REVISÃO REVIEW

 

Teste tuberculínico na estimativa da prevalência de infecção por Mycobacterium tuberculosis em populações indígenas do continente americano: uma revisão da literatura

 

Tuberculin skin test to estimate the prevalence of Mycobacterium tuberculosis infection in indigenous populations in the Americas: a literature review

 

 

Paulo Cesar Basta; Luiz Antonio Bastos Camacho

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Realizou-se revisão sistemática da literatura sobre trabalhos que utilizaram PPD para estimar a prevalência e o risco de infecção tuberculosa entre os povos indígenas do continente americano. Foram consultadas as bases de dados MEDLINE e LILACS, utilizando-se a combinação dos seguintes descritores: "tuberculosis", "south american indians", "north american indians", "tuberculin skin test", "PPD", "risk assessment" e "BCG vaccine", para o período de 1974/2004. Foram incluídos estudos longitudinais e seccionais que consideraram como desfecho a prevalência de infecção por M. tuberculosis definida por reações > 5mm e > 10mm. Foi possível localizar 54 artigos, dos quais 16 foram incluídos nesta revisão. Com base nos artigos selecionados, foram contabilizadas 13.186 pessoas, sendo 50% menores de 15 anos. A prevalência oscilou de 0 a 93,4% e o risco de infecção de 0 a 35,4%. A análise da heterogeneidade nas condições ambientais e nos métodos utilizados para estimar a infecção entre os estudos revisados demonstrou que o teste tuberculínico foi oportuno em decisões clínicas (p.ex., início da quimioprofilaxia), e que os inquéritos tuberculínicos são úteis para avaliar as medidas de controle da tuberculose entre os povos indígenas. 

Tuberculose; Índios Sul-americanos; Índios Norte-americanos; Teste Tuberculínico


ABSTRACT

A systematic review was conducted on articles reporting tuberculin surveys to estimate the prevalence and annual risk of tuberculosis infection (ARI) in indigenous peoples of the Americas. MEDLINE and LILACS databases were searched using the following combination of descriptors: "tuberculosis", "South American Indians", "North American Indians", "tuberculin skin test", "PPD", "risk assessment", and "BCG vaccine". Longitudinal and cross-sectional studies published from 1974 to 2004 were selected if the outcome was Mycobacterium tuberculosis infection defined by tuberculin reactions > 5mm or > 10mm. From a total of 54 candidate studies generated with the descriptors, 16 were selected for review. Altogether, they comprised 13,186 individuals, 50% of whom were below 15 years of age. Estimates of prevalence of tuberculosis infection ranged from 0% to 93.4%, whereas the ARI ranged from 0% to 35.4%. Analysis of heterogeneity in environmental conditions and methods of infection assessment in the studies showed that the tuberculin test is useful for clinical decisions (e.g., to initiate chemoprophylaxis), and that tuberculin surveys are useful to assess tuberculosis control measures among indigenous peoples. 

Tuberculosis; South American Indians; North American Indians; Tuberculin Test


 

 

Introdução

A tuberculose constitui-se como um dos principais problemas de saúde pública para os povos indígenas do continente americano. Embora exista notória diferença sócio-econômica entre os países do hemisfério Norte e do hemisfério Sul, a história da tuberculose entre os grupos indígenas nestas regiões apresenta muitas semelhanças. Ainda que já se tenha demonstrado a presença da tuberculose nas Américas há milênios 1, a moléstia tornou-se um problema prioritário de saúde para os povos indígenas logo após a onda migratória de colonização, a partir do século XVI. Os primeiros contatos entre índios e europeus foram devastadores e causaram profundas mudanças sociais, culturais e ambientais no novo continente. Ocorreram mudanças importantes no padrão de ocupação das terras nas Américas, e os povos indígenas ficaram limitados às reservas demarcadas, fato que produziu restrição das fontes naturais de alimento, aumento da densidade demográfica e conseqüente deterioração das condições de vida. Associado a isso, houve a introdução de novos agentes patogênicos em populações indenes que ainda não haviam desenvolvido resistência imunológica 2,3,4,5. Com isso aconteceu o agravamento da situação sanitária e de saúde dos povos indígenas e criou-se um ambiente propício para transmissão de doenças infecciosas e parasitárias, iniciando assim o processo de difusão da tuberculose.

Ao longo das últimas décadas, ainda que as autoridades sanitárias dos países das Américas tenham instituído esforços para o controle da tuberculose, baseados na detecção de casos novos, tratamento precoce dos doentes, quimioprofilaxia dos infectados sob risco de adoecer e ampla difusão da vacina BCG, a doença permanece endêmica e de grande magnitude entre os povos indígenas. Mesmo para os países de economia central como o Canadá e os Estados Unidos, a tuberculose entre os povos indígenas representa grande desafio ao controle e atinge cifras impressionantes. Os coeficientes de incidência são cerca de dez vezes superiores aos das populações não indígenas, e os povos indígenas estão sob risco permanente de adoecer e morrer de tuberculose 6,7,8,9,10,11,12. Para os países da América Latina a situação não é diferente, e muitos estudos revelam a desproporção na incidência da tuberculose entre a população geral e os povos indígenas 13,14,15,16,17,18,19. Por causas ainda pouco esclarecidas, os grupos indígenas apresentam-se particularmente mais vulneráveis à tuberculose.

Para determinar a carga de uma doença, num determinado local e período, o coeficiente de incidência é um dos indicadores epidemiológicos mais utilizados; no entanto, no caso da tuberculose, a incidência parece ser menos indicada para captar as variações na dinâmica de transmissão da doença, especialmente em sociedades de pequena escala demográfica, como é o caso dos povos indígenas. Segundo Young & Mirdad 20, o uso do coeficiente de incidência para avaliar os níveis de transmissão do Mycobacterium tuberculosis pode ser limitado pelo fato de boa parte dos indivíduos que são infectados pelo bacilo de Koch não desenvolverem a doença. Além disso, aqueles que adoecem podem ter sido infectados há meses ou anos atrás. A incidência também depende do sistema de notificação dos casos, o que em muitos locais pode não refletir a verdadeira carga da doença. Outro fato relevante é que para a confirmação do diagnóstico de tuberculose é necessário o isolamento do bacilo, o que se verifica em menos da metade dos casos notificados em indígenas de algumas regiões 13,18,19,21.

Nesse sentido, o indicador mais adequado para quantificar a extensão das fontes de infecção capazes de transmitir a tuberculose, num determinado grupo populacional, seria a prevalência de infecção específica pelo M. tuberculosis 22,23. A prevalência de infecção específica pelo M. tuberculosis é obtida por meio de inquéritos tuberculínicos de base populacional. Estes, quando são adequadamente desenhados, atentam para cuidados metodológicos e limitações próprias ao método que incluem o tipo de tuberculina utilizada (derivado protéico purificado), as técnicas de aplicação e leitura do teste, e os efeitos biológicos relacionados a condições individuais tais como: idade, situação imunológica e condições médicas associadas (diabetes, neoplasias, AIDS, entre outras). Além disto, a presença de microbactérias ambientais e altas coberturas vacinais por BCG também podem influenciar a interpretação dos resultados do teste 24,25,26,27,28,29,30,31,32,33.

Os dados produzidos por um inquérito tuberculínico se prestam igualmente para derivar o risco médio anual de infecção (RAI). O RAI é um indicador epidemiológico alternativo para estimar a carga de tuberculose e apresenta como principal vantagem a independência dos dados de notificação. Ele é definido como a probabilidade de um indivíduo ser infectado ou reinfectado pelo M. tuberculosis num determinado período. O RAI resume, portanto, em um só índice, o conjunto dos fatores que influenciam a dinâmica de transmissão da doença, enquanto sua tendência ao longo do tempo reflete o impacto das medidas de controle aplicadas 34,35,36. Logo, a estimativa da prevalência e do risco de infecção permitiria uma avaliação mais adequada da carga de tuberculose entre os povos indígenas do continente americano. O objetivo deste estudo foi avaliar criticamente os trabalhos disponíveis na literatura que utilizaram o teste tuberculínico para estimar a prevalência e o risco de infecção por M. tuberculosis em populações indígenas do continente americano após a implementação da vacina BCG intradérmica.

 

Materiais e métodos

O presente estudo é uma revisão sistemática de trabalhos científicos que descreveram o uso do teste tuberculínico (PPD) para estimar a prevalência e o risco de infecção por M. tuberculosis em populações indígenas do continente americano, nas quais foi considerada também a cobertura vacinal por BCG.

A identificação dos artigos foi feita por meio de busca bibliográfica nas bases de dados MEDLINE e LILACS e restringiu-se ao período de 1974/2004. A partir de 1974 a vacinação no Brasil passou a ser feita com BCG intradérmico, o que tem implicações para o controle da tuberculose, para verificação da vacinação pela cicatriz e para a sensibilidade tuberculínica. A estratégia de busca utilizada iniciou-se de uma forma ampla e foi sendo refinada gradualmente empregando a combinação dos seguintes descritores: "tuberculosis", "south american indians", "north american indians", "tuberculin skin test", "PPD", "risk assessment" e "BCG vaccine". Utilizou-se também a estratégia de busca manual em listas de referências dos artigos identificados e selecionados e busca em periódicos específicos, tais como: International Journal of Tuberculosis and Lung Disease, Tubercle and Lung Disease, Bulletin of the International Union against Tuberculosis and Lung Disease e Boletim de Pneumologia Sanitária.

A busca foi conduzida no período de janeiro a abril de 2005 e foram considerados critérios de inclusão: estudos longitudinais e seccionais que tenham considerado como desfecho a proporção de indivíduos infectados pelo M. tuberculosis apontados pela positividade ao teste tuberculínico. Incluíram-se os estudos que utilizaram dois pontos de corte como critério para positividade do teste tuberculínico: diâmetro de enduração > 5mm e > 10mm. Para aqueles trabalhos que não fizeram menção ao risco de infecção, utilizou-se a seguinte fórmula para obtenção desta estimativa: RAI = 1 ­ (1 ­ p)1/b, onde p é a prevalência de infecção obtida no inquérito e b é a idade média das pessoas que foram submetidas ao teste tuberculínico 37. Para os trabalhos que não informaram a idade dos indivíduos avaliados o risco de infecção não foi calculado.

Foram incluídos artigos publicados em português, espanhol, inglês e holandês, sendo excluídos os demais idiomas. Foram excluídos também artigos que não indicavam as estimativas de prevalência de infecção tuberculosa: quatro artigos referentes à eficácia vacinal do BCG (um ensaio clínico e três estudos de caso-controle); dois artigos sobre eficácia da quimioprofilaxia em infectados por M. tuberculosis; além daqueles estudos que realizaram análises descritivas sobre o comportamento epidemiológico da tuberculose em comunidades indígenas, sem menção da prevalência ou risco de infecção tuberculosa.

Os dados foram coletados segundo os seguintes critérios:

a) identificação dos estudos: autores, país e grupo étnico avaliado, ano e língua da publicação;

b) características da amostra: número de pessoas avaliadas, amplitude ou média de idade dos indivíduos;

c) características do estudo: desenho, métodos utilizados para coleta de dados (situação vacinal BCG), tuberculina utilizada, prevalência e risco de infecção.

 

Resultados

A busca bibliográfica segundo a estratégia definida possibilitou a localização de 54 artigos científicos. De acordo com os objetivos do estudo e os critérios de inclusão, foram selecionados 16 estudos para revisão. Os estudos de Gonzaléz et al. 14 e Araújo et al. 38 foram revisados conjuntamente por tratarem da mesma amostra. A Tabela 1 apresenta as características gerais dos estudos revisados: autores que conduziram os estudos, ano de publicação, língua, grupo étnico e local onde o estudo foi desenvolvido, desenho do estudo, e características da amostra estudada.

Dos 16 artigos revisados, 11 foram publicados em inglês, três em português, um em espanhol e um em holandês. Chama a atenção que oito estudos foram realizados a partir do ano 2000, e 13 a partir da década de 1990, o que aponta para o interesse atual pela questão. Quanto ao local onde o estudo foi realizado, sete foram conduzidos na América do Norte, oito na América do Sul e um na América Central, sendo distribuídos da seguinte forma: um nos Estados Unidos, cinco no Canadá, um no México, cinco no Brasil, um na Venezuela, um no Paraguai, um no Suriname, e um no Panamá. Em relação ao desenho do estudo, 12 foram seccionais ou de corte transversal e quatro foram longitudinais ou de coorte. A respeito das pessoas que participaram dos estudos, contabilizaram-se 13.186 indivíduos. Em seis estudos foram avaliados indivíduos de todas as idades, sem menção da faixa de variação, tampouco da média de idade dos participantes. Em três estudos houve participação apenas de crianças de 0 a 7 anos e em dois estudos foram avaliadas crianças de 0 a 15 anos. Escolares de 11 e 12 anos de idade foram avaliados em dois estudos, e escolares de 6 a 20 anos de idade foram avaliados em apenas um estudo. Em um estudo, foram avaliados indivíduos de todas as idades, com média etária de 19,4 anos, e, finalmente, em um único estudo encontrou-se uma amostra composta apenas por adultos. Quanto aos grupos étnicos submetidos à investigação, os indígenas do Canadá (Nativos ou Primeira Nação) estiveram envolvidos em cinco estudos revisados e contribuíram com um contingente populacional de 7.285 pessoas, 55,3% do total analisado.

A Tabela 2 apresenta as características metodológicas empregadas nos estudos revisados: tuberculina utilizada para estimar a prevalência de infecção, descrição da cobertura vacinal por BCG, método utilizado para verificar a cobertura vacinal, a medida da prevalência da infecção pelo M. tuberculosis obtida pelo diâmetro de enduração do teste tuberculínico em dois pontos de corte (> 5mm e > 10mm) e, por fim, o cálculo do RAI nos estudos que informaram a média de idade dos participantes.

Entre os 16 artigos revisados, oito utilizaram o PPD RT 23, quatro o PPD-S, dois o PPD-T, e dois não informaram a tuberculina utilizada. A cobertura vacinal variou de 0 a 100% dos indivíduos submetidos às investigações. Os métodos utilizados para verificar a cobertura vacinal foram os seguintes: em seis estudos verificou-se a cicatriz vacinal do BCG; em quatro estudos foram empregados métodos combinados (verificação da cicatriz, consulta a registros médicos e/ou cartões de vacina); em três estudos foram verificados apenas cartões de vacina; em um estudo foram verificados somente registros médicos; e em dois estudos não foram informados os métodos utilizados.

No que tange à prevalência de infecção pelo M. tuberculosis, existiu uma ampla variação entre os estudos revisados. Para os países da América do Norte, a prevalência oscilou de 0% em 1999, nos escolares de 11 e 12 anos não vacinados com BCG; no estudo conduzido por Clark & Vynnychy 39 no Canadá, até 93,4% em 1976; nos jovens de 8 a 25 anos não vacinados no estudo conduzido por Grzybowski et al. 3 também no Canadá.

Para os países da América Latina a situação foi um pouco diferente. A prevalência de infecção variou de 3,6% (enduração > 5 mm) nas crianças Yanomámi menores de cinco anos de idade e vacinadas com BCG; no estudo conduzido por Amarante et al. 40, no Estado do Amazonas, até 82,3% nas crianças Warao de 0 a 15 anos vacinadas com BCG e fortemente suspeitas de estarem com tuberculose ativa; no estudo conduzido por Araújo et al. 38 na Venezuela. Nos estudos conduzidos na região amazônica, a amplitude de variação foi menor, e a maioria dos resultados ficou em um nível intermediário, apontando prevalência média em torno de 40,2% entre adultos e crianças, vacinadas ou não. No Panamá, a prevalência de infecção identificada foi bastante elevada (73,1%) entre o grupo analisado.

O risco anual de infecção está diretamente relacionado à prevalência de infecção tuberculosa, e para esta revisão o RAI oscilou de 0% entre os escolares indígenas de British Columbia no Canadá até 35,4% entre as crianças de 0 a 2 anos nativas de Saskatchewan também no Canadá, no estudo conduzido por Skotniski 41. Neste último estudo, foi confirmada posteriormente a presença de doença ativa em 38,5% da amostra testada.

 

Discussão

O diagnóstico acurado da infecção tuberculosa latente, ou seja, a prevalência de infecção específica pelo M. tuberculosis é um importante componente para qualquer programa de controle da tuberculose e depende amplamente do teste tuberculínico. Uma interpretação apropriada do teste tuberculínico requer o conhecimento de possíveis fatores intervenientes que possam influenciar os resultados. De modo geral, um dos mais controversos fatores que influenciam os resultados do teste tuberculínico é o efeito do bacilo de Calmette-Guérin intradérmico. O Brasil foi um dos últimos países a interromper o uso do BCG oral. O impacto da vacinação BCG tem relação com as variações na cobertura vacinal em diferentes regiões, com o tempo transcorrido desde a última dose da vacina BCG e com a eficácia da vacina aplicada. Podem interferir também a presença de microbactérias ambientais, altas prevalências de tuberculose ativa, e os mecanismos da resposta imunológica específica ao M. tuberculosis.

Em relação ao efeito que o BCG produz no teste tuberculínico, os resultados dos estudos apresentam ampla variação. Menzies & Vissandje 42 conduziram estudo entre pessoas nascidas em Quebec, e identificaram como mais importante determinante, para reação positiva (> 10mm) ao teste tuberculínico, a história anterior de vacina com BCG. No grupo vacinado, as reações maiores que 10mm foram encontradas em 12,6% dos indivíduos testados, enquanto no grupo não vacinado esta proporção foi de apenas 2,6% (p < 0,0001). No entanto, depois de controlados os fatores de confundimento, esta variação foi observada somente entre as pessoas que haviam sido vacinadas após os cinco anos de idade. Isso aponta para influência do tempo transcorrido desde a última dose da vacina e o efeito no teste tuberculínico. É importante lembrar também que a prevalência da tuberculose entre os habitantes de Quebec é baixa, fato que pode ter influenciado o resultado.

Como entre os povos indígenas, historicamente, a tuberculose é uma doença de prevalência acentuada, e em geral os programas de controle da doença voltados para esses grupos assumem como uma de suas estratégias a ampla vacinação com BCG para os recém-nascidos, os resultados divergem daqueles apresentados por Menzies & Vissandje 42. Nos estudos conduzidos por Lifschitz 43, Young & Mirdad 20, Skotniski 41 e Escobar et al. 44 em diferentes momentos, com grupos étnicos distintos, as conclusões são semelhantes e indicam que reações ao teste tuberculínico maiores que 10mm, e especialmente àquelas maiores que 14mm, são específicas e devidas à sensibilização pelo M. tuberculosis, sendo muito pouco prováveis de serem por causa do efeito do BCG.

Outra questão importante nos inquéritos tuberculínicos de base populacional é a qualidade da tuberculina utilizada. Conforme relatado na seção resultados, entre os 16 artigos revisados, oito utilizaram o PPD RT 23, quatro o PPD-S, dois o PPD-T e dois não informaram a tuberculina utilizada. Tal fato pode ter enviesado os resultados desta revisão, limitando sua extrapolação. Na metanálise conduzida por Wang et al. 45 sobre o efeito do BCG nas medidas do teste tuberculínico, o uso do PPD RT 23 demonstrou ser mais provável de estar associado com uma resposta positiva ao teste tuberculínico do que o uso de outras tuberculinas. Atualmente, o uso do PPD RT 23 é recomendado pela International Union against Tuberculosis and Lung Disease (IUATLD) para padronizar a realização de inquéritos tuberculínicos em todo o mundo e permitir a comparação dos resultados entre diferentes estudos 23.

Sob a perspectiva da genética, a tuberculose é uma doença complexa que resulta da interação entre o hospedeiro, o bacilo e o ambiente. Na atualidade, existem evidências de que fatores genéticos do hospedeiro são importantes na determinação da suscetibilidade ao M. tuberculosis 46. Em estudo recente, Greenwood et al. 47 confirmaram a importância do gene da proteína de resistência natural do macrófago (NRAMP1) na determinação da suscetibilidade à tuberculose em uma comunidade indígena do Canadá. Isso aponta para necessidade de novas investigações entre grupos indígenas específicos para trazer luz a esta questão.

Para os povos indígenas da América Latina, a situação epidemiológica da tuberculose continua preocupante. A falta de estudos para avaliar a intervenção das medidas de controle é notória. Indicadores epidemiológicos para grupos específicos, sobretudo para aqueles que residem nas regiões mais distantes da Amazônica, são semelhantes aos encontrados entre os nativos do Canadá na era pré-quimioterápica 13,15,16,18,43,48 e caracterizam assim um cenário alarmante. Enfatiza-se aqui a urgência de as autoridades em saúde avaliarem com mais rigor as medidas de intervenção e as estratégias que estão sendo utilizadas para o controle da tuberculose entre os povos indígenas dessa região.

Entre os nativos da Canadá, parece que há fortes evidências para suportar a hipótese de que o problema da tuberculose está num processo avançado de controle. Houve patente redução da prevalência de infecção pelo M. tuberculosis naquele país. Em determinadas regiões a proporção de infectados saltou de 93,4% em 1972 3 para 0% em 1999 39. Ao que tudo indica o teste tuberculínico foi ferramenta decisiva na elaboração das estratégias de controle. O uso do PPD permitiu a identificação dos indivíduos portadores de infecção tuberculosa latente e mais do que isso serviu como screening para indicação do tratamento preventivo.

Ratificando a eficácia das medidas de controle da tuberculose entre os indígenas do Canadá, dois ensaios clínicos demonstraram o efeito protetor da quimioprofilaxia sobre o risco de adoecer para o grupo tratado com Izoniazida e Etambutol da ordem de dez vezes, quando comparado ao grupo que não recebeu o tratamento preventivo 49,50. Desta forma, a partir da década de 1970 ocorreu uma redução drástica nos indicadores epidemiológicos da tuberculose para um povo que experimentou as maiores taxas de incidência da doença já descritas no planeta 9.

A despeito da heterogeneidade verificada entre os estudos revisados no que diz respeito à cobertura vacinal pelo BCG, à tuberculina utilizada na estimativa da prevalência de infecção, aos distintos cenários epidemiológicos da tuberculose encontrados em diferentes momentos e em diferentes países, e ao fato de algumas populações habitarem regiões de floresta tropical, onde a presença de micobactérias ambientais é mais provável, os achados desta revisão são ilustrativos da maior vulnerabilidade dos povos indígenas à tuberculose, quando comparados à população não indígena da mesma região. Por outro lado, os resultados das ações de controle relatados nos estudos de Clark & Vynnychy 39 e Smeja & Brassard 11 demonstraram o impacto possível das ações de intervenção estruturadas e planejadas, que determinaram sensível queda no risco de adoecimento entre os indígenas canadenses nos períodos analisados.

Nas regiões de clima temperado e subtropical, o teste tuberculínico permanece como uma importante ferramenta para os programas de controle da tuberculose, tanto no diagnóstico, como na vigilância epidemiológica e na indicação do tratamento da infecção latente (quimioprofilaxia). Entretanto, em regiões de clima tropical onde a presença de micobactérias saprófitas é mais acentuada ou onde a cobertura vacinal por BCG é alta, como é o caso das populações indígenas sul-americanas, deve-se ponderar sobre os possíveis fatores que possam influenciar a interpretação dos resultados. Para ilustrar esta questão, nos estudos conduzidos por Young & Mirdad 20 e Escobar et al. 44 só foi possível identificar o efeito do BCG no teste tuberculínico, após o controle das variáveis de confundimento, por meio da utilização de modelagem estatística: regressão logística e análise multivariada, respectivamente (Tabela 3).

Apesar das limitações inerentes ao teste tuberculínico, a análise da heterogeneidade nas condições ambientais e nos métodos utilizados para estimar a infecção entre os estudos revisados demonstrou que o uso do PPD foi oportuno em decisões clínicas (por exemplo, início da quimioprofilaxia), e que os inquéritos tuberculínicos foram úteis para avaliar as medidas de controle da tuberculose aplicadas entre os povos indígenas do continente americano.

 

Colaboradores

Ambos os autores participaram da elaboração do artigo, definindo os critérios metodológicos, a estrutura e o conteúdo. Os dois autores realizaram a busca bibliográfica separadamente, e a extração dos dados se deu mediante questionário padronizado de forma independente com posterior discussão para estabelecer consenso sobre as discordâncias. P. C. Basta redigiu a primeira versão e L. A. B. Camacho colaborou na revisão e redação do texto final.

 

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Correspondência
P. C. Basta
Departamento de Endemias Samuel Pessoa
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz
Rua Leopoldo Bulhões 1480
Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil
pcbasta@ensp.fiocruz.br

Recebido em 30/Ago/2005
Versão final reapresentada em 20/Dez/2005
Aprovado em 21/Dez/2005

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br