ARTIGO ARTICLE

 

"Você aprende. A gente ensina?" Interrogando relações entre educação e saúde desde a perspectiva da vulnerabilidade

 

"You learn, we teach"? Questioning relations between education and health from the perspective of vulnerability

 

 

Dagmar E. Estermann MeyerI; Débora Falleiros de MelloII; Marina Marcos ValadãoIII; José Ricardo de Carvalho Mesquita AyresIV

IFaculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil
IIEscola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil
IIIFaculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
IVFaculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO 

Neste artigo, a exploração dos sentidos associados à frase-síntese de uma campanha promovida no Dia Mundial Sem Tabaco instiga a discussão das principais ênfases constitutivas do campo da educação em saúde, no Brasil. Retoma-se o conceito de vulnerabilidade para situar/explorar suas interseções com o educativo para, então, apontar a produtividade teórico-prática e política da articulação entre educação em saúde e estudos de vulnerabilidade. Conclui-se que a necessária renovação das práticas de saúde em geral e, particularmente, das práticas de educação em saúde, pode beneficiar-se grandemente do referencial da vulnerabilidade, na medida em que ele delineia um novo horizonte para situar e articular riscos, "causalidades" e "determinações", trazendo a saúde ­ assim como a possibilidade de adoecer ­ para o campo da vida real, para o mundo dos sujeitos em relação, no qual esses processos ganham sentidos singulares.

Educação em Saúde; Vulnerabilidade; Promoção da Saúde


ABSTRACT 

This article explores the meanings associated with the motto used in a World No-Tobacco Day campaign to stimulate a discussion of the principal underlying messages in the field of health education in Brazil. The study focuses on the concept of vulnerability to contextualize and explore its interfaces with education in order to highlight the theoretical, practical, and political productivity of the link between health education and studies on vulnerability. In conclusion, the necessary renewal of health practices in general and health education practices in particular can benefit tremendously from the vulnerability reference, to the extent that it demarcates a new horizon for situating and linking risks, "causalities", and "determinations", drawing health ­ as well as the possibility of illness ­ into the field of real life, into the world of inter-subjective relations, where these processes gain unique meanings.

Health Education; Vulnerability; Health Promotion


 

 

Do espanto às interrogações: delimitando uma discussão 

Dia 1o de junho de 2005: Dia Mundial Sem Tabaco. Era fim de tarde e saíamos de um seminário de pós-graduação no qual vínhamos discutindo possibilidades e limites da aplicação do quadro conceitual da vulnerabilidade ao campo da saúde pública e, mais especificamente, às práticas de educação em saúde. A faixa afixada na parede externa do hospital-referência de uma das maiores cidades do país e com a qual se divulgava a frase-síntese da campanha ali promovida no ano em curso não poderia, pois, passar despercebida: "Fumar você aprende. Parar de fumar a gente ensina".

Ao primeiro olhar, e por um breve instante, o sentimento provocado pela leitura da frase é de familiaridade, uma familiaridade que a memória, quase que imediatamente, começa a traduzir em espanto... Afinal, este "tom", que continua firmemente alojado nas práticas desenvolvidas na confluência da educação com a saúde, vem sofrendo consistentes críticas, pelo menos desde os anos 80 do século XX. Ou não? O olhar volta à faixa uma e mais uma vez e, nesse movimento, re-toma e re-coloca interrogações: que "tom" é este, exatamente, e que mecanismos permitem mantê-lo ainda tão vivo e tão visível nestes tempos e espaços contemporâneos? Que concepção de educação é esta que desdobra e transforma em dois um processo ­ o de ensino-aprendizagem ­ em que o hífen deveria inscrever e materializar a reciprocidade e a interdependência dos termos que o constituem? E, voltando ao tema da aula da qual saíamos, seria o quadro conceitual da vulnerabilidade, dentre tantos já experimentados em nosso "conhecer/fazer" profissional, uma possibilidade para problematizarmos e re-construirmos processos de educação em saúde?

É de questões como essas que este ensaio pretende tratar. Instigados pelas interrogações produzidas nestes movimentos do olhar e da memória, pretendemos problematizar algumas das relações entre educação e saúde desde a perspectiva da vulnerabilidade. Para fazê-lo, começaremos por discutir, brevemente, as principais ênfases constitutivas do campo da educação em saúde. A seguir, retomaremos o conceito de vulnerabilidade para situar/explorar suas interseções com o educativo para, então, examinar a produtividade teórico-prática e política de uma articulação entre educação em saúde e estudos de vulnerabilidade.

 

A gente ensina, você aprende: ênfases prevalentes na educação em saúde

A familiaridade com que se continua acolhendo programas e campanhas de educação em saúde como essa anunciada pela frase-síntese que instiga este artigo indica que, apesar de todas as críticas já produzidas sobre esse modo de fazer 1,2,3,4,5,6, ainda não estamos diante de algo que perturba ou desacomoda o que se tem dito e feito em termos de educação em saúde, no Brasil. Os projetos educativos em saúde seguem sendo majoritariamente inscritos na perspectiva de transmissão de um conhecimento especializado, que "a gente detém e ensina" para uma "população leiga", cujo saber-viver é desvalorizado e/ou ignorado nesses processos de transmissão. Assume-se que, para "aprender o que nós sabemos", deve-se desaprender grande parte do aprendido no cotidiano da vida.

O processo sintetizado acima, com uma certa ironia, pode ser melhor entendido se considerarmos que as práticas sanitárias que ganharam hegemonia ao longo do século XX fundaram-se na afirmação da objetividade, da neutralidade e da universalidade do saber científico e nos modelos clássicos de explicação do processo saúde-doença, pressupostos que sustentam a prescrição de comportamentos tecnicamente justificados como únicas escolhas possíveis para o alcance do bem-estar de todos os indivíduos, independentemente de sua inserção sócio-histórica e cultural. Por esse caminho, foi incorporada à nossa cultura sanitária a suposição de que comportamentos "não educados" por esses padrões são insuficientes, insalubres e inadequados (tanto do ponto de vista técnico-sanitário quanto do moral), constituindo o que vem sendo nomeado, contemporaneamente, como "comportamentos de risco". O risco em saúde é representado como uma situação de dano potencial, associado principalmente a fatores individuais. Nesse sentido, "correr risco apresenta um certo caráter definidor de identidades desviantes" 7 (p. 1309), entendendo-se que o risco "estaria na ignorância, fraqueza, falta de interesse no cuidado de si, esse último um imperativo numa sociedade em que se atribui um alto valor à autonomia individual e à competência para o auto-governo" 7 (p. 1309).

É nesse contexto discursivo que formas definidas como "certas" e "erradas" de viver são compreendidas como decorrência do domínio ou da ignorância de um certo saber, e a educação, assentada no pressuposto da existência de um sujeito humano potencialmente livre e autônomo, passa a ser concebida e exercitada como processo de instrução (passiva) para o exercício do poder sobre a própria saúde. Esse processo tem como objetivo central a mudança (imediata e unilateral) de comportamentos individuais a partir de decisões informadas sobre a saúde, em um contexto onde se exercita uma forma de comunicação de caráter basicamente cognitivo/racional.

Assim, o que se verifica nos processos comunicativos que colocam em movimento os programas e projetos de educação em saúde é a permanência da idéia de que a "falta de saúde" é um problema possível de ser solucionado, individual ou coletivamente, desde que se disponha de informações técnico-científicas adequadas e/ou da vontade pessoal e política dos sujeitos expostos a determinados agravos à saúde. Mesmo naquelas propostas que buscam ampliar a abrangência dos programas educativos, tal ampliação dá-se no sentido da incorporação de estratégias participativas, nas quais a interação com o repertório sócio-cultural e o seu resgate constituem um recurso de acomodação dos conteúdos técnico-científicos ao universo cultural daqueles a quem se deseja (ou se deve) ensinar. A lógica que se persegue é a da busca de meios mais eficazes para dar conta de objetivos que continuam circunscritos ao universo da higienização e normatização dos comportamentos, como se uma consideração ampliada de sua determinação pudesse gerar uma forma, também ampliada, de prevenção de riscos e adesão a comportamentos saudáveis ainda definidos e legitimados, em primeira instância, pelo conhecimento técnico-científico 4. Continua-se, pois, buscando enriquecer estratégias didáticas tecnicamente informadas pelas "necessidades de saúde" reconhecidas no âmbito das ciências médicas.

Esta forma de olhar reforça a delimitação do foco da educação em saúde na epidemiologia do comportamento, pautada em fatores de risco circunscritos ao indivíduo e supostamente passíveis de correção a partir de ações racionais, de responsabilidade de cada pessoa. No entanto, Carvalho 8 argumenta que os chamados "fatores de risco" constituem elementos indissociáveis dos marcos culturais e sociais em que se inscrevem e compõem "situações complexas onde correr risco não é mais externo ao indivíduo, mas se inscreve, com ele, num complexo único de múltiplas dimensões ­ biológica, social e cultural" 8 (p. 107).

Pode-se avançar na discussão dos sentidos complexos do risco recorrendo-se também a autores 9,10 que chamam atenção para o fato de que um comportamento nomeado como "insalubre", tal como fumar, para voltar ao exemplo com que iniciamos o texto, pode ser visto como parte de uma atitude mais ampla de resistência ou de suporte a condições de vida muito difíceis de determinados grupos sociais. Nesse caso, as tentativas de cooptar esses grupos podem produzir pouco resultado, uma vez que "tanto o adoecer como a exposição a determinados riscos [podem estar constituindo] modos possíveis de permanecer vivo e, por extensão, de levar a vida" 6 (p. 95). Ou seja, é preciso considerar que símbolos de resistência podem forjar identidades grupais e redes de solidariedade, uma situação na qual a resistência pode ser protetora e, ao mesmo tempo, aumentar a susceptibilidade a determinados problemas de saúde.

A crítica a essas abordagens educativas centradas na informação para a mudança de comportamentos mostra a necessidade de refletir não só sobre o conteúdo da informação, mas, principalmente, sobre como e por que a informação é comunicada. O desafio central não estaria no aprimoramento de técnicas de transmissão de mensagens, de persuasão ou sedução, nos moldes das estratégias de marketing comercial, mas em rever o pressuposto de que a existência de elementos de informação científica nas mensagens recebidas é necessário e suficiente para aumentar a competência e/ou a liberdade de decisão, uma vez que o que se vê no dia-a-dia das práticas de saúde é que o conhecimento científico é um elemento que passa pela vida das pessoas através de uma espécie de filtro de seus próprios saberes gerando um conhecimento diferente 11, ou seja, os grupos sociais, e os indivíduos que os integram realizam uma reconstrução desses saberes amalgamando-os à sua visão de mundo em consonância com suas experiências.

Essa compreensão não implica desconsiderar que programas de educação em saúde podem ser, de fato, muito efetivos para prover informações básicas sobre diversos tópicos relacionados à saúde para largos segmentos da população. Também não desconsidera que o resultado, mesmo que insuficiente e limitado, integra o direito a tomar decisões informadas, de modo que experiências de aprendizagem posteriores podem ser beneficiadas com e a partir desses conhecimentos.

Também na escola, um cenário emblemático das práticas instituídas no campo da educação em saúde, revisões amplas das experiências educativas realizadas em diferentes realidades permitem constatar que programas focalizados em temas variados como drogas, inclusive álcool e tabaco, práticas sexuais desprotegidas, gravidez na adolescência, nutrição ou trânsito, são muito eficientes em aumentar conhecimentos, têm alguma eficiência em mudar atitudes e, com raras exceções, são ineficazes na mudança de práticas relacionadas à saúde. Esses resultados nos alertam para a necessidade de promover um questionamento profundo dessa permanência da centralidade da mudança de comportamentos nos objetivos da educação em saúde. Torna-se cada vez mais evidente que as mudanças comportamentais são um produto muito raro dos projetos educativos já implantados e, mais do que isso, constata-se que as múltiplas dimensões que interagem nos ambientes onde transcorre a vida tornam muito difícil vincular diretamente as atividades da educação em saúde aos comportamentos que emergem no tempo 4.

Estudos como esses têm-nos encaminhado, então, para a necessidade de trabalhar com a noção de que educação envolve o conjunto dos processos pelos quais indivíduos se transformam em sujeitos de uma cultura, reconhecendo que existem muitas e diferentes instâncias e instituições sociais envolvidas com esses processos de educar, algumas delas explicitamente direcionadas para isso, enquanto que em outras esses processos educativos não são tão explícitos e nem mesmo intencionais 12. Cultura, nesse contexto, é tomada como o conjunto de códigos e de sistemas de significação lingüística, por meio dos quais se atribuem sentidos às coisas, sentidos esses que são passíveis de serem compartilhados por um determinado grupo. Ela não é universal, nem está dada de antemão, mas é ativamente produzida e modificada, ou seja, poderíamos pensá-la como o conjunto dos processos pelos quais se produz um certo consenso acerca do mundo em que se vive. Sendo assim, é o partilhamento deste consenso que permite aos diferentes indivíduos se reconhecerem como membros de determinados grupos e não de outros, o que implica, também, entender a cultura como um processo arbitrário, uma vez que cada grupo pode viver de forma diferente ou atribuir um significado diferente a um mesmo fenômeno ou objeto 13.

Se direcionarmos esse modo de conceber a educação e a cultura para pensar as formas pelas quais se definem as relações com o corpo, os cuidados que se dispensam a ele, os limites que se estabelecem entre normal e anormal e entre saúde e doença, por exemplo, temos de entender tais saberes e práticas como integrantes do processo de construção desses corpos e desses sujeitos. Ou seja, mesmo que não estejamos, aqui, negando o fato de que corpos humanos e as manifestações dos sujeitos humanos acerca de seus corpos envolvem uma materialidade biológica que se expressa por uma anatomia e uma fisiologia próprias, estamos enfatizando que o corpo e o processo saúde-doença em que ele é inscrito é, ao mesmo tempo, uma construção lingüística e cultural. Nessa direção, corpo, saúde e doença só adquirem determinados sentidos no contexto da cultura e da linguagem em que são compreendidos e experienciados.

Assim, a educação em saúde, como parte de um processo de educação mais ampla, passa a ser entendida tanto como uma instância importante de construção e veiculação de conhecimentos e práticas relacionados aos modos como cada cultura concebe o viver de forma saudável e o processo saúde/doença quanto como uma instância de produção de sujeitos e identidades sociais. Que questões perspectivas como essa colocam aos educadores/as em saúde?

Em primeiro lugar, desde uma dimensão ética, caberia assumir que a promoção da saúde e a prevenção de doenças, em última instância, implicam o exercício de determinadas formas de poder, de autoridade e de controle social. Seria preciso admitir, também, que a educação em saúde tem uma dimensão comportamental e imediata, mas não se resume a ela. Haveria necessidade de assumir, ainda, que a busca de alternativas no campo da educação em saúde requer o estabelecimento de objetivos pautados no empenho em compartilhar e submeter à legitimação social os conhecimentos construídos no setor saúde e informados pela ciência, reconhecendo as dimensões contraditórias (e transitórias) dos "comportamentos saudáveis". Dever-se-ia, pois, considerar que a produção de experiências mais ou menos patogênicas, mais ou menos promotoras de bem-estar está vinculada às relações intersubjetivas que se estabelecem no processo de re-construção de padrões culturais validados socialmente.

Entendendo-se, então, que problemas de saúde possuem componentes amplos e inter-relacionados, que não podem ser avaliados e tratados de forma isolada, sob pena de não se produzirem, de fato, recursos para a proteção, torna-se importante investir em outras formas de pensar as intervenções em saúde. E é por isso que as inquietações da educação em saúde aqui exploradas vão encontrar eco no que vem sendo produzido e construído nos marcos do quadro conceitual da vulnerabilidade, do qual trataremos a seguir.

 

Risco e vulnerabilidade: ressonâncias sobre a educação em saúde

A construção do quadro conceitual da vulnerabilidade no campo da saúde é relativamente recente e está estreitamente relacionada ao esforço de superação das práticas preventivas apoiadas no conceito de risco. Nesse sentido, um primeiro aspecto a ser brevemente discutido é a diferença entre essas duas abordagens, para então explorar algumas das possibilidades da adoção do referencial da vulnerabilidade como eixo re-articulador de práticas de educação em saúde.

O conceito de risco, intensamente desenvolvido pela epidemiologia a partir dos anos 50 do século XX, conformou-se como um instrumento de quantificação das possibilidades de adoecimento de indivíduos ou populações, a partir da identificação de "associações entre eventos ou condições patológicas e outros eventos e condições não patológicas, causalmente relacionáveis" 14 (p. 127). As conquistas decorrentes da aplicação deste conceito às práticas de saúde pública foram associadas à sua operacionalidade, à ampliação da capacidade preditiva e de controle ou eliminação de determinados fatores de risco, com conseqüente redução de probabilidade de ocorrência de agravos e danos.

No entanto, quando a interpretação das variáveis selecionadas não leva em conta a variabilidade e a dinâmica de seus significados sociais concretos, e se o risco aferido passa de uma categoria analítica abstrata para uma prática de intervenção sem as mediações necessárias para que ganhe significados reais, a sua contribuição para orientar as práticas preventivas acaba sendo insuficiente ou até mesmo prejudicial, na medida em que reduz os fenômenos a alguns de seus componentes que podem ser isoladamente mensuráveis. Isso porque, dentre outras coisas, estudos de associação decompõem o todo em partes, associadas entre si por relações lineares e fixas de causa-efeito e, assim, lidam com uma positividade condicional inerente a um discurso que abstrai a variabilidade, a complexidade e a dinâmica dos significados e das práticas sociais em que tais possibilidades de adoecimento são vividas e experienciadas. Traduzidas como probabilidade de ocorrência, tais relações de causa-efeito fornecem explicações parciais dessas chances de adoecimento, permitindo que, aplicadas aos comportamentos relacionados à saúde, sejam descritas como "um risco que as pessoas [ou grupos] decidem correr" 14 (p. 126) por ignorância, por irresponsabilidade ou por livre escolha.

É essa compreensão que subsidia modelos educativos que visam a convencer cada indivíduo a agir de modo diferente, com base em estratégias educativas estritamente dirigidas ao alerta e à transmissão de informações técnico-científicas. Essas informações, de modo geral, se detêm mais na esfera de domínio dos profissionais de saúde, que priorizam a sabedoria técnico-científica, e deixam para segundo plano a sabedoria prática dos indivíduos e comunidades, isto é, aqueles saberes que não têm a pretensão de universalidade da ciência, nem de permanência e reprodutibilidade da técnica, mas caracterizam juízos imediatos que combinam aprendizados de experiências prévias e apreciações imediatas de interesse e valor 15, de enorme importância para as interações que podem (ou não) se estabelecer nos processos educativos. Assim, quando nos dirigimos às pessoas com quem interagimos em nossa prática profissional orientados por essa perspectiva de instrução e controle, nossas ações de educação em saúde não pressupõem a construção de um horizonte discursivo que possibilite a interlocução e que tenha ressonância efetiva sobre os sujeitos ­ usuários e profissionais ­ envolvidos nessa relação educativa 1.

Essas observações não implicam que estejamos negando o valor do risco como um instrumento analítico importante do campo da epidemiologia, mas indicam que questionamos a exclusividade de seu uso imediato como critério normativo de formulação e sucesso das práticas de saúde. Com essa crítica, coloca-se a necessidade de incorporar aos projetos educativos em saúde o conjunto de dimensões envolvido no processo saúde-doença, considerando sua complexidade e suas mútuas interferências, tal como propõem os estudos de vulnerabilidade.

Adentrando o campo da AIDS a partir da interseção entre o ativismo nesse campo e o movimento internacional pelos Direitos Humanos, o conceito de vulnerabilidade, hoje incorporado ao repertório teórico-metodológico em saúde, pode ser resumido como "o movimento de considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também coletivos [e] contextuais" 14 (p. 123) que estão implicados com a maior suscetibilidade ao adoecimento e, concomitantemente, com a maior ou menor disponibilidade de recursos de proteção.

As diferentes situações de vulnerabilidade dos sujeitos (individuais e/ou coletivos) podem ser particularizadas pelo re-conhecimento de três componentes interligados ­ o individual, o social e o programático ou institucional, os quais remetem às seguintes questões de ordem prática: vulnerabilidade de quem? Vulnerabilidade a quê? Vulnerabilidade em que circunstâncias ou condições?

Os componentes da vulnerabilidade individual que têm sido pontuados pelos estudiosos do tema são, fundamentalmente, de ordem cognitiva (quantidade e qualidade de informação de que os indivíduos dispõem e capacidade de elaborá-la) e de ordem comportamental (capacidade, habilidade e interesse para transformar essas preocupações em atitudes e ações protegidas e protetoras) 14. Portanto, no plano individual, considera-se que a vulnerabilidade a algum agravo está relacionada, basicamente, aos comportamentos que criam oportunidades para que as pessoas venham a contrair doenças. Esses comportamentos associados à maior vulnerabilidade não são entendidos e abordados, nesse quadro conceitual, como uma decorrência imediata da ação voluntária das pessoas, mas estão relacionados tanto com condições objetivas do ambiente quanto com as condições culturais e sociais em que os comportamentos ocorrem, bem como com o grau de consciência que essas pessoas têm sobre tais comportamentos e ao efetivo poder que podem exercer para transformá-los.

Entretanto, mesmo com esse enfoque teórico-filosófico e político mais complexo e comprometido, continuam sendo priorizados, neste componente, os aspectos informativo e comportamental que problematizamos anteriormente. Nesse sentido, considerando-se tanto a legitimidade já conferida ao conceito na área da saúde quanto as concepções de educação e de cultura que embasam nossa discussão neste ensaio, talvez se pudesse enriquecer ou mesmo ressignificar esse componente, acrescentando a ele condições que dizem respeito às possibilidades e ao desejo que os indivíduos têm para reconhecer-se como sujeitos das representações "saudáveis" produzidas e veiculadas nas práticas educativas. Ou seja, trata-se de perguntar se estas representações são suficientemente inclusivas para dar conta dos desafios colocados à educação em saúde nas sociedades contemporâneas ou se elas podem contribuir para aumentar a vulnerabilidade vivenciada por pessoas que não se incluem em suas descrições.

O componente social da vulnerabilidade envolve o acesso às informações, as possibilidades de metabolizá-las e o poder de incorporá-las a mudanças práticas na vida cotidiana, condições estas diretamente associadas ao acesso a recursos materiais, a instituições sociais como escola e serviços de saúde, ao poder de influenciar decisões políticas, à possibilidade de enfrentar barreiras culturais e de estar livre de coerções violentas de todas as ordens, dentre outras, que precisam então ser incorporadas às análises de vulnerabilidade e aos projetos educativos às quais elas dão sustentação 14.

O componente institucional ou programático da vulnerabilidade conecta os componentes individual e social. Envolve o grau e a qualidade de compromisso, recursos, gerência e monitoramento de programas nacionais, regionais ou locais de prevenção e cuidado, os quais são importantes para identificar necessidades, canalizar os recursos sociais existentes e otimizar seu uso. O componente programático nos orienta a situar as dimensões educativas para além do caráter normativo e centrado no objeto, levando-nos a articular as intervenções em saúde e as ações programáticas e, principalmente, a repensar o cuidado em saúde enquanto encontro de sujeitos. Nesse encontro de sujeitos é extremamente importante levar em consideração elementos abstratos associados e associáveis aos processos de adoecimento, articulando "a co-presença, a mutualidade, a interferência, a relatividade, a inconstância, o não unívoco, o não permanente, o próprio a certas totalidades circunscritas no tempo e no espaço" 14 (p. 127).

Articulados entre si, os três componentes constitutivos de uma abordagem apoiada no quadro conceitual da vulnerabilidade priorizam análises e intervenções multidimensionais, que consideram que as pessoas não são, em si, vulneráveis, mas podem estar vulneráveis a alguns agravos e não a outros, sob determinadas condições, em diferentes momentos de suas vidas 16. Nesse sentido, essa abordagem é indissociável de uma "atitude compreensiva" de conhecer, com a qual se assume que as "partes" com as quais lidamos em nossos cotidianos profissionais fazem sentido dentro de um todo que as torna apreensíveis e, em certa medida decodificáveis, para funcionarem como eixos articuladores de práticas educativo-assistenciais em saúde.

 

"A gente aprende...": re-construindo relações intersubjetivas na educação em saúde

Como já vimos argumentando, a adoção do quadro conceitual da vulnerabilidade como um referente que pode re-dimensionar e re-direcionar o saber/fazer em saúde, implica um exercício de síntese de "certas totalidades circunscritas no tempo e no espaço", em contraposição ao isolamento analítico que caracteriza os estudos sobre o risco. Esse é um movimento teórico-prático que demanda um esforço de reconhecimento e de articulação de elementos associados e associáveis aos processos de produção de saúde ou de adoecimento nos contextos em que transcorre a vida dos diferentes sujeitos sócio-culturais.

Ao discutir a incorporação da noção de vulnerabilidade às suas práticas de prevenção à infecção pelo HIV entre adolescentes, autores 17 argumentam, dentre outros aspectos, que a produtividade das ações educativas com esse enfoque depende da "aceitação intersubjetiva de pretensões de validez, isto é, do reconhecimento de que as práticas preventivas propostas são: corretas (implementam ações legítimas para determinados contextos); verdadeiras (expressam certezas compartilháveis); e autênticas (comunicam-se legitimamente com diferentes experiências, interesses, afetos)" 17 (p. 297). Dito de outro modo, a intencionalidade de construir estratégias educativas que permitam investir em possibilidades de transformação das condições de vida nas quais crenças, hábitos e comportamentos ganham sentido demanda apreender, compreender e dialogar com a multiplicidade de aspectos que modulam as crenças, os hábitos e os comportamentos dos indivíduos e grupos com os quais interagimos. Nesta perspectiva, a produção de experiências mais ou menos patogênicas, mais ou menos promotoras de bem-estar estaria associada, principalmente, às relações intersubjetivas que se estabelecem na experiência de re-construção de padrões culturais validados socialmente e à problematização do espaço/tempo social no qual as nossas práticas educativas estão situadas.

No caso do exemplo com que introduzimos o texto seria indispensável, então, considerar a multiplicidade e os conflitos de elementos que se articulam na produção de uma certa "cultura tabagista", na qual o indivíduo "aprende a fumar" ou constrói sua identidade de sujeito fumante ­ um processo que vai desde aspectos estruturais, co-existência das políticas de fomento à indústria tabageira, incentivos fiscais à sua implantação e à geração de empregos, até aspectos ligados à prática individual de fumar, influenciada por aspectos como a persistência, na mídia, de imagens de natureza, autonomia, beleza e juventude agregadas a esse hábito, para além do bem-estar físico que proporciona a muitos. Assim, mesmo no espaço mais restrito das interações educativas, ações preventivas conseqüentes não devem se abster do exame dos sentidos sociais que o cigarro assume em um determinado contexto social e temporal, ao invés de tratar o hábito (hábito?) de fumar como um problema de falta de informação ou de força de vontade do indivíduo a quem se pretende "ensinar a parar de fumar". Isso demandaria "reconhecer que não é o cigarro em si que é necessariamente importante para o fumante, mesmo que a dependência física possa estar envolvida, mas o que ele simboliza" 9 (p. 41), por exemplo, em termos de recomposição do controle emocional, relaxamento em situações altamente estressantes, tempo para si mesmo, auto-indulgência, experimentação da emoção do perigo e da transgressão a regras instituídas, dentre outras coisas. Nesse sentido, tematizá-lo como integrante de uma certa possibilidade de "conduzir a vida" supõe a busca de pontos de encontro entre o saber científico dos profissionais com o saber prático dos indivíduos fumantes, considerando a inter-relação entre os critérios que pautam a valorização de sua saúde e a construção (sempre mutante) de seus projetos de vida.

Com esta perspectiva necessariamente integrada e abrangente, a educação em saúde pode ser pensada não como estratégia de aliciamento a um modelo que permanece cognitivo-racional ou como recurso para uma "aprendizagem sanitária" satisfatória, mas como eixo orientador de escolhas político-pedagógicas significativas para um dado grupo e contexto. E o apoio e a resposta social que se busca alcançar envolvem a comunicação entre diferentes, que não objetiva a homogeneização de formas de pensar e levar a vida, mas a construção e o fortalecimento de cumplicidades na busca de proteção.

Nesse sentido, essa educação em saúde, compreendida como caminho que busca articular dimensões complementares com vistas à construção de respostas sociais significativas, torna-se possível quando se entende que a educação não trata de definir comportamentos corretos para os demais, mas de criar oportunidades de reflexão crítica e interação dialógica entre sujeitos sociais "fundada em certas disposições ético-cognitivas: (1) o reconhecimento do outro como um legítimo outro; (2) o reconhecimento de cada um como insuficiente; (3) o reconhecimento de que o sentido de uma situação é fabricado pelo conjunto dos saberes presentes". O que significa reconhecer "que ensinar não é homogeneizar os sentidos fazendo desaparecer as divergências, mas fazer emergir o sentido no ponto de convergência das diversidades" 18 (p. 323).

Entendendo, pois, que a potência de uma teoria não reside apenas no que ela diz, mas sobretudo naquilo que ela nos permite fazer 19, apostamos que o referencial da vulnerabilidade pode contribuir muito para a renovação das práticas de saúde em geral e, particularmente, para as práticas de educação em saúde, porque consiste precisamente na busca de um novo horizonte para situar e articular riscos, "causalidades" e "determinações", trazendo a saúde ­ assim como a possibilidade de adoecer ­ para o campo da vida real, para o mundo dos sujeitos em relação no qual esses processos ganham sentidos singulares.

 

Colaboradores

A concepção geral do artigo foi discutida pelos quatro autores. D. E. E. Meyer, D. F. Mello e M. M. Valadão redigiram o corpo principal do texto e J. R. C. M. Ayres fez a sua revisão, apresentando sugestões incorporadas pelas outras autoras e redigindo trechos da versão final.

 

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17. Feliciano KVO, Ayres CMJ. Prevenção da AIDS entre jovens: significados das práticas e os desafios à técnica. In: V Congresso Brasileiro de Epidemiologia. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2002; p. 297.        

18. Teixeira RR. Humanização e atenção primária à saúde. Ciênc Saúde Coletiva 2005; 10:315-27.        

19. Grosz E. Futuros feministas ou o futuro do pensamento. Labrys ­ Estudos Feministas 2002; 1-2, jul/dez. http://www.unb.br/ih/his/gefem/grosz1.html (acessado em 23/Mai/2003).        

 

 

Correspondência
D. E. E. Meyer
Departamento de Ensino e Currículo
Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Av. Paulo Gama s/n, prédio 12201, 7o andar
Porto Alegre, RS 90046-900, Brasil
dagmaremeyer@yahoo.com.br

Recebido em 29/Ago/2005
Aprovado em 19/Dez/2005

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br