DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Fry et al.

 

Debate on the paper by Fry et al.

 

 

Mark Drew Crosland Guimarães

Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. drew@medicina.ufmg.br

 

 

Fry et al. apresentam argumentos políticos, históricos e epidemiológicos relativos à tendência da epidemia de AIDS no Brasil considerando a variável cor/raça. São arrazoados, bem elaborados divididos basicamente em dois itens: (i) interpretação de dados; e (ii) formulação de políticas públicas no Brasil. Gostaria de chamar a atenção principalmente para o primeiro aspecto. Apesar dos autores desenvolverem uma crítica às interpretações publicadas em boletins do PN-DST/AIDS, incorrem no mesmo erro ao tentarem estabelecer seu ponto de vista. Enfatizo um dos mais citados usos da epidemiologia, i.e., a geração e análise de dados que possam subsidiar a construção de indicadores norteadores da formulação de políticas públicas em saúde. A magnitude dos eventos em saúde, dada por informações descritivas de morbimortalidade, deveria apontar para prioridades a serem atendidas em programas de prevenção e/ou cuidados à saúde da população. No entanto, uma correta interpretação de tendências depende de diversos fatores, dentre os quais incluo a definição do indicador propriamente dito e a qualidade das informações. É freqüente o uso de indicadores cujos denominadores representam apenas o total de observações, gerando as chamadas, indevidamente, taxas proporcionais. Um dos conceitos básicos da epidemiologia, principalmente quando se deseja produzir inferências para grandes populações, é definir adequadamente seu denominador sob risco, i.e., a qual população estes indicadores pretendem representar. É também notória a baixa confiabilidade dos dados gerados pelos sistemas de informações hoje disponíveis no Brasil, geralmente coletadas e processadas por pessoal com pouco treinamento. Tanto aqueles que geram os dados primários quanto os que processam tais informações, via de regra não se preocupam com sua qualidade (e.g. validade e confiabilidade), apesar de esforços estarem ocorrendo para um aprimoramento do sistema. Dessa forma, a possibilidade de profissionais de saúde utilizarem dados disponibilizados pelo sistema para uso público e produzirem interpretações falaciosas é alta. Em relação ao sistema de informação de AIDS, essas duas limitações acontecem simultaneamente. Não me surpreende o altíssimo grau de informação desconhecida com relação à variável cor/raça indicada no artigo. Preenche-se uma ficha de notificação como um mero ato burocrático. Concordo com os autores quanto ao enorme risco que o PN-DST/AIDS incorre ao tentar, por motivos nada embasados em dados empíricos, criar a racialização da AIDS no país. Outros erros nesse mesmo sentido já ocorreram, ao se descrever tendências da epidemia por meio de denominações tais como juvenização, heterossexualização, feminização e pauperização. São interpretações baseadas em dados proporcionais de notificação de casos de AIDS com a conhecida baixa confiabilidade, tempo de atraso e subnotificação, dentre outros. Torna-se complicado do ponto de vista de política pública afirmar que o risco de se adquirir o HIV está aumentando, por exemplo, entre as mulheres, baseado apenas em proporções. Sim, é verdade que o número de casos de AIDS notificados entre mulheres tem aumentado, mas a epidemia continua crescendo também entre os homens. De forma semelhante, como bem apontado pelos autores, os dados sobre escolaridade não corroboram a teoria da chamada pauperização. Em um programa respeitado mundialmente como o nosso, não podemos aceitar que tais denominações sejam feitas sem o embasamento empírico necessário. Em todos, não há um dado sequer indicativo de que o risco de se adquirir o HIV em uma dada população está aumentando ou diminuindo. O que se coloca é o peso (proporção) que uma categoria está tendo em relação à outra. Conseqüentemente, o efeito do aumento em uma categoria é a óbvia diminuição em outra, por termos sempre um total que some 100%. A afirmativa de que existe um aumento proporcional em um grupo, não é sinônimo de redução de risco na categoria complementar, podendo-se incorrer em uma comunicação inadequada do ponto de vista de saúde pública. Não é possível obter dados de tendência confiáveis com o nível de deficiência e com a baixa confiabilidade das informações atualmente disponíveis. Nesse sentido, aponto a aparente contradição a que os autores se submetem. Em um primeiro momento chamam a atenção para a dificuldade de interpretação dos dados para, em seguida, usarem os mesmos dados, excluindo aqueles ignorados, e apontarem uma possível tendência mais falaciosa ainda (Tabela 4). Ou seja, restringem sua análise a um universo apenas dos casos notificados com informação sobre cor/raça disponível e mantêm a análise em sua dimensão proporcional, sem uma maior preocupação com a representatividade das inferências produzidas. É igualmente perigoso afirmarem que há "aumento entre os pardos, estabilidade entre os pretos e uma diminuição entre os brancos", ou sugerirem "reversão da tendência de pauperização". Além das dificuldades da classificação da variável cor/raça, ao excluírem os dados ignorados, os autores perdem mais de 50% da informação. Qualquer perda nesse nível gera inferências perigosas e provavelmente incorretas, como também salientado pelos autores. Além disso, há uma tendência dos dados ignorados diminuírem, como apontados na Tabela 1 (96,1% a 15,1% para, respectivamente, 2000 a 2005), o que automaticamente afeta os demais componentes. Situação diversa poderia ser pensada, caso a proporção das informações ignoradas permanecesse constante ao longo do tempo e com índices baixos. Os autores perdem uma oportunidade de discutir a real dimensão que a disseminação da infecção pelo HIV (não de casos de AIDS notificados) pode ter em populações mais vulneráveis, o que não necessariamente está associado à preferência sexual, ao sexo ou à cor da pele. Nesse sentido, chamo atenção para o conceito de vulnerabilidade entendido por Mann et al. 1: "susceptibilidade ou fatores de indivíduos ou grupo de indivíduos que podem aumentar ou diminuir o risco de ocorrência [grifo meu] de um determinado evento". Esse conceito apresenta três dimensões relevantes para esta discussão, individual (cognitiva e comportamental), social e organizacional (i.e., institucional), como determinantes da disseminação do HIV. A desigualdade social e econômica existente no Brasil, e em outros países em desenvolvimento, está também permeando a epidemia da AIDS, como demonstram os dados de tendência mundial apresentados na última conferência internacional de AIDS em Toronto, Canadá 2. O argumento político-histórico apresentado é consistente e bem fundamentado e com o qual concordo: racializar a epidemia de AIDS na forma demonstrada pode ser, além de pouco fundamentada com os dados disponíveis, uma reversão da forma com que o PN-DST/AIDS tem enfrentado o problema no Brasil, cujo reconhecimento é internacional. É exatamente no conceito do direito de acesso universal e irrestrito aos cuidados em saúde que reside parte de seu sucesso. No entanto, reforço que o argumento epidemiológico da reanálise dos dados apresentados pelos autores é tão falacioso quanto as análises iniciais citadas no texto e apresentadas nos boletins epidemiológicos. Precisamos de dados mais confiáveis, de base populacional, sobre as reais tendências da infecção pelo HIV de forma ampla e consistente. Ademais, uma profunda avaliação do sistema de notificação dos casos de AIDS no que se refere à sua validade e confiabilidade torna-se indispensável. Somente assim, os dados empíricos podem servir de subsídios confiáveis para a elaboração de uma política pública universal, não somente para o tratamento, mas principalmente para a prevenção e promoção da saúde em suas diversas dimensões.

 

 

1. Mann J, Tarantola D. AIDS in the world II: global dimensions, social roots, and responses. New York: Oxford University Press; 1996.

2. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Report on the global AIDS epidemic. Geneva: Joint United Nations Programme on HIV/AIDS; 2006.

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