ARTIGO ARTICLE

 

Vigilância epidemiológica da doença de Chagas em programa descentralizado: avaliação de conhecimentos e práticas de agentes municipais em região endêmica de Minas Gerais, Brasil

 

Chagas disease epidemiological surveillance in a decentralized program: evaluation of practice and knowledge among municipal health agents in an endemic region of Minas Gerais State, Brazil

 

 

Marcos Marreiro VillelaI; Janice Maria Borba de SouzaII; Vicente de Paula MeloII; João Carlos Pinto DiasI

ICentro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, Belo Horizonte, Brasil
IIGerência Regional de Saúde de Divinópolis, Divinópolis, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho foi avaliar a vigilância epidemiológica sobre a doença de Chagas na região centro-oeste de Minas Gerais, Brasil, a partir dos conhecimentos e práticas adotadas pelos agentes municipais que trabalham no Programa de Controle da Doença de Chagas. Com esse propósito, foram realizadas viagens para 35 municípios da região, nas quais foram feitas reuniões e aplicação de questionário sobre os conhecimentos, práticas e dificuldades que os agentes municipais apresentam na realização do trabalho. A maioria dos agentes (26) apresenta contrato anual, e apenas dois são efetivos pela prefeitura. Setenta e sete vírgula um por cento dos agentes falaram que a população apresenta problemas para identificar triatomíneos. Vinte e três funcionários relataram serem boas as condições que o município oferece para realização do programa, mas 27 fizeram sugestões, solicitando especialmente mais material educativo, melhores salários e maior valorização do cargo pela prefeitura. Algumas providências são apontadas em relação ao momento atual do programa, pois a etapa de vigilância é crucial para a consolidação dos resultados alcançados.

Doença de Chagas; Vigilância Epidemiológica; Programas Nacionais de Saúde; Descentralização


ABSTRACT

This study aimed to evaluate the epidemiological surveillance of Chagas disease in the central-western region of Minas Gerais State, Brazil, based on knowledge and practice among municipal health agents working in the Chagas Disease Control Program. Thirty-five municipalities (counties) were visited, with meetings and application of a questionnaire on knowledge, practice, and difficulties in conducting the surveillance work. Twenty-six agents were on temporary (annual) contracts, and only two had job stability. 77.1% of the agents commented that the local population had difficulty identifying the vector insects (triatomines). Twenty-three employees stated that the municipal governments provided adequate conditions for conducting the surveillance program, although 27 made suggestions, particularly requesting more educational materials, better wages, and greater appreciation of their work by the municipal governments. Such suggestions are crucial to the consolidation of the program's results.

Chagas Disease; Epidemiologic Surveillance; National Health Programs; Decentralization


 

 

INTRODUÇÃO

A doença de Chagas continua sendo um grave problema de saúde pública na América Latina, onde se estima que 4% a 5% da população possa estar infectada pelo Trypanosoma cruzi 1. Minas Gerais é considerado um dos Estados brasileiros com maior prevalência da endemia chagásica, tendo sido coincidentemente o palco da descoberta da doença 2. A região centro-oeste de Minas Gerais sempre apresentou elevada endemicidade para doença de Chagas, onde se destaca o Município de Bambuí, no qual as ações de controle da transmissão vetorial da enfermidade foram iniciadas na década de 1940. Em que pese toda esta história o Programa de Controle da doença de Chagas (PCDCh) só foi sistematizado na forma de programa de alcance nacional a partir de 1975, pela Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), posteriormente Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) 3,4,5,6,7. O PCDCh foi inicialmente dividido em três etapas: (a) planejamento e reconhecimento geográfico; (b) fase de ataque ao vetor domiciliado; (c) vigilância epidemiológica, para evitar o retorno do vetor. Esta última fase é pobremente documentada 8.

Passadas algumas décadas de controle vetorial da doença de Chagas, os dados disponíveis indicam que o impacto das ações realizadas foi bastante positivo, tendo o país sido declarado pela Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) como livre da transmissão por Triatoma infestans em junho de 2006 9. Inquéritos sorológicos em grupos etários jovens, ou em estudos de coorte, mostraram que no Brasil as taxas de prevalência provenientes da década de 1970 eram de 4,2%, enquanto que em estudos recentes esse índice caiu para menos de 0,2% 10,11.

Tradicionalmente, a fase de vigilância epidemiológica é instalada em municípios que apresentam índice de infestação domiciliar de triatomíneos menor que 5%, sendo esta a etapa em que se encontram os municípios da região centro-oeste de Minas Gerais. Na vigilância epidemiológica o auxílio da população é de extrema importância, pois cabe a ela notificar novos focos de triatomíneos para posterior atendimento e borrifação dos focos confirmados pelos agentes da saúde 12.

Um fato marcante ocorreu com o PCDCh em 1999, pois a Portaria nº. 1.399 13 do Ministério da Saúde, de 15 de dezembro de 1999, equacionou a descentralização das ações de controle de endemias e promoveu a transferência das responsabilidades para os Estados e municípios. Essa descentralização do sistema de saúde vem tomando maior impulso desde o final da década de 1970, com a Conferência de Alma Ata de 1978, a qual previa saúde para todos no ano 2000. No Brasil, essa idéia culminou na proposição do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), que representou o primeiro processo de descentralização do setor. Já na década de 1980, que foi marcada por uma forte crise político-econômica e pela deterioração do regime militar, sobrevieram outras propostas de organização do sistema de saúde. Em particular, destacou-se a VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) que priorizava as ações finalísticas de saúde, levando as decisões programáticas e o planejamento para mais próximo da população, tudo isto como dever do Estado e sob a égide de forte controle e participação da sociedade 14. Nesta nova realidade administrativa, o município passou a ser responsável pelo atendimento das necessidades e demandas de saúde de sua população 15. Logo, os programas de controle de endemias de Minas Gerais foram municipalizados a partir do ano 2000, e começaram a ser conduzidos em 2001 pelas prefeituras sob a coordenação das Gerências Regionais de Saúde (GRS). Estas gerências pertencem à Secretaria Estadual de Saúde (SES), e estão sediadas em municípios de maior importância política ou econômica, existindo hoje 28 GRS em Minas Gerais 16. A elas competem as tarefas de normatização e articulação das ações regionais de saúde junto aos municípios, bem como intermediação das necessárias pactuações orçamentárias. Em particular, quanto ao PCDCh, cabe a GRS a preparação de recursos humanos a partir da realização de cursos de capacitação dos agentes municipais, além da supervisão e avaliação das ações de controle da endemia. Uma das dificuldades deste novo sistema é que embora a descentralização se justifique em pressupostos teóricos, não existe tradição deste controle em níveis municipais, o que dificulta a transferência de encargos e o cumprimento continuado do programa 17.

Antes da descentralização o PCDCh era realizado por funcionários pertencentes a SUCAM/FUNASA, havendo grupos de agentes responsáveis por determinadas zonas de cada Estado, distribuídas em distritos regionais. Após a descentralização, e com o surgimento da municipalização, cada município passou a contratar um agente municipal de saúde para trabalhar no programa.

Face à escassez de dados na literatura sobre os novos agentes alocados ao programa, e objetivando auxiliar no refinamento do PCDCh no âmbito do processo de descentralização, o presente trabalho foi realizado numa GRS representativa da realidade do Estado de Minas Gerais (Divinópolis), em busca de melhores informações sobre o perfil dos agentes do PCDCh, com especial atenção aos seus questionamentos, dificuldades e sugestões frente à nova realidade.

 

Materiais e métodos

Região de estudo

Foram abrangidos os 54 municípios da GRS de Divinópolis (Figura 1), uma região onde a doença de Chagas humana foi muito freqüente no passado. Além disso, esta Regional está bem estruturada e em pleno funcionamento, sendo que a maioria dos municípios apresenta agentes realizando o programa. A vigilância começou a ser efetuada pelos municípios em 2001.

Avaliação junto aos agentes do PCDCh

Como amostragem considerada estatisticamente significativa, foram sorteados 35 municípios da região para serem visitados entre fevereiro de 2004 até agosto de 2006, tendo-se o cuidado, previamente ao sorteio, para que todos os quadrantes da região fossem contemplados. Como critério de inclusão, o município sorteado deveria ter contratado agente do PCDCh. Após o sorteio foram realizadas 16 viagens para a região, sendo que em oito delas, foram feitas reuniões com os funcionários da GRS Divinópolis, ou estes acompanharam o trabalho de campo. Todos os municípios visitados aceitaram participar da pesquisa, mediante consulta prévia aos respectivos gestores. Nos municípios visitados aplicou-se um questionário nos agentes municipais que trabalham no PCDCh, com questões que contemplavam os seguintes temas: (a) idade/escolaridade; (b) treinamento recebido para execução do programa; (c) número de unidades domiciliares (UD, compreendida pela casa e seus anexos) de que o agente é responsável; (d) forma de contrato/salário; (e) meio de transporte utilizado; (f) técnicas de captura e borrifação; (g) disponibilidade e uso de equipamento de proteção individual (EPI); (h) meios de transporte disponíveis e condições dos mesmos; (i) quantidade de Postos de Informação de Triatomíneos (PIT) que o município possui; (j) material educativo e de informações, disponível para estudo e distribuição; (l) problemas operacionais e/ou administrativos encontrados e sugestões para superá-los.

Em metade dos municípios o agente foi acompanhado durante suas atividades de campo. Além das visitas, foram realizadas reuniões com os responsáveis técnicos da GRS Divinópolis, para se obter maiores informações sobre o PCDCh da região estudada. Em todas as viagens e reuniões foi preenchido um diário de campo, com as anotações necessárias para confecção das atas das reuniões.

 

Resultados

Foram visitados 35 municípios da região centro-oeste de Minas Gerais, que se encontram assinalados na Figura 1.

Perfil geral e funcionamento do sistema

Os agentes apresentavam média de idade de 32,8 ± 11 anos, e a maior parte possuía ensino médio completo (62,8%). A maioria dos agentes (26) realizou curso de capacitação antes de começar a executar suas atividades, geralmente ministrado por supervisores da GRS e da SES. Os nove funcionários que não participaram de um curso específico receberam treinamento através do agente de algum município onde o programa estivesse sendo executado corretamente. Entretanto, além dos cursos, eram realizadas supervisões quinzenais, ou mensais, em todos os municípios, pelos inspetores da GRS, oportunizando que os agentes municipais pudessem sanar suas dúvidas e solicitar eventuais auxílios frente a situações imprevistas. Tais supervisões têm sido realizadas continuamente desde o início do PCDCh descentralizado, na tentativa de manter a qualidade e continuidade das ações municipais.

Em todos os municípios, apenas um agente era responsável pelo programa. Quanto à forma de contrato, somente dois funcionários (5,7%) apresentavam contrato efetivo da prefeitura, enquanto que 26 (74,3%) possuíam contrato temporário (um ano). Os demais agentes (7 ou 20%) eram da FUNASA cedidos aos municípios.

Locomoção e ações finalísticas

A motocicleta foi o principal meio de transporte utilizado pela maioria dos agentes. Em apenas um município não existia nenhum tipo de transporte (Figura 2). Em três municípios os agentes não apresentavam carteira de habilitação.

Em relação ao tempo de procura de triatomíneos nas UDs, a maioria dos agentes levava entre trinta minutos e uma hora nesta etapa (60%). Do restante, a metade levava mais de uma hora procurando triatomíneos, e a outra metade menos de trinta minutos. Quanto ao EPI, em 23 (65,7%) municípios faltava ao menos um acessório do conjunto completo, sendo camisa de manga longa, pinça e botas, os mais ausentes (Tabela 1). Um município não dispunha de nenhum EPI.

No que diz respeito à borrifação, a norma utilizada pela maioria dos municípios (32) é de borrifar as casas somente se o foco triatomínico for confirmado na inspeção pelo agente (encontro de pelo menos mais um hemíptero hematófago após a notificação), mas em três municípios o expurgo é realizado sempre que é feita a notificação, independente da confirmação do foco, prática esta não endossada pela GRS.

O horário preferencial para o expurgo é o período da manhã, apontado por 26 (74,3%) agentes municipais, a tarde foi mencionada por dois agentes; em ambos os horários, por quatro. Três agentes relataram não ter borrifado nenhuma casa até aquele momento.

A média de PITs por município foi de 8,7, mas variou de 24 (Formiga) até um (Dores do Indaiá). O número de UDs correspondentes a cada funcionário variou de 669 (Araújos) até 11.635 (Bom Despacho), com uma mediana de 2.064 UDs por agente municipal.

Conhecimento, instrução e participação da população

Quando perguntados se a população apresenta dificuldade para o reconhecimento de triatomíneos, a maioria dos agentes (27 ou 77,1%) respondeu afirmativamente. Palestras de elucidação sobre os vetores e a doença de Chagas foram realizadas por 22 (62,9%) agentes. Ainda sobre o processo de educação/conhecimento, 30 agentes relataram levar mostruário para ensinar as pessoas no meio rural, e 22 também possuíam outros materiais de esclarecimento, sendo fôlderes e cartilhas os mais utilizados. Agentes de três municípios, embora tivessem o mostruário, não o levavam ao campo, e cinco municípios não o possuíam, sendo que os mesmos já foram providenciados pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). No que tange à permissão de entrada dos agentes nas UDs, em seis municípios os funcionários disseram que já houve recusas da população (casos isolados) durante o atendimento ou durante a pesquisa integral (que é a inspeção de todos os domicílios da zona rural), não permitindo a procura na residência.

Condições oferecidas pelos Municípios, dificuldades encontradas e sugestões apresentadas

Quando perguntados sobre as condições que o município oferece para realizar o PCDCh, 23 (65,7%) agentes disseram ser boas, 8 (22,9%) regulares, 3 (8,6%) ruins, e 1 (2,8%) funcionário preferiu se abster da questão. Porém, 27 (77,1%) funcionários comentaram ter alguma dificuldade na realização do trabalho. Entre as principais dificuldades relatadas estão o transporte e os baixos salários associados à desvalorização do cargo pela prefeitura (Tabela 2).

Quando perguntados que propostas teriam para facilitar/melhorar o seu trabalho, 23 (65,7%) funcionários fizeram sugestões, sendo o material educativo (9) e melhores salários/valorização do cargo (7), as mais citadas (Tabela 3).

Rotatividade dos agentes do PCDCh

Através de registros da GRS Divinópolis, verificou-se que em 15 (42,9%) municípios (Araújos, Arcos, Campo Belo, Carmópolis de Minas, Dores do Indaiá, Iguatama, Itaguara, Luz, Medeiros, Moema, Nova Serrana, Passatempo, Santo Antônio do Monte, São Sebastião do Oeste, e Tapiraí) os agentes já haviam sido trocados até o final desta avaliação, ou o município estava paralisado.

 

Discussão e conclusões

Em seu marco teórico, a descentralização das ações de saúde se mostra como um importante caminho, beneficiando diretamente a população, dando-lhe rapidez, integralidade e eficiência, conforme os postulados do Sistema Único de Saúde (SUS) e a Lei Orgânica da Saúde em nosso país 18. No entanto, estes fatores dependem da organização, disponibilidade, competência, e mecanismos de sustentabilidade dos municípios. No que tange à vigilância da transmissão da doença de Chagas após a descentralização, dentre as competências do município cabe a execução das ações de controle dos vetores do T. cruzi, e ao Estado o suporte técnico, supervisão, e avaliação dos programas instalados. O estímulo externo é importante, sobretudo os trabalhos de avaliação e supervisão do programa, pois este repassa conceitos, redefine procedimentos, dá mobilidade entre os vários níveis do sistema e orienta a execução dos serviços 19.

Os recursos chegam às GRS a partir da FUNASA ou da Secretaria Nacional de Saúde, e são repassados aos municípios mediante planejamento e negociação numa Comissão Bipartite (composta entre Estado e municípios).

No contexto dos estudos sobre a vigilância epidemiológica da doença de Chagas que a FIOCRUZ vem realizando em Minas Gerais, em parceria com as Secretarias Estadual e Municipais de Saúde, tem-se observado no oeste do Estado algumas situações de persistência ou recrudescência de focos domiciliares de Panstrongylus megistus, o que justifica a manutenção do programa na região 20. Para esclarecer o papel dos municípios da região frente ao PCDCh, os coordenadores da GRS Divinópolis enviaram um documento informando a metodologia e a estrutura necessária para a execução do programa, a qual inclui a aquisição de motocicleta e a contratação de um agente de saúde para o cumprimento das ações. Posteriormente, foram realizadas visitas aos secretários da saúde para melhor informar e discutir o trabalho. Mesmo assim, nota-se despreocupação com a causa por parte de alguns municípios, visto que dois nunca executaram o programa após a descentralização (Onça do Pitanguí, e São Gonçalo do Pará). Segundo relatório enviado a nós pela GRS, existem municípios em que o programa permaneceu mais tempo paralisado do que em execução, sendo eles: Cristais, Dores do Indaiá, Itatiaiuçú, Pains, Igaratinga, Martinho Campos, Pará de Minas e Perdigão. O principal fator de paralisação nesses municípios provavelmente foi a falta de empenho administrativo e/ou político, visto que os secretários da saúde foram informados, através de reuniões com os agentes da GRS, sobre a importância do PCDCh. Esses dados corroboram o estudo de Prata 21, no qual o autor conclui que a persistência das endemias se deve à irregularidade com que as campanhas têm sido conduzidas, por motivos de ordem administrativa e, principalmente, orçamentária.

Segundo Dias 22, é fundamental e necessário que se façam adequadas seleção e preparação do funcionário para o desempenho do papel de agente de saúde. Isso foi visto em parte na região, pois numa visão geral, os agentes apresentavam bons conhecimentos sobre as normas técnicas do programa, como por exemplo, a maioria levando entre trinta minutos e uma hora para capturar triatomíneos em uma UD, estando este tempo de acordo com as normas técnicas do programa 23. Alguns agentes ainda não haviam encontrado triatomíneos durante as visitas às notificações, ou realização da pesquisa integral, o que pode ser explicado pela ausência de triatomíneos invadindo domicílios, inexperiência do funcionário, ou baixa produtividade do agente durante a inspeção nas casas, visto que alguns municípios apresentam histórico de grande quantidade de triatomíneos 24. Além das supervisões que já ocorrem, alguns cursos de atualização deveriam ser oferecidos para os agentes, visto que estes estimulariam o funcionário no cumprimento da função, e aumentaria sua valorização por parte das prefeituras 12,25.

A falta de EPI e de materiais para execução do programa foi observada em 65,7% dos municípios visitados, o que dificulta a execução correta da atividade. Por seu turno, a ausência de EPI pode por em risco a saúde do agente, visto que alguns piretróides utilizados no programa podem ter alta ação alergênica, causando irritação dérmica e ocular 26. Vale comentar que a responsabilidade de prover esse material aos agentes é dos municípios, já que recebem uma quantia repassada pelo Governo Federal (a qual deve ser complementada com uma contrapartida de 30%) que deve ser alocada para o controle de endemias 27.

Apenas um agente afirmou não ter veículo para ir ao campo, embora problemas com meios de transporte tenham sido citados em dez municípios. Entre os problemas relatados estão que as motos disponíveis seguidamente apresentam defeitos mecânicos, ficando, em determinadas ocasiões, inutilizadas por meses. Destaca-se que a responsabilidade de manutenção dos veículos cabe aos municípios, e estes alegam, para tal paralisação, motivos de ordem financeira. Tanto para as dificuldades com o transporte, como para o EPI, existem diferenças administrativas ou de prioridade de endemias entre os municípios, já que alguns conseguem obter todo material indispensável para a execução do programa e ainda possuem dinheiro em caixa, enquanto outros têm dificuldade para adquirir o básico. É importante citar que agentes de três municípios não apresentavam um dos requisitos fundamentais para exercer a função, visto não terem a habilitação para a condução do veículo, o que pode ser entendido como perfil inadequado para exercício da função. Essa dificuldade no transporte é um dos fatores negativos também para a participação comunitária na pesquisa entomológica, pois para sua manutenção é recomendável que a resposta do agente às notificações seja rápida, eficiente e contínua 28.

A necessidade de maior conhecimento da população sobre os triatomíneos e a falta de material educativo para distribuição foram também assinaladas pelos funcionários. Esse fato pode ser revertido através de maior intensificação das ações educativas e maior incentivo à participação comunitária 18,29. Percebeu-se, a propósito, que existe preocupação da maioria dos agentes com essa parte do programa, pois a principal sugestão para sua melhoria foi exatamente o aumento do número de material educativo para distribuição. Esse fato corrobora os preceitos descritos para o PCDCh, nos quais os funcionários devem atuar também como agentes de educação e formação, junto às famílias, escolas e PITs 30,31. Segundo Verdú & Ruiz 32, as mulheres deveriam ser o principal grupo abrangido pelos programas de educação voltados à prevenção e controle da doença de Chagas, já que são elas que realizam a tarefa de limpeza com maior freqüência e não se ausentam tanto das residências quanto os homens no meio rural.

Outro problema encontrado é que, independente do tamanho e da quantidade de UDs dos municípios visitados, todos apresentam apenas um agente para o PCDCh, o que pode ser motivo de discórdia em algumas ocasiões. Isso também concerne ao número de PITs que o agente deve visitar no município, que varia de 24 até 2 na região estudada. Em certas circunstâncias, um maior número de funcionários realizando o controle da doença de Chagas pode ser necessário, especialmente durante a fase de pesquisa integral de municípios maiores e mais populosos.

Em relação ao contrato de trabalho, este tem sido considerado um ponto crucial para a motivação dos agentes e para a continuidade do trabalho após a descentralização, impedindo a criação de equipes municipais permanentes 33. Em nosso estudo, a maioria dos agentes (26 ou 74,3%) apresentava contrato anual sem vínculo trabalhista dado pelo município, sendo apenas dois agentes efetivos na região. Tais contratos precários geram a falta de perspectiva na carreira, que associada aos baixos salários, faz com que alguns funcionários não se dediquem plenamente ao programa, resultando em um alto índice de rotatividade. Assim, ao final do período de nossas entrevistas, 15 municípios já haviam trocado de agente ou o PCDCh estava desativado por falta de agente. Essa alta rotatividade é considerada um dos principais pontos negativos para a manutenção da vigilância epidemiológica municipal, pois é exatamente quando o agente está adquirindo experiência no trabalho de campo (após um ano de serviço), que ele costuma trocar de função (geralmente em busca de melhores salários), ou é demitido. Esse fato é contrário ao que ocorria antes da descentralização, pois os funcionários da SUCAM/FUNASA além de serem efetivos, tinham planos de carreira, o que ajudava a manter o estímulo no cumprimento das atividades. Por consenso dos especialistas e gerentes do PCDCh, tal rotatividade resulta na fragmentação e pouca produtividade de trabalho. Esse fator se associa a problemas políticos/administrativos em alguns municípios, ocorrendo, segundo alguns secretários de saúde, devido ao escasso recurso financeiro enviado que é destinado às ações de controle das endemias, o que já foi observado em outro estudo 34. É fato que no Brasil existe uma escassez de recursos públicos destinados à saúde, é calculado que o governo aplique cerca de 200 dólares por pessoa/ano para a saúde, cifra bastante reduzida frente às reais necessidades e aos montantes disponíveis em países mais desenvolvidos 35. Segundo Dias 36, ao lado da falta de cultura e de experiência para ações como a vigilância epidemiológica na doença de Chagas em níveis mais periféricos, os problemas mais evidentes têm natureza político-administrativa, dependendo muito pouco de técnicos, cientistas e inovações tecnológicas.

Análises recentes da região centro-oeste de Minas Gerais têm demonstrado quatro espécies de triatomíneos invadindo domicílios (P. megistus, Panstrongylus diasi, Rhodnius neglectus, Triatoma sordida), com um índice de infecção de 1,3%, e foram registradas capturas em 46 dos 54 municípios avaliados 37. Embora exames sorológicos de rotina, realizados nesta região, demonstrem a ausência de transmissão vetorial da doença de Chagas atualmente, algumas providências devem ser tomadas em relação ao controle vetorial da endemia na região para que novos casos não tornem a ocorrer. Na área estudada, embora exista preocupação de eficiência e sustentabilidade do PCDCh por parte de alguns municípios, muitos apresentam problemas no que tange ao controle da doença de Chagas. Um maior suporte para o Estado e municípios pode ser necessário, assim como uma melhor supervisão dos órgãos e gerências centrais responsáveis pelo programa. Em particular, a prestação de contas do dinheiro submetido para tal atividade precisa ser adequadamente implementada conforme os pressupostos básicos da descentralização. Requer-se em especial uma maior valorização dos agentes municipais, com efetivação e melhoria salarial. Além disso, as atividades de apoio técnico e supervisão ao programa são hoje basicamente exercidas por agentes e técnicos oriundos da FUNASA, os quais, nos próximos cinco ou dez anos deverão aposentar-se. Resta questionar como ficará o PCDCh neste futuro, em termos de supervisão e apoio técnico ao programa?

Para Minas Gerais e para o Brasil, os desafios de manutenção e aprimoramento do PCDCh após a descentralização são ainda maiores, sendo que muitos municípios ainda não estão preparados para tais funções. A otimização da vigilância tem natureza complexa e requer imediata e profunda revisão pelos três níveis de governo. Na consolidação do PCDCh, o processo de descentralização parece politicamente irreversível, mas pode e deve ser tecnicamente viável, na dependência de aprimoramentos administrativos em sua estrutura, e de real vontade política dos governantes.

 

Colaboradores

M. M. Villela executou a pesquisa no campo, aplicando o questionário aos agentes, além de elaborar o artigo. J. M. B. Souza e V. P. Melo auxiliaram no trabalho de campo, supervisionaram o trabalho dos agentes, além de dar o suporte necessário para a coleta de dados. J. C. P. Dias orientou a pesquisa e também redigiu o artigo.

 

Agradecimentos

Este trabalho é parcialmente subsidiado pelo Programa Especial de Pesquisas e Treinamento em Doenças Tropicais – TDR (Organização Mundial da Saúde/Banco Mundial/Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Também agradecemos a Maria Inês de Oliveira Mascarenhas pela colaboração na confecção do mapa.

 

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Correspondência:
J. C. P. Dias
Centro de Pesquisas René Rachou
Fundação Oswaldo Cruz
C. P. 1743, Belo Horizonte, MG
30190-002, Brasil
jcpdias@cpqrr.fiocruz.br

Recebido em 11/Nov/2006
Versão final reapresentada em 15/Fev/2007
Aprovado em 30/Mar/2007

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br