uma forma limitada de considerar o efeito do espaço ao investigar a parcela de variação do fenômeno estudado que não foi explicada pelas co-variáveis ou pelos efeitos aleatórios não estruturados. Um avanço necessário será explorar modelos nos quais é possível tratar de forma diferenciada os efeitos, deixando variar espacialmente os coeficientes 31,32.

Estudos anteriores dão conta da importância de considerar, na avaliação do acesso, as relações entre a existência dos serviços de saúde e a sua distribuição geográfica 33,34,35, que pode facilitar ou impedir o acesso da população, mesmo nos sistemas que não cobram pelo uso do serviço 36. Neste estudo, embora a população da maior parte dos municípios more relativamente perto dos hospitais (a mediana nacional do índice DMP é de 17,1km), verificou-se que mesmo distâncias muito pequenas provocam importantes reduções na probabilidade de atendimento, e, nos municípios mais pobres, a expressividade das barreiras impostas pela distância aponta o impacto dos custos de transporte.

As grandes diferenças aqui apontadas evidenciam a inexistência de solução única, adequada para todo o país. Destaca-se, nesse sentido, a importância dos sistemas locais de saúde e da regionalização do atendimento, ressaltando que, nas áreas nas quais critérios técnicos não indicam conveniência da implantação de determinados serviços, o sistema de referência deverá, necessariamente, incluir mecanismos que viabilizem o transporte dos pacientes.

 

Colaboradores

E. X. G. Oliveira participou da concepção da pesquisa, análise e processamento dos dados e redação do artigo. M. S. Carvalho e C. Travassos contribuíram na concepção da pesquisa, análise dos dados e redação do artigo.

 

Referências

1. Wagstaff A, Van Dooslaer E. Equity in the finance and delivery of health care: concepts and definitions. In: Van Dooslaer E, Wagstaff A, Rutten F, editors. Equity in the finance and delivery of health care: an international perspective. Oxford: Oxford University Press; 1993. p. 85-103.        

2. Castro MSM, Travassos C, Carvalho MS. Fatores associados às internações hospitalares no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2002; 7:687-708.        

3. Travassos C, Viacava F, Fernandes C, Almeida CM. Desigualdades geográficas e sociais na utilização de serviços de saúde no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2000; 5:133-49.        

4. Almeida C, Travassos C, Porto S, Labra ME. Health sector reform in Brazil: a case study of inequity. Int J Health Serv 2000; 30:129-62.        

5. Lovett A, Haynes R, Sünnenberg G, Gale S. Car travel time and accessibility by bus to general practitioner services: a study using patient registers and GIS. Soc Sci Med 2002; 55:97-111.        

6. Andersen RM. Revisiting the behavioral model and access to medical care: does it matter? J Health Soc Behav 1995; 36:1-10.        

7. Phillips KA, Morrison KR, Andersen R, Aday LA. Understanding the context of healthcare utilization: assessing environmental and provider-related variables in the behavioral model of utilization. Health Serv Res 1998; 33:571-96.        

8. Cohen MA, Lee HL. The determinants of spatial distribution of hospital utilization in a region. Med Care 1985; 23:27-38.        

9. Carr-Hill RA, Sheldon TA, Smith PA, Martin S, Peacock S, Hardman G. Allocating resources to health authorities: development of method for small area analysis of use of inpatient services. BMJ 1994; 309:1046-9.        

10. Goodman DC, Fisher E, Stuke TA, Chang C. The distance to community medical care and the likelihood of hospitalization: is closer always better? Am J Public Health 1997; 87:1144-50.        

11. Haynes R, Bentham G, Lovett A, Gale S. Effects of distances to hospital and GP surgery on hospital inpatient episodes, controlling for needs and provision. Soc Sci Med 1999; 49:425-33.        

12. Mooney C, Zwanziger J, Phibbs CS, Schmitt S. Is travel distance a barrier to veteran's use of VA hospitals for medical surgical care? Soc Sci Med 2000; 50:1743-55.        

13. Frenk J. El concepto y la medición de la accessibilidad. Salud Publica Mex 1985; 27:438-53.        

14. Tobler WR. A computer model simulating urban growth in the Detroit region. Econ Geogr 1970; 46:234-40.        

15. Shannon GW, Skinner JL, Bashur RL. Time and distance: the journey for medical care. Int J Health Serv 1973; 3:237-44.        

16. Handy SL, Niemeier DA. Measuring accessibility: an exploration of issues and alternatives. Environ Plan A 1997; 29:1175-94.        

17. Slack R, Ferguson B, Ryder S. Analysis of hospitalization rates by electoral ward: relationship to accessibility and deprivation data. Health Serv Manage Res 1997; 10:24-31.        

18. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2000: características da população e dos domicílios (resultados do universo). Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2001.        

19. Gutiérrez J, Monzón A, Piñero JM. Accessibility, network efficiency, and transport infrastructure planning. Environ Plan A 1998; 30:1337-50.        

20. Castello Branco MLG. Espaços urbanos: uma proposta para o Brasil [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2003.        

21. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 1998. Suplemento Saúde. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2000.        

22. Hastie TJ. Generalized additive models. In: Chambers JM, Hastie TJ, editors. Statistical models in S. London: Chapman & Hall; 1993. p. 249-307.        

23. Carvalho MS, Knorr-Held L. Modelling discrete time survival data with random slopes: evaluating haemodialysis centres. Stat Med 2003; 22: 3543-55.        

24. Lang S, Brezger A. BayesX: software for Bayesian inference based on Markov Chain Monte Carlo techniques. Version 1.02. http://www.stat.uni-muenchen.de/~lang/bayesx.htlm (acessado em 05/Fev/2004).        

25. Brezger A, Lang S. Generalized structured additive regression based on Bayesian P-splines. (Discussion Paper 321, SFB 386). http://www.stat.uni-muenchen.de/~lang/skript (acessado em 05/ Fev/2004).        

26. Brooks SP, Roberts GO. Assessing convergence of Markov Chain Monte Carlo algorithms. Statistics and Computing 1998; 8:319-35.        

27. Spiegelhalter D, Beste N, Carlin B, Van Der Linde A. Bayesian measures of model complexity and fit (with discussion). Journal of the Royal Statistical Society. Series B (Statistical Methodology) 2002; 64:583-40.        

28. Shi L, Starfield B. Primary care, income inequality, and self-rated health in the United States: a mixed level analysis. Int J Health Serv 2000; 30: 541-55.        

29. Ricketts TC, Randolph R, Howard HA, Pathman D, Carey, T. Hospitalization rates as indicators of access to primary care. Health Place 2001; 7:27-38.        

30. Hulka BS, Wheat JW. Patterns of utilization: the patient perspective. Med Care 1985; 23:438-60.        

31. Fotheringham AS, Brunsdon C, Charlton M. Geographically Weighted Regression: the analysis of spatially varying relationships. Hoboken: John Wiley & Sons; 2002.        

32. Assunção RM. Space varying coefficient models for small area data. Environmetrics 2003; 14:453-73.        

 

 

Endereço para correspondência
E. X. G. Oliveira
Coordenação de Geografia, Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Av. República do Chile 500
Rio de Janeiro, RJ 20031-070, Brasil
evan@iis.com.br

Recebido em 26/Fev/2004
Versão final reapresentada em 29/Jul/2004
Aprovado em 02/Ago/2004

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br