CARTAS LETTERS

 

Desigualdades raciais e saúde: questões sobre o processo de racialização

 

Racial inequalities and health: questions concerning the racialization process

 

 

Simone MonteiroI; Livio SansoneII

IInstituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIUniversidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

A resenha de Isabel Cristina Fonseca Cruz (Cad Saúde Pública 2004; 20:1767-9) destaca o propósito dos organizadores da coletânea Etnicidade na América Latina: Um Debate sobre Saúde e Direitos Reprodutivos 1, qual seja, incrementar a reflexão sobre as interfaces entre "raça", etnicidade, saúde e desigualdades sociais, a partir das ciências sociais e da saúde, realçando a originalidade e qualidade dos trabalhos. Ademais reconhece que o objetivo do livro foi o de conjugar a visão de profissionais oriundos de instituições acadêmicas e de movimentos sociais.

No entanto, na qualidade de organizadores da coletânea, faz-se necessário ressaltar dois pontos. O primeiro, diz respeito a um equívoco de interpretação da autora da resenha em relação ao capítulo de Marcos Chor Maio 2, intitulado Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil: Um Debate sobre o Pensamento Higienista do Século XIX. Cruz afirma que Maio "extrai argumentos históricos para fundamentar que os médicos estiveram comprometidos com projetos políticos racistas, como por exemplo, a incentivação [sic] da imigração européia em detrimento da inclusão da mão-de-obra negra no sistema capitalista emergente" (p. 1768). Esta, na verdade, é a perspectiva adotada por Sidney Chalhoub, em seu livro Cidade Febril 3, criticada por Maio em face da abordagem reducionista do historiador no que tange às relações entre pensamento médico, interesses de classes sociais, ideologias raciais e políticas de saúde pública. Para Chalhoub, o higienismo teve um papel central na configuração de um quadro racializado no âmbito das políticas de saúde pública, expresso pela dicotomia: enfrentamento da febre amarela ("doença dos imigrantes brancos") versus indiferença à tuberculose ("doença dos negros"). Logo na terceira página do capítulo, Maio 2 (p. 17-8) revela a autonomia do pensamento médico-sanitário a-racialista, em face ao mundo dos interesses, argumentando que "diferentemente de Chalhoub, (...) nas duas primeiras décadas do século XX, momento em que explode o debate sobre saúde pública, o higienismo — assentado em princípios da bacteriologia e da microbiologia — manteve elos de continuidade com o ideário neo-hipocrático do século XIX no Brasil, particularmente no que tange à recusa a chaves explicativas de natureza racial". Ao propor um debate historiográfico, não resta dúvida que Maio relativiza a perspectiva racializada na esfera da saúde pública, diferente do que foi assinalado por Cruz.

O segundo ponto crítico da resenha refere-se à utilização da frase "expressão do pensamento do grupo étnico hegemônico" (p. 1768) na abordagem dos capítulos de Peter Fry 4 (As Aparências que Enganam: Reflexões Sobre "Raça" e Saúde no Brasil) e de Mônica Grin 5 (Políticas Públicas e Desigualdade Racial: Do Dilema à Ação). Como não há qualquer argumento substantivo na resenha que justifique tal atribuição aos trabalhos em tela, esta qualificação adquire um tom de categoria de acusação e, desta forma, não contribui para o enriquecimento da discussão acerca das inter-relações entre assimetrias raciais, desigualdades sociais e os agravos à saúde no Brasil.

A visibilidade adquirida pela temática das relações raciais no âmbito científico e político, em anos recentes, tem revelado posições distintas sobre as estratégias de enfrentamento das desigualdades raciais no contexto brasileiro. Tais enfoques são, sem dúvida, um estímulo à continuidade do debate, a despeito das diferenças.

 

1. Monteiro S, Sansone L, organizadores. Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004.

2. Maio MC. Raça, doença e saúde pública no Brasil: um debate sobre o pensamento higienista do século XIX. In: Monteiro S, Sansone L, organizadores. Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 15-44.

3. Chalhoub S. Cidade febril. São Paulo: Companhia das Letras; 1996.

4. Fry P. As aparências que enganam: reflexões sobre "raça" e saúde no Brasil. In: Monteiro S, Sansone L, organizadores. Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 121-35.

5. Grin M. Políticas públicas e desigualdade racial: do dilema à ação. In: Monteiro S, Sansone L, organizadores. Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 331-44.

 

 

Endereço para correspondência
S. Monteiro
Departamento de Biologia
Instituto Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz
Av. Brasil 4365
Rio de Janeiro, RJ
21045-900, Brasil
msimone@ioc.fiocruz.br

Recebido em 24/Jan/2005
Aprovado em 27/Jan/2005

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br