FÓRUM FORUM

 

Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil

 

Epidemiologic aspects of racial inequalities in health in Brazil

 

 

Dóra ChorI; Claudia Risso de Araujo LimaII

IEscola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IISecretaria Executiva, Ministério da Saúde, Brasília, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Evidências empíricas nas áreas de educação, trabalho e justiça indicam que a discriminação racial é fator estruturante das desvantagens econômicas e sociais enfrentadas por minorias étnico-raciais no Brasil. Apesar disso, as desigualdades étnico-raciais, no âmbito da saúde, têm sido pouco investigadas. Apresentam-se indicadores que demonstram que as categorias raciais predizem, de forma importante, variações na mortalidade. A mortalidade precoce predomina entre indígenas e pretos; os níveis de mortalidade materna e por doenças cerebrovasculares são mais elevados entre as mulheres pretas; e no capítulo das agressões, os homens jovens pretos apresentam ampla desvantagem. Entre as possíveis causas das desigualdades étnico-raciais em saúde, destacam-se as diferenças sócio-econômicas que se acumulam ao longo da vida de sucessivas gerações. Sugere-se que a discriminação racial, com seus efeitos próprios na saúde, encontra-se na origem de grande parte dessas desigualdades. Instrumentos diretos e indiretos de avaliação do impacto da discriminação racial na saúde são discutidos. Propõe-se que o estudo do impacto, na saúde, das inter-relações entre classe social e raça é um campo promissor para a investigação e intervenção nas desigualdades de saúde.

Preconceito; Grupos Étnicos; Discriminação Racial


ABSTRACT

In Brazil, data on education, the labor market, and the law enforcement and court systems have already documented that racial discrimination is a structural factor underlying economic and social disadvantages experienced by racial/ethnic minorities. However, racial inequalities in health have received little investigation. According to health indicators presented in this paper, race is a strong predictor of variability in mortality. Early mortality is more frequent among indigenous and black Brazilians; mortality rates from stroke and especially maternal mortality rates are exceedingly higher among black women; violence occurs predominantly among young black men. Lifetime socioeconomic differences across successive generations have been identified as the main cause of racial inequality in health. It is also suggested that racial discrimination and its impact on health are at the origin of these inequalities. Instruments to directly or indirectly measure the impact of racial discrimination on health are discussed. The article suggests that investigation of the impact of both social class and race on health is the most productive approach, both for research as well as for policies to address health inequalities.

Prejudice; Ethnic Groups; Racial Discrimination


 

 

Introdução

As desigualdades étnico-raciais vêm adquirindo relevância ainda maior na produção de diferentes perfis de doença em função de recentes e surpreendentes acontecimentos mundiais. Em períodos anteriores, a escravidão e a colonização representaram o contexto em que se originaram essas desigualdades, desfavoráveis para minorias populacionais 1. Nas últimas décadas, guerras por motivos étnicos, religiosos e territoriais, assim como mudanças político-econômicas radicais têm causado a migração de milhões de pessoas, que recomeçam suas vidas como estrangeiros, estranhos, desconhecidos. O renovado impacto de barreiras sociais, econômicas e culturais nas condições de vida e saúde de grupos étnico-raciais distintos deve, portanto, ter lugar destacado na agenda epidemiológica internacional.

No caso do Brasil, que apresenta o maior contingente de afro-descendentes fora do continente africano 2, a escravidão deixou suas marcas na posição social de sucessivas gerações da população negra 3. Quanto aos povos indígenas, também foram submetidos à escravidão (antes mesmo do tráfico negreiro), além de epidemias de doenças infecciosas que resultaram em grande mortalidade e desorganização social. A migração indígena para cidades brasileiras, fenômeno mais recente, perpetua sua situação de marginalidade sócio-econômica 4. Apesar dessa realidade, as desigualdades étnico-raciais, no âmbito da saúde, têm sido pouco investigadas no Brasil, ao contrário de outros campos como o da educação, mercado de trabalho e justiça. Por exemplo, somente em 1995/1996 o campo raça/cor foi incluído em dois sistemas de registro contínuo (Sistema de Informação sobre Mortalidade e Sistema de Informação sobre Nascimentos), de acordo com as categorias adotadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (Portaria n. 3.947/GM. Diário Oficial da União 1999; 14 jan). A análise e interpretação desses dados ainda são escassas na literatura epidemiológica nacional ao contrário de outros países, como Estados Unidos e Inglaterra, onde a raça/etnia tem sido um importante eixo no estudo das desigualdades de saúde 5,6.

Duas questões costumam ser citadas como obstáculos ao estudo de desfechos de saúde segundo o recorte étnico-racial no Brasil: a definição de raça e os problemas de classificação 7,8.

Tradicionalmente, o conceito de raça era definido em termos de diferenças supostamente genéticas entre grupos. No entanto, os enormes avanços ocorridos na biologia molecular, nas últimas décadas, permitiram estimar que apenas 7,0% do total da variação genética humana é encontrada entre as raças 9,10. Além disso, um número muito reduzido de diferenças genéticas relacionadas a condições de saúde foi identificado até agora entre os grupos étnico-raciais 9. Entretanto, embora não seja útil como categoria biológica, raça é um importante constructo social, que determina identidades, acesso a recursos e a valorização da sociedade. Assim, interagindo com outros marcadores de posição social (exemplo: gênero, educação, renda), a raça contribui para a maior ou menor exposição a diferentes riscos à saúde 11.

Um dos problemas de classificação mais freqüentemente citado refere-se à ausência de consenso quanto à melhor categorização étnico-racial no Brasil, assim como em outros países 12. Ao considerarmos raça/etnia como conceitos sócio-culturais, entretanto, a idéia de um "padrão-ouro" não se aplica: trata-se de encontrar a classificação mais adequada a cada contexto histórico-social, bem como a estratégia (exemplo: autoclassificação vs. classificação realizada por terceiro) que alcance resultados adequados aos objetivos de cada investigação.

No Brasil, diversos autores têm chamado a atenção para o fato de que as categorias utilizadas nos censos do IBGE (branca, preta, amarela, parda, indígena) correspondem à maior parte dos termos utilizados pela população em perguntas abertas, utilizadas para autoclassificação étnico-racial 1,3. É possível que a ascensão do movimento social negro e o debate sobre políticas de promoção da igualdade racial no Brasil contribuam cada vez mais para diminuir "tendências branqueadoras" de autoclassificação étnico/racial.

 

Indicadores de saúde segundo raça/etnia no Brasil

Nesse tópico, alguns indicadores de saúde são apresentados de acordo com o recorte étnico-racial. No caso da mortalidade específica por grupos etários, foram selecionadas as faixas etárias de 15-29 e 40-69 anos de idade, a título de exemplo. A fonte de dados de mortalidade foi o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM – http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sim/dados/cid 10_indice.htm, acessado em 05/Mar/ 2004); para os nascidos vivos, utilizou-se o Sistema de Informações sobre Nascimentos (SINASC – http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sinasc/dados/nov_indice.htm, acessado em 05/Mar/2004); e para os denominadores dos indicadores, foi utilizada a população do Censo Demográfico, disponibilizada pelo IBGE (http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/listabl.asp?z=t&o=1&i=P&e=1&c= 1646, acessado em 05/Mar/2004).

O preenchimento do campo raça/cor no SIM e no SINASC vem melhorando continuamente (Figura 1). Em 2001, a proporção ignorada foi 13,7% no SIM e 11,9% no SINASC, níveis compatíveis com investigações que incluam essa característica.

Em que pesem as potenciais limitações dos dados (exemplo: critérios adotados para classificação de raça na declaração de óbito; proporção variável de raça/etnia ignorada em determinadas causas de mortalidade), é possível evidenciar um padrão semelhante àquele identificado em pesquisas anteriores, realizadas em algumas regiões do país 4,13,14,15: as categorias raciais predizem, de forma importante, variações na mortalidade. Os piores indicadores de mortalidade, em termos de sua distribuição etária (Figura 2) ou magnitude de causas evitáveis de óbitos (exemplo: mortalidade materna), são apresentados por pretos e indígenas. Além disso, a proporção de óbitos por causas mal definidas e também aqueles sem assistência médica podem ser considerados evidências das diferenças entre os grupos étnico-raciais, no que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde e/ ou tratamento. Por exemplo, em 2001, a proporção de óbitos sem assistência médica entre os indígenas foi de 9,0%, comparada a 6,0% entre brancos. Os mesmos grupos apresentaram a pior e a melhor proporção de causas mal definidas: 25,0% entre os indígenas e 10,0% entre brancos.

Apesar da melhoria da esperança de vida ao nascer, que já ultrapassa os 70 anos de idade, a tradicional Curva de Nelson de Moraes ainda capta importantes diferenças na mortalidade proporcional segundo faixas etárias entre os grupos étnico-raciais (Figura 2). O melhor perfil é apresentado pela raça amarela, com a menor proporção de óbitos em menores de um ano (3,0%) e a maior proporção na população com mais de 50 anos de idade (82,0%). No outro extremo, encontra-se a população indígena, com a maior mortalidade infantil relativa (17,0%) e a menor mortalidade proporcional no grupo mais idoso (47,0%). Brancos, pretos e pardos situam-se próximos à raça amarela em relação à proporção de óbitos infantis, enquanto pretos e pardos estão em posição intermediária no que tange à mortalidade relativa entre maiores de 50 anos de idade. Chama a atenção, ainda, a situação de jovens e adultos jovens (entre 20 e 49 anos) pardos e pretos, cuja mortalidade proporcional é mais elevada e exibe padrão distinto daquele observado nos outros grupos.

Nas Figuras 3 a 6, apresentamos as cinco primeiras causas de óbito por sexo, nos dois grupos etários selecionados, incluindo apenas brancos, pretos e pardos. Isso porque a população e o número de óbitos relativamente pequenos na raça amarela e indígena fornecem taxas instáveis. Por exemplo, a taxa de mortalidade por AIDS entre as jovens (15-29 anos de idade) da raça amarela foi a mais alta (10,3 por 100 mil), comparada aos outros grupos raciais, embora apenas dez óbitos tenham ocorrido em 2000. Além disso, observamos também que o número de informações ignoradas no campo raça/cor do SIM varia segundo a causa específica de óbito, o que torna ainda mais difícil hierarquizar a magnitude da mortalidade no caso dos grupos menos numerosos. Assim, estudos adicionais são necessários, com maior período de observação, para a comparação de todos os grupos étnico-raciais.

Entre os homens de 15 a 29 anos de idade, chama a atenção, em primeiro lugar, a mortalidade por agressões nos três grupos raciais, cuja magnitude elevada não seria esperada entre indivíduos tão jovens. De fato, o nível alcançado por agressões nesse grupo etário é semelhante à mortalidade observada, por outras causas, entre os mais velhos, na faixa de 40 a 69 anos de idade (Figura 5). No entanto, pretos e pardos morrem cerca de duas vezes mais por agressões do que os brancos, com taxas de mortalidade de 136, 111, e 72 por 100 mil habitantes, respectivamente (Figura 3). Acidentes de transporte, suicídios e doença por vírus da imunodeficiência humana (HIV) constituem as outras causas importantes, sem diferenças expressivas entre os grupos raciais.

A magnitude da mortalidade entre mulheres jovens (15 e 29 anos de idade) é substancialmente menor do que aquela apresentada pelos homens do mesmo grupo etário (< 8 por 100 mil habitantes) (Figura 4). Embora a taxa de mortalidade por doença por vírus da imunodeficiência humana (HIV) entre mulheres pretas seja cerca de duas vezes maior do que entre pardas ou brancas, o pequeno número de óbitos nessa faixa etária não permite valorizar essa diferença.

O perfil de mortalidade dos grupos raciais nos homens entre 40 e 69 anos de idade também é diferente (Figura 5): entre pretos, predominam as doenças cerebrovasculares, mais associadas à pobreza em períodos precoces da vida do que a doença isquêmica do coração 16,17. Esta, por sua vez, representa a primeira causa de óbito entre brancos. Doenças do fígado, acidentes de transporte e diabetes mellitus completam as causas mais importantes nesse grupo.

Nas mulheres pretas, entre 40 e 69 anos de idade, a taxa de mortalidade por doenças cerebrovasculares (115 por 100 mil) é cerca de duas vezes maior do que entre brancas (58 por 100 mil) e pardas (54 por 100 mil) (Figura 6). Da mesma forma, a mortalidade por doença hipertensiva e por diabetes mellitus é muito mais expressiva entre as mulheres pretas. Quanto à mortalidade por neoplasia maligna de mama, a magnitude é equivalente entre brancas (28 por 100 mil) e pretas (22 por 100 mil), e maior do que em mulheres pardas (14 por 100 mil).

Cabe destacar ainda a importante diferença entre as taxas de mortalidade materna nas capitais, cujas informações são consideradas de melhor qualidade do que aquelas relativas ao conjunto do país. Entre as mulheres pretas, em 2001, a taxa foi cerca de sete vezes maior (275 por 100 mil nascidos vivos) do que entre mulheres brancas (43 por 100 mil nascidos vivos), ou pardas (46 por 100 mil nascidos vivos) (dados não apresentados graficamente).

 

Desigualdades raciais em saúde: por quê?

Características genéticas (vide Introdução) e diversidade cultural têm contribuído pouco para explicar os fortes contrastes da morbi-mortalidade de acordo com o recorte étnico-racial 9. Por outro lado, há evidências de que diferenças sócio-econômicas, que se acumulam ao longo da vida de sucessivas gerações, constituem explicação fundamental – embora não exclusiva – para as desigualdades étnico-raciais em saúde no Brasil e em outros países 4,9,18,19.

Na Inglaterra, o quarto Inquérito Nacional de Minorias Étnicas de 1999 evidenciou diferenças importantes no risco de adoecer entre imigrantes indianos, africanos e asiáticos, oriundos do Paquistão ou de Bangladesh, e imigrantes oriundos do Caribe 5. O ajuste estatístico por indicadores de condições materiais de vida reduziu, mas não eliminou essas diferenças, demonstrando que não explicam totalmente o excesso de risco. Nos Estados Unidos, em 1995, os filhos de mulheres negras apresentaram maiores taxas de mortalidade infantil e baixo peso ao nascer do que os filhos de mulheres brancas. Estratificando-se pela escolaridade materna, as diferenças raciais persistiram e apresentaram padrão inesperado, já que, no estrato de maior escolaridade, observou-se a maior diferença entre mães brancas e negras. Assim, comparando-se negras e brancas com nível secundário incompleto, a mortalidade infantil foi duas vezes maior entre as negras; no caso das mulheres com curso universitário completo, essa diferença foi três vezes maior 20.

Segundo Krieger 21, na origem de grande parte das desigualdades étnico/raciais, encontra-se a discriminação racial, com seus efeitos próprios na saúde. De acordo com essa proposição, a desvantagem econômica e social seria um dos mecanismos através do qual a discriminação contribui para as desigualdades raciais de saúde. A maior exposição a substâncias tóxicas em ambientes menos saudáveis, a assistência à saúde inadequada ou degradante e as experiências diretas de atos ou atitudes de discriminação seriam outros meios pelos quais a discriminação racial exerceria seu impacto nessas desigualdades.

 

Existe discriminação racial no Brasil?

Desde a década de 70, cientistas sociais brasileiros têm investigado as desigualdades raciais por meio da comparação da mobilidade social, grau de instrução e inserção no mercado de trabalho, entre outras características. Segundo Telles 1, os estudos de Carlos Hasenbalg, José Pastore e Nelson do Valle e Silva que demonstraram ampla desvantagem para os negros na mobilidade social, estudos de Nelson do Valle e Silva que revelaram que a disparidade de renda entre brancos e negros não é explicada somente por diferenças de capital humano (exemplo: sexo, idade, escolaridade) e os resultados de sua própria investigação sobre maior evasão escolar de crianças negras quando comparadas a seus irmãos mais claros convergem no sentido de evidenciar alguns dos mecanismos através dos quais a discriminação racial afeta as condições de vida dos brasileiros negros.

Uma vez que as evidências indicam que a discriminação racial é um dos fatores estruturantes das desvantagens econômicas e sociais enfrentadas por minorias étnico-raciais no Brasil, como captar seus efeitos na saúde? A discriminação racial tem sido definida como tratamento diferenciado em função da raça (ou em função de outros fatores insuficientemente justificados), que coloca em desvantagem grupos raciais específicos 22. Nos Estados Unidos, medidas diretas de discriminação racial já foram incorporadas a estudos epidemiológicos, por meio de questionários específicos, possibilitando a identificação de suas associações com hipertensão arterial, depressão e auto-avaliação do estado de saúde 23,24. Nessas investigações, observou-se um padrão consistente de desvantagem para os negros, que relataram experiência direta de discriminação racial.

Em estudo longitudinal conduzido entre funcionários de uma universidade no Rio de Janeiro – Estudo Pró-Saúde –, itens específicos a respeito de discriminação por raça, entre outras características, foram incorporados a um questionário multidimensional e autopreenchível 25. Nesse estudo, estimou-se chance 50,0% maior de hipertensão arterial (OR = 1,50; IC95%: 1,06-2,13) entre funcionários que se autoclassificaram, em conjunto, como pretos, negros ou pardos, e que relataram experiência direta de discriminação racial, comparados ao mesmo conjunto racial que não relatou esse tipo de experiência. A magnitude dessa associação variou inversamente com o nível de escolaridade (associação mais forte entre participantes com primeiro grau ou menos), sugerindo que condições sócio-econômicas desfavoráveis potencializam o efeito da discriminação racial no risco de hipertensão. Segundo os autores, além dessa possível interação com as condições materiais de vida, a relação entre a discriminação racial e a hipertensão arterial ocorreria por meio do estresse crônico, que tem efeito direto sobre os níveis da pressão arterial e pode influenciar também os comportamentos de saúde relacionados à hipertensão (exemplo: consumo de álcool, dieta, sedentarismo). De forma adicional, a assistência médica discriminatória poderia também dificultar o diagnóstico e o controle da hipertensão.

Se questionários específicos constituem medidas diretas de discriminação, o estudo da distribuição de exposições e desfechos de saúde segundo raça/etnia possibilita sua avaliação indireta. Essa proposição baseia-se no fato de que, em análises de exposições e desfechos segundo raça, a discriminação racial estaria subjacente às desigualdades encontradas 21.

 

Comentários finais

É possível sugerir algumas hipóteses para explicar a escassez de investigações epidemiológicas a respeito da distribuição de agravos segundo raça/etnia e também sobre sua associação com desfechos de saúde no Brasil: (1) a aceitação do "mito da democracia racial", que pode ter influenciado a carência de perguntas acadêmicas relacionadas à raça/etnia, consideradas pouco relevantes, desnecessárias, e até incorretas do ponto de vista ideológico; (2) as dificuldades de classificação étnico-racial e a necessidade de lidar com erros de medida; (3) a oposição entre "classe ou raça", como se o estudo da dimensão sócio-econômica contemplasse o conjunto de significados da dimensão étnico-racial.

As evidências empíricas já acumuladas a respeito das amplas desigualdades étnico-raciais no Brasil, a atuação dos movimentos sociais organizados e o amplo debate a respeito do tema vêm resultando em gradual desmistificação da idéia de "democracia racial" no Brasil. Assim, acreditamos que as desigualdades étnico-raciais em saúde passarão a ocupar um papel mais expressivo na agenda de pesquisas epidemiológicas no país, a fim de preencher importante lacuna no conhecimento das condições de saúde da população. Nesse sentido, uma etapa importante a ser cumprida é a inclusão do campo raça/cor em outros bancos de dados nacionais, além do SIM e SINASC (exemplo: Sistema de Informações Hospitalares e Módulo de Procedimentos de Alto Custo/Complexidade), que tornará possível o contraste de perfis epidemiológicos ao longo do tempo e ainda a avaliação da eqüidade na utilização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos, tema bastante explorado em outros países 26.

Em estudos epidemiológicos, a preocupação com erros de classificação deve ser constante. Em relação a exposições – entre elas, raça/etnia –, desfechos e co-variáveis, é preciso tentar identificar a direção do erro e especular a respeito de seu impacto nos resultados encontrados. Assim, diante das amplas desigualdades raciais já identificadas em outras dimensões sociais, não nos parece razoável deixar o tema inexplorado em função das limitações de estratégia (exemplo: autoclassificação vs. classificação por entrevistador) ou da operacionalização do constructo. Segundo Bastos 27 (p. 15-6), a incorporação da classificação do IBGE, aos estudos no âmbito da saúde, "...seria já de grande valia, no sentido de mapear o terreno para análises futuras mais refinadas".

No âmbito da pesquisa epidemiológica, a oposição classe social ou raça, como explicações mutuamente exclusivas, não tem contribuído para a compreensão abrangente das desigualdades de saúde. Em sociedades como a brasileira, na qual relações de classe são racializadas e relações raciais são dependentes da classe social, a pesquisa epidemiológica deve buscar elucidar o impacto, na saúde, das desigualdades sócio-econômicas e raciais. O estudo das inter-relações entre essas dimensões parece ser um caminho mais promissor tanto do ponto de vista do conhecimento científico quanto de políticas públicas direcionadas a minorar as desigualdades de saúde.

 

Colaboradores

D. Chor planejou o artigo, realizou a análise de dados e redigiu o texto final. C. R. A. Lima tabulou, analisou os dados apresentados e participou da redação do texto final.

 

Agradecimentos

Estudo financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq 471129/ 03-8).

 

Referências

1. Telles E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 2003.        

2. Hasenbalg CA, Silva NV. Notes on racial and political inequality in Brazil. In: Hanchard M, editor. Racial politics in contemporary Brazil. Durham/ London: Duke University Press; 1999. p. 154-78.        

3. Hasenbalg CA, Silva NV. Estrutura social, mobilidade e raça. São Paulo: Vértice; 1988.        

4. Coimbra Jr. CEA, Santos RV. Saúde, minorias e desigualdades: algumas teias de inter-relações, com ênfase nos povos indígenas no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 1988; 5:125-32.        

5. Nazroo JY. The structuring of ethnic inequalities in health: economic position, racial discrimination, and racism. Am J Public Health 2003; 93: 277-84.        

6. Williams DR. Racial variation in adult health status: patterns, paradoxes, and prospects. In: Smelser NJ, Wilson WJ, Mitchell F, editor. America becoming: racial trends and their consequences. v. II. Washington DC: National Academy Press; 1996. p. 371-410.        

7. Travassos C, Williams DR. The concept and measurement of race and their relationship to public health: a review focused on Brazil and the United States. Cad Saúde Pública 2004; 20:660-78.        

8. Maio MC, Monteiro S, Chor D, Faerstein E, Lopes CS. Cor/raça no Estudo Pró-Saúde: resultados comparativos de dois métodos de autoclassificação no Rio de Janeiro. Cad Saúde Pública 2005; 21:171-80.        

9. Pearce NP, Foliaki S, Sporle A, Cunningham C. Genetics, race, ethnicity, and health. BMJ 2004; 328:1070-2.        

10. Pena SDJ, Bortoloni MC. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Estud Av 2004; 18:31-50.        

11. Williams DR. Race and health: basic questions, emerging directions. Ann Epidemiol 1997; 7:322-33.        

12. Williams D. The monitoring of racial/ethnic status in the USA: data quality issues. Ethn Health 1999; 4:121-37.        

13. Batista LE. Pode o estudo da mortalidade denunciar as desigualdades raciais? In: Barbosa LMA, Silva PBG, Silvério VR, organizadores. De preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos: EdUFSCar; 2003. p. 243-60.        

14. Martins AL, Tanaka ACD. Mulheres negras e mortalidade materna no estado do Paraná, Brasil, de 1993 a 1998. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum 2000; 10:27-38.        

15. Santos RV, Coimbra Jr. CEA. Cenários e tendências da saúde e da epidemiologia dos povos indígenas no Brasil. In: Coimbra Jr. CEA, Santos RV, Escobar AL, organizadores. Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 13-47.        

16. Lawlor DA, Smith GD, Leon DA, Sterne JA, Ebrahim S. Secular trends in mortality by stoke subtype over the twentieth century: resolution of the stroke-coronary heart disease paradox? Lancet 2002; 360:1818-23.        

17. Kuh D, Ben-Shlomo Y. A life course approach to chronic disease epidemiology. 2nd Ed. New York: Oxford University Press; 2004.        

18. Chor D, Faerstein E, Kaplan GA, Lynch JW, Lopes CS. Association of weight change with ethnicity and life course socioeconomic position among Brazilian civil servants. Int J Epidemiol 2004; 33:100-6.        

19. Barros FC, Victora CG, Horta BL. Ethnicity and infant health in Southern Brazil. A birth cohort study. Int J Epidemiol 2001; 30:1001-8.        

20. Williams D. Racial/ethnic disparities in health. In: Racial, ethnic and socioeconomic disparities in health Conference: implications for action. http://www.cbcn.ca/english/news.php?show&923 (acessado em Mai/2004).        

21. Krieger N. Does racism harm health? Did child abuse exist before 1962? On explicit questions, critical science, and current controversies: an ecosocial perspective. Am J Public Health 2003; 93:194-9.        

22. Blank RM, Dabady M, Citro CF. Measuring racial discrimination: painel on methods for assessing discrimination. http://www.nap.edu/openbook/0309091268/html/R3.html (acessado em 20/Mai/ 2004).        

23. Krieger N, Sidney S. Racial discrimination and blood pressure: the CARDIA study. Am J Public Health 1996; 86:1370-8.        

24. Jackson JS, Brown TN, Willimas DR, Torres M, Sellers SL, Brown K. Racism and the physical and mental health status of African Americans: a thirteen year national panel study. Ethn Dis 1996; 6:132-47.        

25. Faerstein E, Chor D, Werneck G, Lopes C, Lynch J, Kaplan G. Race and perceived racism, education, and hypertension among Brazilian civil servants [abstract]. Am J Epidemiol 2004; 159:35.        

26. Bach PB, Pham HH, Schrag D, Tate RC, Hargraves JL. Primary care physicians who treat blacks and whites. N Engl J Med 2004; 351:575-84.        

27. Bastos FI. A feminização da epidemia de AIDS no Brasil: determinantes estruturais e alternativas de enfrentamento. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS; 2001. (Coleção ABIA: Saúde Sexual e Reprodutiva 3).        

 

 

Endereço para correspondência
D. Chor
Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde
Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz
Rua Leopoldo Bulhões 1480
Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil
dorinha@ensp.fiocruz.br

Recebido em 06/Jan/2005
Aprovado em 01/Fev/2005

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br