ARTIGO ARTICLE

 

Proposição de um método de análise coletiva dos acidentes de trabalho no hospital

 

Proposal of a method for collective analysis of work-related accidents in the hospital setting

 

 

Claudia OsórioI; Jorge Mesquita Huet MachadoII; Carlos Minayo-GomezIII

IDepartamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil
IIDiretoria de Recursos Humanos, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIIEscola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe um método de análise coletiva de acidentes de trabalho em ambiente hospitalar, que tem o duplo objetivo de analisar os acidentes levando em conta o real da atividade de trabalho e propiciar um aumento da vitalidade dos ofícios constitutivos do trabalho hospitalar. Neste processo, de pesquisa e intervenção, conjuga-se a produção de conhecimento com a formação dos profissionais de saúde, propiciando a ampliação da participação do trabalhador na gestão do seu cotidiano. O método consiste em levar o trabalhador a recriar a situação em que ocorreu o acidente, deslocando-se para a posição de observador de seu próprio trabalho. Na primeira etapa da análise, o trabalhador é convidado a mostrar ao analista do trabalho como se deu o acidente; na segunda, a dupla acidentado/analista registra, num diagrama, a sucessão de eventos descrita; na terceira, o registro feito é rediscutido e complementado; na quarta, são avaliadas e executadas, sempre pela dupla acidentado/analista, ações destinadas a prevenir a reincidência do acidente analisado. O artigo finaliza discutindo as possibilidades e limites do método em ambiente hospitalar.

Acidentes de Trabalho; Saúde Ocupacional; Ambiente de Trabalho


ABSTRACT

The article presents a method for the analysis of work-related accidents in hospitals, with the double aim of analyzing accidents in light of actual work activity and enhancing the vitality of the various professions that comprise hospital work. This process involves both research and intervention, combining knowledge output with training of health professionals, fostering expanded participation by workers in managing their daily work. The method consists of stimulating workers to recreate the situation in which a given accident occurred, shifting themselves to the position of observers of their own work. In the first stage of analysis, workers are asked to show the work analyst how the accident occurred; in the second stage, the work accident victim and analyst jointly record the described series of events in a diagram; in the third, the resulting record is re-discussed and further elaborated; in the fourth, the work accident victim and analyst evaluate and implement measures aimed to prevent the accident from recurring. The article concludes by discussing the method's possibilities and limitations in the hospital setting.

Occupational Accidents; Occupational Health; Working Environment


 

 

Introdução

A Saúde do Trabalhador vem se configurando no Brasil como um campo amplo, de práticas oriundas de disciplinas diversas, no âmbito da Saúde Pública. Neste processo, coloca-se como central o compromisso com a mudança do quadro de saúde da população trabalhadora, a ser construída de modo participativo 1 e transdisciplinar. O método de análise coletiva dos acidentes do trabalho situa-se nesse campo e propõe-se a produzir efeitos tanto no ambiente de trabalho como na relação dos trabalhadores com sua atividade. Construído num diálogo entre conceitos e experiência, num hospital público brasileiro, o método pode ser entendido como uma ferramenta de formação no trabalho.

No ambiente hospitalar, o acidente típico da atividade — com materiais perfurocortantes — apresenta uma gravidade especial, pela virtual contaminação biológica. O risco relacionado a esse tipo de acidente é hoje objeto de vigilância epidemiológica definido pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) 2 em hospitais dos Estados Unidos. O surgimento da AIDS, bem como o aumento do conhecimento sobre a hepatite do tipo C, levaram a essa intensificação do controle sobre a ocorrência de acidentes com perfurocortantes e exposição a fluidos biológicos. Mas, para boa parte dos profissionais que atuam nos hospitais, trata-se de um acidente cujos possíveis efeitos negativos parecem ser freqüentemente desconsiderados, observando-se o descumprimento de normas básicas de segurança e recusa em notificar o acidente e buscar atendimento médico após a exposição.

Existem estudos, dos quais citaremos apenas dois, que indicam que a informação e a formação centrada em aspectos técnicos não são suficientes para reduzir a ocorrência de acidentes. Um estudo epidemiológico desenvolvido no Brasil, com dados registrados em um hospital universitário 3, mostrou que grande parte dos acidentes se deve à inobservância das precauções preconizadas, concluindo que a simples informação não é suficiente para modificar o quadro existente. Um estudo multicêntrico, realizado em três hospitais norte-americanos 4, indicou como fatores mais significativos para o seguimento ou não das precauções universais, além dos já amplamente reconhecidos em outros trabalhos — percepção do risco e conhecimento das precauções universais — outros raramente observados: o "clima organizacional" de respeito à segurança e os conflitos de interesse entre a segurança do trabalhador em saúde e o atendimento ao doente. Veremos a seguir que, nos estudos realizados em nosso campo empírico, os conflitos que permeiam as decisões referentes a cada gesto também surgem como questões a serem cuidadosamente consideradas.

Por outro lado, prevalece nos hospitais a centralização na tomada das decisões. A representação sindical é frágil e não é substituída ou complementada por outras formas de organização. Há uma descrença acentuada na influência que os coletivos de trabalho podem exercer sobre a organização de suas próprias atividades, observando-se atitudes predominantemente defensivas frente às exigências da organização do trabalho. Nesta realidade, as práticas de intervenção pautadas numa análise causalista — fundamentada em aspectos do processo técnico de trabalho — têm se revelado de limitado impacto para a transformação dos modos de fazer já cristalizados.

Com o intuito de encontrar métodos de análise de acidentes que levem em conta os aspectos subjetivos envolvidos no processo de trabalho e favoreçam a produção coletiva de novas formas de organização do trabalho hospitalar, tomamos como referência central os conceitos da Vigilância em Saúde do Trabalhador 5. Agregamos, em seguida, à nossa caixa de ferramentas, os conceitos desenvolvidos pela Clínica da Atividade 6. Dessa articulação nasceu o método da análise coletiva de acidentes, que contempla tanto a organização do trabalho quanto os aspectos subjetivos que permeiam a atividade.

No quadro conceitual adotado, a atividade é concebida como algo mais que uma série de gestos observáveis. Nesse conceito inclui-se a busca da reconstituição dos encadeamentos que preparam, deslancham, conduzem e, portanto, explicam as ações do operador 7. Utilizando o par conceitual trabalho prescrito — trabalho real, essa concepção opõe-se a uma outra: a da atividade como realização da tarefa ou como algo definido por um objetivo a atingir. Seguindo a concepção proposta pela Clínica da Atividade 8, agregamos à análise um terceiro termo, situado no percurso que se dá do trabalho prescrito ao trabalho realizado: os conflitos, escolhas e preocupações que permeiam a atividade.

O instrumento proposto emerge numa experiência específica, realizada no campo hospitalar. No entanto, as possibilidades de uso do método não se restringem à análise e prevenção de acidentes com perfurocortantes, nem ao hospital público. Ao contrário, ao ser utilizado na análise de diversos tipos de acidentes e incidentes, pode ter como efeito ampliar a participação e o poder de ação de grupos de trabalhadores de outras inserções.

Ao final, são discutidos limites e possibilidades do método criado.

 

A construção do método da análise coletiva de acidentes: a produção de conhecimento no dia-a-dia de um serviço

Iniciando a abordagem qualitativa e participativa 

O método de análise coletiva de acidentes foi construído, passo a passo, numa experiência de colaboração do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense com a Comissão de Saúde do Trabalhador de um hospital público situado na cidade do Rio de Janeiro — o Hospital dos Servidores do Estado. Esta comissão (CST/HSE), criada em 1994, é um dos poucos serviços que funciona com a perspectiva de Saúde do Trabalhador, em unidades hospitalares do Rio de Janeiro.

Atuando nas diferentes frentes de intervenção da CST/HSE, nos defrontávamos com o nível baixo de participação e com a resistência dos funcionários em adotar novos modos de fazer. De acordo com os depoimentos de serviços dedicados à formação dos profissionais e à avaliação, tais como o de Educação Continuada e o de Epidemiologia, os projetos formativos de maior adesão são aqueles que apresentam problemas bem definidos a serem enfrentados, com perspectivas imediatas de solução, enquanto as propostas que exigem maior reflexão se chocam com o cansaço e a descrença, expressos na alegação de "falta de tempo" para participar.

A análise e a prevenção dos acidentes de trabalho com perfurocortantes e exposição a fluidos biológicos parece-nos um tema estratégico, capaz de estimular a participação. O acidente significa uma certa ruptura, dada por um evento indesejado, cuja problematização conduz à análise da atividade. Trata-se de uma questão que, em princípio, interessa a todos. Por outro lado, uma forma coletiva de analisar acidentes pode propiciar, além da gestão democrática da própria CST, a ampliação das possibilidades de trabalho coletivo no hospital.

O programa de controle e prevenção de acidentes do HSE surgiu, como proposta, em 1996, num seminário interno de saúde do trabalhador. Seguindo as decisões desse seminário, o programa foi iniciado com treinamentos em biossegurança; atendimento médico aos trabalhadores acidentados, para avaliação de risco de contaminação e administração de profilaxia adequada; e notificação dos acidentes de trabalho. A partir de 1997, os dados referentes aos acidentes notificados passaram a ser registrados e, em 1998, foram iniciadas as avaliações qualitativas dos acidentes, por meio de entrevistas com os trabalhadores acidentados.

De um universo de 265 acidentes registrados no período 1997/1998, 215 foram com perfurocortantes e exposição a fluidos; dentre estes últimos, 47,55% seriam evitáveis se observadas regras simples de segurança: ocorreram ao reencapar agulhas, manipular lixo dito não infectado, encontrar materiais perfurocortantes em locais inadequados, descartar perfurocortantes e manipular roupas hospitalares. Foram entrevistados 156 profissionais acidentados, permitindo o estudo também qualitativo do acidente. A análise do conjunto de dados obtidos nos conduziu às seguintes conclusões: em primeiro lugar, embora a maioria dos trabalhadores tivesse conhecimento das normas de segurança para o trabalho em hospital, tal conhecimento não era suficiente para garantir sua observância; em segundo, diversos acidentes se davam numa rede de eventos e conexões que incluía trabalhadores de inserções diversas, sendo impossível analisá-los limitando-se ao setor onde ocorreram, ao profissional acidentado ou à sua categoria profissional; terceiro, os trabalhadores, em especial os de enfermagem, citavam como fator importante na tomada de atitudes — que sabiam ser de risco — o "hábito bem aprendido" na época de sua formação; e, por último, os trabalhadores afirmavam que o compromisso com o doente se sobrepunha à preocupação com sua própria segurança. O "hábito" era uma explicação freqüente para o ato de reencapar uma agulha já utilizada, procedimento que causou aproximadamente 20,00% dos acidentes/ano desse tipo. Em seguida o profissional completava: "eu tenho medo de ferir alguém, andando com uma agulha desencapada pela enfermaria"; ou então: "eu estava preocupado em atender rapidamente o paciente e não prestei bastante atenção ao que fazia, aí pronto, fiz do jeito que aprendi há muito tempo, encapei a agulha" 9.

A estratégia de biossegurança em vigência é preconizada pelo CDC desde 1985, quando passou a fazer parte da formação básica do pessoal de saúde. Os treinamentos pertinentes foram implantados no HSE em 1996, mas continuaram a ser observadas ações semelhantes às anteriormente mencionadas, como as de reencapar agulhas. A cristalização de gestos dificulta o surgimento de novos modos de fazer.

Destes resultados se infere que a análise da atividade de trabalho não deve ter em conta apenas o que é feito, mas também os conflitos vividos pelo trabalhador na sua realização e os recursos subjetivos de que lança mão para chegar a uma solução. No estudo qualitativo foi constatada uma tensão entre as prescrições técnicas, relativas às normas de biossegurança e o sentido atribuído ao trabalho, o de cuidar do outro antes de cuidar de si próprio. Observamos também que, no percurso entre o trabalho prescrito, tecnicamente correto, e a atividade realizada, se interpõe o que o profissional denomina de "hábito": o trabalhador age de acordo com algo aprendido, automatizado, automatização esta que economiza o planejamento dos atos futuros.

O conflito entre cuidar de si ou do doente se torna freqüente com a progressiva intensificação do trabalho, a superposição de tarefas, as interferências repetidas no curso das mesmas e outras características da organização do trabalho que poderiam ser identificadas num enfrentamento coletivo das dificuldades atuais.

Necessita-se, portanto, de um método capaz de interferir positivamente na recriação de conteúdos cognitivos, propiciar a reorganização do trabalho e a formação de novos modos de fazer, reconhecendo os conflitos característicos da prestação de cuidados aos doentes e renovando os recursos subjetivos de que o trabalhador dispõe para essa transformação.

Recriando cenas e renovando conceitos e experiências

Desde o início desta experiência, a análise do acidente era realizada com base em entrevistas em que discutíamos com o trabalhador acidentado como havia se dado o acidente e que mudanças ele e seus colegas sugeririam, a fim de evitar sua repetição. Solicitávamos que nos mostrasse onde e como se dera o acidente, indagando como estava a enfermaria nesse dia, como estava a bancada, como era o doente que estava sendo atendido. E assim por diante, até que as respostas se tornassem repetitivas ou surgissem manifestações de cansaço. Esta recriação propiciava a menção a companheiros que, de diferentes formas, participaram da tarefa que provocara o acidente: "neste dia, estávamos de plantão eu e fulano; fomos juntos realizar o procedimento". Caso o profissional mencionado estivesse disponível, solicitávamos sua participação. Ao final, era feito um diagrama simples da pluralidade de seqüências de eventos que, segundo o trabalhador, culminaram no acidente.

O método da árvore de causas, amplamente reconhecido no âmbito da Saúde do Trabalhador no Brasil, foi nossa inspiração inicial. Este possibilita a construção de um diálogo entre os participantes, no intuito de apreender a dinâmica do acidente em seu encadeamento de múltiplas linhas, incluindo aquelas ligadas à organização do trabalho e à concepção de máquinas e instalações, a fim de evitar sua repetição 10. Dá lugar, nesse processo, ao reconhecimento da heterogeneidade dos saberes e experiências dos diversos profissionais envolvidos. Este modo de abordar o acidente é inteiramente diferente da forma acusatória, em que a apreensão da causa — em geral única — é entendida como descoberta da culpa e inclusive do culpado pelo dano/crime cometido. A análise da responsabilidade é pluricausal e se dissocia da imputação de culpa, enquanto a análise monocausal, ainda predominante no Brasil, tende a imputá-la ao próprio trabalhador acidentado 11. Aponta-se também, no método da árvore de causas, seu aspecto clínico, tomando cada acidente como um acontecimento particular, a ser tratado em sua singularidade 10. Assim, destitui-se o acidente do caráter "exemplar", que permite ver na análise do acidente um mero apoio aos processos denunciatórios, quer de culpas individuais, quer de más condições de trabalho. A denúncia de más condições de trabalho, embora muitas vezes necessária, apresenta limitações: leva a reivindicações de transformações de caráter geral, nem sempre atendidas, sem interferir na capacidade de ação e nos recursos subjetivos dos trabalhadores para essa ação.

No entanto, não adotamos a forma original do método 12, de descrição sistemática e minuciosa dos fatos antecedentes do acidente e das relações lógicas — de conjunção ou causa — entre estes. Visamos a uma recriação da atividade capaz de propiciar ao profissional uma descoberta de aspectos do seu trabalho que, em outros momentos, passavam despercebidos. Dado esse objetivo, a minuciosidade e a fidelidade têm uma importância secundária no diálogo que se instala.

A análise de acidentes desenvolvida nestes moldes é adequada para gerar informação para a ação no campo da vigilância de forma sistemática. Reconhece-se tanto a singularidade das situações como a dinâmica permanente dos ambientes de trabalho, estabelecendo-se em cada caso um processo específico, desenvolvido em aproximações sucessivas com abrangência cada vez maior. Estas características — análise em rede, aplicação grupal, funcionamento dialógico e adequação à Vigilância em Saúde do Trabalhador — foram valorizadas, no método em construção, a fim de expandir os limites de sua utilização como ferramenta de mudança.

Incluindo a atividade e a subjetividade como ferramentas conceituais para a análise do acidente

Outros referenciais teóricos nos permitiram avançar na perspectiva da transformação das situações de trabalho. A desejada ampliação do poder de ação exige a produção de novas subjetividades, de sujeitos capazes de inventar formas de enfrentar novas e velhas situações, confrontando-se com sua própria experiência e a de outros. Os dispositivos utilizados devem incidir sua ação sobre a experiência de trabalho, transformando-a, de modo a torná-la útil na construção de novas experiências. A mudança acontece na troca entre conceitos e experiências, tendo como protagonista o trabalhador, enquanto observador principal da atividade de trabalho. O especialista oferece apoio ao deslocamento do trabalhador para esse lugar de observador. Esta posição de protagonista é fundamental para a promoção da formação do trabalhador, com a renovação ou ampliação de recursos para desenvolver suas atividades cotidianas, inseridas numa nova visão das relações que compõem a atividade. O analista/pesquisador, com esta estratégia, alarga o conhecimento acerca do processo de trabalho hospitalar e, também, dos processos de subjetivação pertinentes.

Para melhor definir os objetivos do dispositivo em construção, cujo foco é analisar a atividade de trabalho, tomamos como referência a Clínica da Atividade 6. O trabalho é aí considerado uma situação de conflito — vital para a atividade — que recebe sempre soluções transitórias. Uma atividade sem contradições seria impossível de ser realizada. Entre o sujeito e seu objeto há o ambiente de trabalho em constante movimento, difícil de penetrar, onde ocorrem atividades outras sobre o mesmo objeto. Agir é sempre uma réplica a outras atividades, seja para desenvolvê-las, seja para recusá-las 13. A análise da atividade dirige-se, então, não apenas ao procedimento realizado, mas também às intenções que levaram àquelas escolhas.

A atividade de trabalho é sempre singular, sendo a recriação de situações que a pré-figuram. A busca de uma forma de agir pessoal consiste na busca de uma forma de agir que é maior que cada um, já que incorpora a ação do outro à ação prescrita. Os antecedentes sociais da atividade formam uma memória, objetiva e impessoal, que dá continente à atividade, fornecendo modelos de agir, oferecendo recursos para enfrentar situações que são generalizadas num ofício. Este trabalho social prévio à ação forma o gênero de cada ofício. Trata-se de algo dado a ser recriado na ação, convenções que são tanto recursos quanto constrangimentos a essa ação. Os gêneros profissionais momentaneamente estabilizados são um meio para se localizar no mundo do trabalho, saber como agir, evitando errar sozinho.

Cada trabalhador pertence simultaneamente a diversos gêneros, podendo ser, por exemplo, aquele de seu próprio ofício e um outro de líder sindical. Uma das bases da renovação da atividade reside no conflito entre diferentes gêneros, que possibilita o desenvolvimento tanto do gênero quanto das pessoas que trabalham.

Um outro eixo de análise da atividade está em considerar o significado e o sentido atribuído ao trabalho. Se retomarmos o caso do acidente com perfurocortantes, o sentido atribuído ao trabalho — de prestação de cuidados ao ser humano doente — é indispensável para a compreensão das escolhas feitas pelos trabalhadores a cada momento. Na busca de economia ou eficiência na ação 8 — premissa importante para permitir que outras ações tenham possibilidade de realização, o trabalhador escolhe caminhos adequados ao cuidado do outro, seja o outro o doente — seu objeto de trabalho — ou seu colega. A afirmativa dos profissionais acidentados entrevistados, de que sua função era cuidar dos doentes antes que de si próprios, nos remete a um sentido do trabalho em saúde como uma atividade dirigida a um objeto humano e nos auxilia na tarefa de estudar as relações entre as preocupações dos trabalhadores e suas ocupações, entre aspectos subjetivos e objetivos da atividade. A reorganização da atividade, necessária à prevenção de acidentes, exige tanto recursos materiais quanto recursos provenientes da renovação dos gêneros profissionais que sustentam esta atividade. Novos sentidos podem aí surgir e nossas ações devem propiciar oportunidades para essa renovação.

Na construção do método, nos servimos das teorias e métodos já existentes, sem pretender ser fiéis a estas fontes, buscando nelas caminhos apontados, possibilidades abertas, mesmo que nem sempre tenham sido plenamente exploradas.

 

O método da análise coletiva de acidentes

Neste método, a tarefa consiste em elucidar, para o outro e para si mesmo, as questões pertinentes ao curso de acontecimentos que levam, num dado momento, a um acidente. Essa elucidação é fruto de deslocamentos que se dão numa relação dialógica em que o trabalhador acidentado, como portador da experiência, dirige-se a si mesmo, a seus colegas e ao analista do trabalho. Por sua vez, o analista, como portador de conhecimentos e conceitos, dirige-se a si mesmo, a seus pares e aos trabalhadores implicados.

A análise da atividade de trabalho toma em consideração o que é feito, mas também o que se deixa ou se gostaria de fazer e o que se faz para evitar fazer alguma outra coisa; ou seja, abarca-se também as preocupações relacionadas à tarefa em questão. O trabalhador acidentado é visto como um nó da rede de relações de trabalho, envolvido numa atividade dirigida a si mesmo, ao(s) colega(s) e a seu objeto de trabalho — em última análise, o doente — mas eventualmente um material biológico em análise, uma máquina a ser regulada etc. O trabalho é entendido como uma ação em que participam seres humanos e objetos técnicos, arquitetônicos, não humanos, numa articulação reticular de solidariedade técnica 10. No trabalho em saúde, os trabalhadores e o objeto do trabalho são humanos. Os instrumentos de trabalho podem ser simples — agulhas, seringas, bisturis, recipientes para lixo — ou complexos — como uma aparelhagem de exame por imagem — e são também valorizados na recriação dos acontecimentos. A hierarquização dos diversos componentes da rede varia de acordo com as situações singulares analisadas.

Na construção da rede analítica do acidente, múltiplas situações encadeadas conduziram ao evento em foco. Nossa principal tarefa está em posicionar o trabalhador e seu grupo como observadores de seu próprio trabalho. A experiência servirá de instrumento para a renovação do modo objetivo e subjetivo de operar. O gênero profissional em questão pode ser renovado, ampliando-se a capacidade de ação dos trabalhadores, inclusive no referente à prevenção dos acidentes. As variações observadas nas situações de trabalho podem ser relacionadas tanto a eventos a serem evitados, quanto a inovações bem elaboradas e a renovações a serem incentivadas.

Nesta formulação, preconizamos que, no momento da aplicação do dispositivo, se mantenha o como na orientação do diálogo, evitando-se taticamente o porquê. Devem ser analisadas as circunstâncias de ocorrência do acidente quanto à relação do profissional com o doente, com os pares, com a hierarquia e com as condições materiais em que a tarefa era realizada. O como induz a recriar a memória, os traços dos gêneros profissionais; já o porquê pode propiciar justificativas, avaliações dos caminhos certos ou errados, prescritos ou não, e o retorno à tradição de busca de causas e culpados. O porquê cabe quando o diálogo acerca da atividade já foi estabelecido e torna-se possível ampliar a análise até as relações sociohistóricas que engendram determinados modos de fazer.

A "primeira etapa", já referida anteriormente, consiste em uma encenação do acidente, a fim de atualizar a memória do acidente, das regras e dos recursos que orientam o procedimento gerador do acidente. Entre as regras técnicas, éticas e de segurança — igualmente colocadas — pode haver conflitos. Durante e após a encenação, outros profissionais identificados como compondo a rede em questão são convidados a participar na atividade de análise, não tanto pela territorialidade do serviço ou da tarefa, mas pela rede singular a ser recriada.

Nesse primeiro momento dá-se a observação do trabalho pelo próprio trabalhador, como interlocutor de si mesmo, com sua memória e seus conhecimentos, mas também como interlocutor do analista do trabalho e dos pares que se agregarem à tarefa, enquanto elementos propiciadores do descolamento necessário à reflexão e à construção de novas formas de se relacionar com o trabalho. Há, nessa composição, o confronto de diferentes gêneros, experiências e conhecimentos. O fato do analista não ser do mesmo ofício origina um estranhamento acerca daquilo que, somente entre pares, seria óbvio, prescindindo de explicitação. As questões formuladas pelo analista orientam-se pelo que foi proposto pela psicologia do trabalho italiana para outros métodos de análise 13,14. Considera-se a relação com a tarefa, com os colegas de trabalho, com a hierarquia e com as organizações de classe existentes, além de outros caminhos sugeridos pelas situações encontradas.

A "segunda etapa" é o desenho, no papel, do diagrama das diversas linhas e cruzamentos que culminam no acidente. A função do analista nesta etapa é delicada, cuidando em suas intervenções de evitar palavras e imagens suas e não próprias da atividade em análise. Descrever a ação para o analista e para seu(s) colega(s) e ver desenhado no papel o entrecruzamento de eventos que conformam uma atividade, eventualmente, pode parecer simples, mas produz um efeito de distanciamento de si mesmo, permitindo conhecer seu trabalho e recriar seu modo singular de agir 15.

Com o diagrama esboçado, cada participante receberá material para copiá-lo, levando-o consigo para reelaborá-lo, o que constitui a "terceira etapa". Ao rever o trabalho realizado em grupo, poderá lembrar-se de aspectos importantes da situação em análise até então não mencionados, sugerir mudanças a serem implementadas ou fazer novas relações entre os pontos já incluídos. Estas reflexões devem ser anotadas e apresentadas na etapa seguinte. Nos métodos de análise do trabalho propostos por Clot, na França, redige-se um texto, cuja escritura provoca o pensar. Preferimos aqui adotar o suporte gráfico, acrescido de observações curtas, dada a resistência de grande parte dos trabalhadores brasileiros ao uso da palavra escrita.

Na "quarta etapa", as elaborações pessoais suscitadas pelo diagrama são postas em discussão e, quando indicado, são definidas providências a tomar. Pode-se então planejar parcerias no acompanhamento das providências e avaliar o alcançado durante o diálogo construído nas diversas etapas: os deslocamentos desde os pontos de vista iniciais até as considerações finais. Na terceira e quarta etapas pode haver uma elaboração importante capaz de introduzir inovações na atividade profissional.

Neste momento, assim como nas análises cumulativas de séries construídas de acidentes, retorna a questão do porquê ocorrem os acidentes. Se, na aplicação do método junto ao trabalhador, é o como que irá gerar a possibilidade de confrontação com sua atividade, questionando o porquê aconteceu pode-se chegar a importantes fatores sociais, técnicos e organizacionais que propiciaram o agravamento e o descontrole de uma dada situação de risco 11.

 

Possibilidades e limites do método no hospital público brasileiro

Nesta análise coletiva produz-se uma prática de co-gestão, com múltiplos objetivos: além de ações voltadas para a prevenção de acidentes, cria-se um dispositivo — um espaço coletivo — de formação profissional e de promoção da saúde. Temos, nas palavras de Campos 16 (p. 145), "um lugar onde se produziria aprendendo e, também, ao mesmo tempo, se reconstruiria a própria subjetividade". Neste percurso, o profissional de Saúde do Trabalhador recria também sua própria prática: desloca-se do lugar daquele que aconselha para o daquele que compartilha caminhos e soluções.

Na multiplicidade dos gêneros que se cruzam — o da atividade hospitalar, o da análise de acidentes e o científico, trazido pelos pesquisadores — os horizontes da atividade se deslocam com os sujeitos. Ao ser atravessada por outros gêneros, a atividade se descola do gênero onde ela se realiza habitualmente, tornando-o visível 15. No método aqui proposto, o pesquisador e o(s) colega(s) de trabalho não têm as mesmas questões, as mesmas certezas, as mesmas dúvidas; são diferentes do protagonista e entre si. Tais diferenças transparecem nos silêncios, nos momentos de impaciência ou nas modulações do tom de voz. Ao explicar ao outro o seu ponto de vista, seu trabalho cotidiano, o trabalhador acaba por descobrir algo novo em si mesmo, sem necessariamente ter procurado.

Com a construção do diagrama das seqüências entrecruzadas que levaram ao acidente, um dos objetivos já terá sido atingido, mesmo que parcialmente, pois terá ocorrido uma confrontação do trabalhador com sua atividade, propiciando uma melhor compreensão de sua participação na solução dos problemas de segurança. Além disso, as informações produzidas possibilitarão à CST a análise qualitativa do conjunto de acidentes ocorridos num dado intervalo de tempo. Esta, aliada à pesquisa epidemiológica, permite configurar uma nova formulação para a prevenção e o controle dos acidentes.

O método proposto objetiva uma reorganização da(s) tarefa(s) pelos coletivos profissionais, "uma recriação da organização do trabalho pelo trabalho de organização do coletivo" 15 (p. 9). Os trabalhadores, ao tomarem sua própria atividade profissional como objeto, recriam os gêneros que a atravessam, dando-lhes vitalidade e plasticidade. "O gênero pode assim permanecer vivo, conservar suas qualidades de instrumento para a ação, quando as condições em que a ação se dá se transformam. (...) o gênero de um meio profissional necessita receber manutenção constante. Ele se realiza e se revela somente nas variações que se formam ao longo de sua evolução" 15 (p. 16).

O caminho adotado potencializa os propósitos da Vigilância em Saúde do Trabalhador. Ao levar o trabalhador acidentado à posição de observador de sua própria atividade, a metodologia favorece a inclusão dos aspectos subjetivos, as intenções presentes nas escolhas que mediam o trabalho prescrito e o efetivamente realizado.

A experiência demonstra que a realização de observações diretas, entrevistas e reuniões com cipeiros e sindicalistas têm limitada eficácia na mudança da organização e condições do trabalho dentro e fora das fábricas por não envolver primordialmente o sujeito acidentado no desenvolvimento e na recriação da própria atividade.

Mas devemos analisar também ao menos um dos entraves com que podemos nos deparar na aplicação do método proposto. O trabalhador do hospital público brasileiro encontra-se pouco disposto a se auto-observar, tendendo a desenvolver uma atitude defensiva de alheamento e de descrença na sua capacidade de interferência. Tomar o acidente como ponto de partida pode auxiliar a vencer a dificuldade de mobilização.

Finalmente, enfatizamos que, neste entrecruzamento de gêneros, estão em análise a prática hospitalar, a prática da saúde do trabalhador no hospital e a prática da formação de novos trabalhadores em saúde. Entre os resultados pretendidos com esta proposta, encontra-se a democratização da gestão das ações em Saúde do Trabalhador, cujos efeitos poderão repercutir nas demais práticas em foco.

 

Considerações finais

O dispositivo de análise aqui proposto vem sendo construído, como dissemos no início, numa experiência concreta de pesquisa e intervenção. Estão em elaboração, não sendo ainda possível avaliar adequadamente a recepção da proposta pelos trabalhadores, seus efeitos sobre o processo de trabalho em hospital, ou mesmo seu efeito sobre a ocorrência de acidentes.

Este é o momento de procedermos a aplicação e aperfeiçoamento disciplinado do método, atividade que já iniciamos. Ao mesmo tempo, com este artigo, convidamos ao debate outros companheiros que militam no campo da Saúde do Trabalhador, em especial, no ambiente hospitalar.

 

Colaboradores

C. Osório realizou a coleta, a organização e a análise dos dados. Todos os autores participaram em conjunto da elaboração do artigo.

 

Referências 

1. Minayo-Gomez C, Thedim-Costa SMF. A construção do campo da saúde do trabalhador: percurso e dilemas. Cad Saúde Pública 1997; 13 Suppl 2:21-32.        

2. Centers for Disease Control and Prevention. Guidelines for prevention of transmission of HIV and HBV to healthcare and public-safety workers. Atlanta: US Department of Health and Human Services/Public Health Services; 1989.        

3. Rudah J, Poletto M, Almeida AS, Eickhoff CM, Fontana M. Acidentes biológicos em hospital universitário. Rev Méd Hosp São Vicente de Paulo 2000; 11:19-22.        

4. Gershon RR, Vlahov D, Felknor SA, Vesley D, Johnson PC, Delclos GL, et al. Compliance with universal precautions among health care workers at three regional hospitals. Am J Infect Control 1995; 4:225-36.        

5. Machado JHM. Processo de vigilância em saúde do trabalhador. Cad Saúde Pública 1997; 13 Suppl 2:33-45.        

6. Clot Y. La fonction psychologique du travail. Paris: PUF; 1999.        

7. Montmollin M. Vocabulaire de l'ergonomie. Toulouse: Octarès; 1997.        

8. Clot Y. De Vygotski à Léontiev via Bakhtine. In: Clot Y, editor. Avec Vygotski. Paris: La Dispute/ Snedit; 1999. p. 165-85.        

9. Chaves SMC; Osório-da-Silva C, Salvatierra MA, Muller AMC, Ferrari W, Nunes J, et al. Integrating care and prevention: accidental on occupational exposures to blood and body fluids in a general hospital. In: The 4th ICOH — International Conference on Occupational Health for Health Care Workers, Keynote Addresses and Abstracts. Montreal: Régie Régionale de la Santé et des Services Sociaux de Montréal; 1999. p. WP-17.        

10. Dodier N. Les hommes et les machines. Paris: Métailié; 1995.        

11. Machado JMH, Porto MFS, Freitas CM. Perspectivas para uma análise interdisciplinar e participativa de acidentes (AIPA) no contexto da indústria de processos. In: Machado JMH, Porto MFS, Freitas CM, organizadores. Acidentes industriais ampliados. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2000. p. 49-81.        

12. Binder MCP, Monteau M, Almeida IM. Árvore de causas: método de investigação de acidentes de trabalho. São Paulo: Publisher Brasil Editora; 1996.        

13. Clot Y, Soubiran M. "Prendre la classe": une question de style? Société Française 1998; 12/13:78-88.        

14. Oddone I, Re A, Briante G. Redécouvrir l'expérience ouvrière: vers une autre psychologie du travail? Paris: Messidor; 1981.        

15. Clot Y. Genres et styles en analyse du travail. Concepts et méthodes. Travailler: Revue Internationale de Psychopathologie et de Psychodynamique du Travail 2000; 4:7-42.        

16. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Editora Hucitec; 2000.        

 

 

Endereço para correspondência
C. Osório
Departamento de Psicologia
Universidade Federal Fluminense
Praça Leoni Ramos s/n, Bloco O
Niterói, RJ 24210-200, Brasil
claudiaosorio@terra.com.br

Recebido em 03/Fev/2004
Versão final reapresentada em 17/Set/2004
Aprovado em 05/Out/2004

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br