ARTIGO ARTICLE

 

Utilização de diretrizes clínicas e resultados na atenção básica à hipertensão arterial

 

Use of clinical guidelines and the results in primary healthcare for hypertension

 

 

Sheyla Maria Lemos LimaI; Margareth Crisóstomo PortelaI; Isabella KosterI; Claudia Caminha EscosteguyII; Vanja Maria Bessa FerreiraIII; Cláudia BritoI; Maurício Teixeira Leite de VasconcellosIV

IEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIHospital dos Servidores do Estado, Rio de Janeiro, Brasil
IIISecretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IVEscola Nacional de Ciências Estatísticas, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou identificar estratégias facilitadoras da implantação de diretrizes clínicas de hipertensão arterial em uma unidade de atenção básica, focalizando os efeitos do Programa Saúde da Família (PSF) e do Programa Remédio em Casa na adesão dos profissionais e nos resultados assistenciais. Partiu-se de um cadastro com 5.499 pacientes hipertensos, estratificados segundo inscrição no PSF e no Programa Remédio em Casa. O procedimento de seleção aleatória adotado resultou em amostras de 150 prontuários em três estratos e um estrato (sem PSF e sem PRC) com somente 22 prontuários. Estatísticas descritivas e modelos de regressão linear foram obtidos, incorporando-se as informações estruturais do desenho da amostra utilizado (estratos e peso amostrais). A adesão às diretrizes clínicas, segundo registros nos prontuários, foi muito baixa. Esperava-se um efeito positivo das estratégias PSF e Programa Remédio em Casa na adesão às diretrizes clínicas e resultados assistenciais. Observou-se a tendência de um efeito positivo do Programa Remédio em Casa nos resultados assistenciais e um desempenho levemente favorável do PSF na adesão às diretrizes clínicas.

Guia de Prática Clínica; Hipertensão; Atenção Primária à Saúde; Programa Saúde da Família


ABSTRACT

This study aimed to identify strategies to implement clinical guidelines for hypertension in a primary healthcare unit, focusing on the effects of the Family Health Program (FHP) and government Pharmaceutical Home Delivery Program (PHDP) on adherence to guidelines by health professionals and the results of care. The data were obtained from a registry of 5,499 hypertensive patients, stratified according to registration in the FHP and PHDP. The random selection procedure resulted in samples of 150 patient charts in three strata and one stratum (without the FHP or PHDP) with only 22 patient charts. Descriptive statistics and linear regression models were obtained, incorporating the structural information from the sample design (sample strata and weight). Based on information recorded on the patient charts, adherence to clinical guidelines was extremely low. A positive effect had been expected from the FHP and PHDP in terms of adherence to clinical guidelines and results of care. A trend towards a positive effect was observed for the PHDP and a slightly favorable performance for the FHP for adherence to clinical guidelines.

Practice Guideline; Hyperternsion; Primary Health Care; Family Health Program


 

 

Introdução

A área da assistência à saúde tem sido marcada, desde a década de 90, por uma crescente preocupação com o estímulo à utilização de práticas endossadas pelo conhecimento científico, tendo em vista principalmente a melhoria da qualidade da assistência, mas também, de forma progressiva, a alocação mais eficiente de recursos.

Hoje é internacionalmente aceita a pressuposição de que o uso de diretrizes clínicas para a prevenção, o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação de doenças, definidas a partir da evidência científica acerca da eficácia e efetividade de intervenções, produz melhores resultados 1 além de atender a interesses de sistemas de saúde, mais ou menos dependentes de recursos públicos.

Diretrizes clínicas constituem-se em recomendações sistematicamente desenvolvidas para orientar médicos e pacientes acerca dos cuidados de saúde apropriados, em circunstâncias clínicas específicas 2. Elas contemplam indicações e contra-indicações, bem como benefícios esperados e riscos do uso de tecnologias em saúde (procedimentos, testes diagnósticos, medicamentos etc.) para grupos de pacientes definidos.

Apesar do reconhecimento que a aplicação das recomendações contidas nas diretrizes clínicas possibilita alcançar melhores resultados assistenciais, seu uso ainda é incipiente. Em função disso, tem crescido o interesse em identificar características facilitadoras do uso e estratégias efetivas para a sua disseminação. Estudos apontam que as recomendações mais facilmente incorporadas, além de baseadas em evidência científica, devem ser simples, precisas, claras, não controversas e não demandantes de mudanças importantes na prática cotidiana. Também é apontada na literatura a importância de que as diretrizes clínicas sejam desenvolvidas ou endossadas pelas organizações profissionais e por médicos reconhecidos como líderes nas áreas em foco 3.

Os médicos, entretanto, resistem à sua utilização por considerá-las muito rígidas, pouco práticas e um constrangimento à autonomia profissional, não valorizando sua função de subsidiar decisões clínicas acertadas 4. Possivelmente, mudar a atitude dos médicos constitui-se em um dos principais desafios para o uso de diretrizes clínicas.

Especificamente no caso da hipertensão arterial, há absoluto consenso em relação à importância do seu tratamento para a redução da morbimortalidade das doenças cardiovasculares 5,6 e um elevado grau de concordância sobre as melhores práticas de prevenção, diagnóstico e tratamento da doença. Entretanto, observa-se que a adesão a essas práticas pelos profissionais de saúde e pacientes é ainda insatisfatória, acarretando resultados aquém daqueles esperados com base no conhecimento científico vigente 7,8. Médicos e pacientes resistem a aderir às diretrizes clínicas tanto no tratamento medicamentoso quanto nas recomendações de mudança de estilo de vida 7.

Estudos registram que a avaliação inicial acerca da presença de fatores de risco e de lesões em órgãos-alvo não é sistematicamente realizada pelos médicos conforme preconizado nas diretrizes, mesmo na presença de elevados valores de pressão arterial 9. Essa avaliação é fundamental não apenas para definição do tratamento, mas porque possibilita a reversão dos fatores de risco identificados e diminui os riscos das complicações e de agravamento da doença.

Com abordagem integral, as diretrizes clínicas para o cuidado à hipertensão recomendam o desenvolvimento de ações de prevenção e de promoção de estilos de vida mais saudáveis como estratégias para evitar o surgimento da doença, bem como a sua detecção precoce, minimizando danos, incapacidades, riscos e gastos. A atenção básica tem papel central na rede de serviços no sentido da implementação do cuidado integral à hipertensão arterial.

Este estudo objetivou identificar estratégias facilitadoras da implantação de diretrizes clínicas de hipertensão arterial em uma unidade de atenção básica na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, focalizando especialmente os efeitos produzidos pelo Programa Saúde da Família (PSF) e pelo Programa Remédio em Casa sobre a adesão dos profissionais e sobre os resultados assistenciais alcançados. O PSF constitui-se em uma política do Ministério da Saúde de organização da atenção básica, que objetiva a prestação de cuidado integral aos pacientes, articulando ações de prevenção e tratamento da doença com ações de promoção da saúde, sendo operacionalizado por meio de equipes multiprofissionais, responsáveis pelo acompanhamento de um número pré-definido de famílias residentes em uma área geográfica delimitada 10. O Programa Remédio em Casa, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ), consiste na dispensação de medicamentos de hipertensão e de diabetes, recomendados pelas diretrizes clínicas, por remessas domiciliares usando-se o correio 11.

As duas estratégias foram implantadas na unidade de saúde em 2002, havendo em 2004 a ampliação do PSF, com capacitação das novas equipes por clínicos e enfermeiras não integrantes do Programa. Na capacitação, o conteúdo relativo ao cuidado à hipertensão foi baseado em síntese das diretrizes de hipertensão arterial da Associação Médica Brasileira (AMB) e do Conselho Federal de Medicina (CFM) 12, produzida na própria unidade.

 

Métodos

O estudo caracterizou-se como observacional longitudinal, baseado em dados secundários, obtidos dos prontuários de pacientes de uma unidade de atenção básica da cidade do Rio de Janeiro.

A população de pesquisa foi definida como o conjunto de prontuários de pacientes com hipertensão arterial (registro explícito de um profissional, a qualquer momento, do diagnóstico; suspeita de hipertensão arterial; ou ainda de pressão arterial igual ou maior que 140 x 90mmHg) e pelo menos uma consulta realizada a partir de 2005. Como esse conjunto de pacientes não estava disponível em meio magnético, foi necessário utilizar um procedimento prévio para identificação dos prontuários que atendiam ao critério de elegibilidade e determinação do tamanho da população de pesquisa.

Partiu-se de um cadastro, de junho de 2006, com 5.499 pacientes registrados como portadores de hipertensão arterial, que foram estratificados segundo atendimento pelo PSF e recebimento de medicamentos por meio do Programa Remédio em Casa, constituindo-se quatro estratos: com PSF e com PRC; com PSF e sem PRC; sem PSF e com PRC; e sem PSF e sem PRC. Inicialmente, foram selecionados aleatoriamente 150 prontuários de cada estrato, número que foi aumentado até atingir 150 prontuários elegíveis ou 250 examinados no estrato, limite estabelecido por motivos operacionais.

Com base na proporção de prontuários eliminados por não atenderem ao critério de elegibilidade referido ou por classificação inadequada quanto à cobertura pelo PSF, foi estimado o total de unidades da população de pesquisa em cada estrato da amostra (Tabela 1). Isso feito, os pesos amostrais foram calculados, por estrato, pela razão entre o total de unidades na população e na amostra. Esse procedimento resultou em amostras de 150 prontuários em três estratos e um estrato (sem PSF e sem PRC) com somente 22 prontuários, após revisão de 250 prontuários.

A coleta de dados foi realizada por dois pesquisadores de campo, um médico e um enfermeiro com experiência na atenção básica, durante o período de junho a novembro de 2006.

A síntese elaborada pela unidade foi analisada frente às seguintes diretrizes: (1) Plano de Reorganização da Atenção à Hipertensão Arterial e ao Diabetes Mellitus do Ministério da Saúde de 2001; (2) Diretrizes Clínicas sobre a Hipertensão Arterial - Abordagem geral do Projeto Diretrizes da AMB e CFM de 2002; (3) IV Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial da Sociedade Brasileira de Cardiologia de 2004; e (4) I Diretriz Brasileira de Diagnóstico e Tratamento da Síndrome Metabólica da Sociedade Brasileira de Hipertensão de 2004. Não foram identificadas diferenças substantivas entre elas e a síntese mencionada.

Reconhecendo que a qualidade das diretrizes e a necessidade de contínua atualização têm sido objeto de crescente discussão, ressalta-se, entretanto, que não foi objetivo deste artigo avaliar criticamente as diretrizes.

A seleção de indicadores levou em consideração a referida síntese e as diretrizes da AMB/CFM 12. Foi elaborado um instrumento para coleta dos dados dos prontuários dos pacientes, estruturado em cinco blocos: (1) identificação do paciente; (2) classificação do risco, subdividido em (2.1) fatores de risco investigados, (2.2) lesões em órgãos-alvo investigados, e (2.3) investigação laboratorial; (3) terapêutica, subdividido em (3.1) orientação sobre mudança de estilo de vida, e (3.2) outras orientações não medicamentosas; (4) outros medicamentos prescritos não indicados por potencialmente elevarem a pressão arterial; e (5) orientação dada ao paciente.

A adesão às práticas preconizadas pelas diretrizes em relação à classificação da gravidade da doença, à investigação de fatores de risco, de lesões em órgãos-alvo e laboratorial, bem como em relação à terapêutica e orientações para a mudança no estilo de vida, foi tratada de forma dicotômica, com base no registro das mesmas no prontuário, em qualquer momento do seguimento. Não foram considerados resultados de exames anexados no prontuário e não registrados na evolução dos pacientes porque se considerou que o adequado registro no formulário do prontuário seria uma evidência de que o profissional havia manipulado o exame e verificado o resultado.

O seguimento dos pacientes contemplou o período entre 3 de janeiro de 2005 a 22 de novembro de 2006, considerando-se a capacitação pela unidade de saúde, em 2004, de novos profissionais do PSF com base nas diretrizes clínicas de atenção à hipertensão. A definição da primeira consulta referindo o diagnóstico de hipertensão considerou somente a assistência na unidade estudada. Além disso, vale salientar que tal consulta pode ter sido realizada dentro ou anteriormente ao período de seguimento mencionado.

Por conta do elevado número de prontuários sem registro da classificação da hipertensão arterial, optou-se por classificar os pacientes segundo as medidas de pressão arterial na primeira consulta referindo o diagnóstico de hipertensão, com base nos padrões discriminados nas Diretrizes Clínicas da AMB e CFM (Tabela 2).

Para captar os esquemas terapêuticos prescritos aos pacientes e a evolução de suas pressões arteriais, elaborou-se um mapa para registro longitudinal de todas as medidas de pressão arterial e de todos os medicamentos anti-hipertensivos prescritos no período de seguimento dos pacientes.

Os dados coletados foram armazenados num banco em Microsoft Access (Microsoft Corp., Estados Unidos).

Análises descritivas foram realizadas no sentido de caracterizar a população de pesquisa, o nível de adesão dos profissionais às boas práticas preconizadas e os resultados da atenção à hipertensão. Comparações entre os grupos com e sem PSF focalizaram a adesão às práticas preconizadas. Comparações entre os quatro grupos deram conta dos resultados assistenciais, medidos em termos da pressão arterial e da classificação da hipertensão no decorrer do tempo de observação.

Grandemente as análises descritivas tiveram abordagem transversal, dando-se conta do desenho amostral, que envolve estratificação e pesos amostrais desiguais, usando-se a aplicação das procedures surveymeans e surveyfreq do pacote estatístico SAS (SAS Inst., Cary, Estados Unidos).

Numa perspectiva mais analítica, este trabalho também buscou identificar fatores associados às variações nos níveis das pressões arteriais sistólica e diastólica por meio de modelos de regressão linear, considerando medidas no decorrer do tempo de seguimento para um mesmo paciente. Como variáveis explicativas dos modelos de regressão linear foram consideradas as participações no PSF e Programa Remédio em Casa, os níveis de pressão na primeira consulta por hipertensão e o tempo (em meses) desde tal consulta, além de características dos pacientes com significado clínico ou aspectos relativos ao processo de atenção. Foi empregada a rotina surveyreg do SAS, que considera as informações estruturais do desenho de amostra utilizado (estratos e pesos amostrais).

 

Resultados

A expansão da amostra de 472 pacientes incluídos no estudo terminou por redundar na representação de uma população de 3.133 pacientes hipertensos da unidade de saúde com pelo menos um atendimento registrado a partir de 2005. No conjunto, 68,7% foram mulheres, e a idade na primeira consulta por hipertensão arterial variou entre 16 e 88 anos, sendo, em média, 51,9 anos. O seguimento dos pacientes incluiu de 1 a 27 consultas, com média de 5,3 consultas.

Considerando-se a média de consultas destinadas por classes de hipertensão arterial, observa-se, na Tabela 3, que a gravidade da doença não foi considerada no agendamento de consultas. Sem diferenças estatísticas entre categorias de gravidade, a média de consultas para os hipertensos graves e moderados foi de 5,3; e para os leves, de 5,4 consultas.

Na Tabela 4, observa-se que, na primeira consulta, a média da pressão arterial sistólica (PAS) variou entre 149,5 e 152,9mmHg, e da pressão arterial diastólica (PAD) entre 92,6 e 96,7mmHg, sem diferenças estatisticamente significativas entre os quatro grupos do estudo. Na última consulta registrada, observa-se que as médias de PAS e PAD, de todos os grupos, diminuíram se comparadas àquelas da primeira consulta. A PAS variou entre 145,2 e 148,0mmHg, e a PAD entre 86,2 e 92,8mmHg. Não houve diferença significativa entre os quatro grupos em relação à PAS, mas houve em relação à PAD. Os grupos que apresentaram melhor e pior médias de PAD ao final do seguimento foram, respectivamente, o sem PSF e com PRC e com PSF e sem PRC.

A Tabela 5 apresenta a classificação dos pacientes segundo os níveis de pressão arterial observados na primeira e última consultas registradas. Observa-se que houve uma migração de pacientes de níveis mais elevados para os mais baixos. Na primeira consulta, dos 3.133 pacientes, 21% apresentaram a forma grave, 33,3% a forma moderada, e 41,7% a forma leve da doença; para 4% dos prontuários não houve registro de valores da pressão arterial. Na última consulta do seguimento, 12,3% apresentaram a forma grave, 16,3% a forma moderada, e 57,1% a forma leve; houve, entretanto, um número maior (14,3%) de prontuários sem registro do valor da pressão arterial.

Considerando-se que o registro no prontuário seria um indicativo da adesão do profissional à classificação de risco preconizada pelas diretrizes, observou-se de maneira geral uma adesão insatisfatória dos profissionais, independente do grupo ser atendido ou não pelo PSF.

Em relação ao registro da investigação dos fatores de risco, não foram identificadas diferenças significativas entre o grupo com PSF e sem PSF, à exceção do tabagismo (15,1% vs. 7,3%), mais investigado nos pacientes atendidos pelo PSF. De modo geral, houve baixo registro de fatores de risco, com todas as condições consideradas verificadas em menos de 50% dos pacientes: diabetes (48,4%), dislipidemia (43,4%), tabagismo (14,1%) e presença de história familiar de doença cardiovascular (4,2%).

Quanto ao registro da investigação da presença de lesões em órgãos-alvo, foram observadas diferenças significativas ao compararem-se os pacientes atendidos e não atendidos pelo PSF nos casos do episódio isquêmico ou acidente vascular cerebral (AVC) (13,4% vs. 5,4%), da angina de peito ou infarto agudo do miocárdio (IAM) prévio (22,9% vs. 7,2%) e da revascularização miocárdica (3% vs. 0,8%), mais investigados nos pacientes atendidos pelo PSF. O registro de investigação de lesões em órgãos-alvo foi ainda menor do que o realizado para os fatores de risco: angina de peito ou o IAM prévio (20,9%), nefropatia (13,2%), episódio isquêmico ou AVC (12,4%), hipertrofia de ventrículo esquerdo (12,4%), doença vascular arterial (10%), retinopatia hipertensiva (7,1%), insuficiência cardíaca (7%) e revascularização miocárdica (2,7%).

Em relação à solicitação de exames complementares houve diferença significativa somente para o ECG (eletrocardiograma) de repouso (28,5% vs. 10,4%), mais solicitado pelo PSF. No conjunto, o exame mais solicitado foi glicemia de jejum (45,3%), seguido de dosagem de colesterol total, LDL e HDL (42,7%), creatinina (33,3%), ECG de repouso (26,2%), EAS (14,8%) e potássio (4,6%). Em 40,9% dos prontuários observou-se somente o registro "exames solicitados", sem discriminação do tipo de exame.

Analisando-se o registro nos prontuários de orientações dadas ao paciente para mudança de estilo de vida, não foram observadas diferenças significativas ao compararem-se os grupos com e sem PSF. Na maior parte dos pacientes não houve registro de orientação para mudar o estilo de vida: redução de peso, 26,9% dos 534 pacientes obesos; controle do diabetes, 19,8% dos 746 pacientes diabéticos. Considerando o conjunto de pacientes (3.133), houve registro de orientação para controle da dislipidemia em 9,35%; para diminuição do consumo de sal em 8,7%; para realização de exercícios físicos de forma regular em 4,9%; para redução da ingestão de álcool em 1,7%; para aumento do consumo de potássio em 1,5%; e para abandono do tabagismo em 0,9%. Em vários prontuários observou-se o registro de "orientações" sem especificação. Também vale sublinhar que no caso da orientação para redução do consumo de álcool e do abandono do tabagismo, o denominador aqui considerado (3.133) é provavelmente inadequado, já que deveriam ser considerados apenas os pacientes que referissem ingerir bebidas alcoólicas e fumar - números não captados.

Registraram-se orientações de retorno para controle da pressão arterial, agendamento de nova consulta e referenciamento externo somente para 37,8%, 33,3% e 21,2% dos pacientes, respectivamente, observando-se, no primeiro caso, um melhor desempenho do atendimento pelo PSF.

A Tabela 6 apresenta os esquemas terapêuticos, segundo as diferentes classes de gravidade da doença na primeira consulta por hipertensão na unidade de saúde. Para os casos leves é preconizado o não uso de medicamentos, a monoterapia ou, no máximo, a associação de um segundo fármaco. No entanto, houve registro de 27,7% pacientes em associação de pelo menos três medicamentos. Já para os casos moderados e graves, a terapia medicamentosa é necessária, obrigatoriamente envolvendo a associação de pelo menos dois fármacos. Observou-se, entretanto, que 25% e 13,8% dos pacientes com hipertensão arterial moderada e grave, respectivamente, não usaram medicamentos ou usaram monoterapia. As diferenças de uso de esquemas terapêuticos encontradas nas três classes têm significância estatística.

Evidenciaram-se algumas inconsistências com as recomendações das diretrizes clínicas, ainda que tais inconsistências devam ser relativizadas considerando a falta de informação sobre a história pregressa dos pacientes. Em contraponto às inconsistências observadas, também vale destacar que as médias das PAS e PAD no seguimento dos pacientes, para os diferentes esquemas terapêuticos, mantiveram-se dentro do padrão da hipertensão leve (PAS = 140-159mmHg e PAD = 90-99mmHg); pacientes sem uso de medicamentos anti-hipertensivos (PAS = 137,7mmHg e PAD = 85,2mmHg); pacientes em monoterapia (PAS = 141,7mmHg e PAD = 87,1mmHg); pacientes com associação de dois medicamentos (PAS = 144,4mmHg e PAD = 88,3mmHg); e pacientes com pelo menos três medicamentos (PAS = 152,6mmHg e PAD = 91,7mmHg). Comparativamente, o último grupo apresentou um comportamento significativamente diferenciado dos demais, com médias bem superiores.

A Tabela 7 apresenta os modelos de regressão linear obtidos para a explicação das variações nas PAS e PAD dos pacientes com hipertensão, considerando-se medidas repetidas no decorrer do tempo de seguimento. Observando-se os dois modelos em paralelo, destacam-se, pelo comportamento consistente, as associações positivas estatisticamente significantes em α = 0,05 entre pressão sistólica e diastólica no seguimento e a pressão na primeira consulta por hipertensão (sistólica e diastólica, respectivamente), obesidade, o uso de medicamento, e, especificamente, o uso de hidralazina. Também se sublinham as associações negativas estatisticamente significantes em α = 0,05, entre as variáveis dependentes estudadas com a realização de consulta com nutricionista e o uso de hidroclorotiazida, e em α = 0,10 entre as variáveis dependentes e o Programa Remédio em Casa.

A pressão arterial sistólica no seguimento mostrou-se ainda positivamente associada ao tempo desde a primeira consulta. A possibilidade de existência de um efeito da variável indicadora de acompanhamento pelo PSF foi explorada, mas descartada por ausência de significância estatística.

Por sua vez, a pressão arterial diastólica no seguimento mostrou-se positivamente associada à classificação do paciente como hipertenso grave e sua cobertura pelo PSF, e negativamente associada à idade superior a 70 anos.

 

Discussão

Esperava-se um efeito positivo das estratégias PSF e Programa Remédio em Casa na adesão às diretrizes clínicas e resultados observados no tratamento dos pacientes com hipertensão. Este estudo demonstra a tendência de um efeito positivo do Programa Remédio em Casa nos resultados assistenciais observados, e um desempenho levemente favorável do PSF na adesão às diretrizes clínicas.

Ao compararem-se os pacientes inseridos no grupo com PSF e os do grupo sem PSF, para todas as situações em que foram observadas diferenças estatisticamente significantes, os profissionais do PSF pareceram ter tido maior adesão às diretrizes. O mais importante e evidente foi que, independente dos profissionais serem ou não do PSF, parece haver baixíssima adesão às diretrizes clínicas, considerando-se o registro nos prontuários.

A estratificação de risco dos pacientes foi, na melhor das hipóteses, pouco registrada nos prontuários, o que é problemático para garantir a integralidade, continuidade e o monitoramento do processo de atenção e dos resultados alcançados, fundamentos que constam da concepção do PSF.

Salienta-se ainda o baixíssimo registro acerca de orientações relativas ao estilo de vida, com destaque para o fato de o PSF não ter apresentado um papel positivamente diferenciado neste sentido. A adoção de hábitos de alimentação e estilos de vida mais saudáveis é estratégica para o alcance de resultados mais favoráveis no cuidado à hipertensão, sendo em alguns casos, a única terapêutica recomendada. A baixa adesão dos pacientes a essas orientações não medicamentosas constitui-se em importante dificuldade para controlar a gravidade da doença 8.

Em contraposição ao baixo registro do seguimento das recomendações das diretrizes clínicas até aqui mencionadas, observou-se substantivo registro de prescrições medicamentosas preconizadas, ainda que, às vezes, com alguma incongruência em relação à classe de hipertensão. A adesão aos esquemas terapêuticos medicamentosos possivelmente está associada à garantia de oferta dos medicamentos preconizados, seja na farmácia da unidade de atenção básica, seja por meio do Programa Remédio em Casa. A garantia da oferta dos insumos e ações preconizadas constitui-se em uma condição absolutamente necessária para o efetivo uso de diretrizes clínicas, além de constituir-se em estratégia facilitadora para a adesão de profissionais e pacientes.

As diretrizes clínicas (ao menos das condições mais prevalentes e prioritárias) deveriam orientar a organização dos recursos nas unidades de atenção básica e a prestação de serviços. Para gravidades distintas deveriam corresponder diferentes recursos e periodicidade de intervenções - consultas (médicas e de enfermagem, de nutricionista etc.), exames e medicamentos a serem utilizados. No entanto, observou-se que a unidade de atenção básica destinou praticamente a mesma média de consultas/ano para os pacientes com hipertensão grave, moderada e leve.

Comparando-se os quatro grupos estudados quanto aos resultados assistenciais obtidos, não houve diferença estatisticamente significativa entre eles na última consulta em relação à média de PAS observada. Entretanto, houve diferença significativa na média da PAD. Os grupos que apresentaram melhor e pior médias de PAD ao final do seguimento foram, respectivamente, o sem PSF e com PRC e com PSF e sem PRC.

O PSF, por sua vez, sem um expressivo resultado na adesão às diretrizes clínicas, nem na qualidade do registro no prontuário, se afetou de algum modo os resultados no controle da doença, parece ter sido desfavoravelmente - resultado obtido no modelo de regressão linear para pressão diastólica dada a associação positiva com a cobertura pelo PSF. Esse resultado sugere que a implementação (ou implantação) de um novo modelo de atenção, como o PSF, não necessariamente vem acompanhada de mudanças substantivas na cultura da assistência à saúde, ficando a impressão de que se preservam os velhos problemas estruturais e a ausência de compromisso com a melhoria da qualidade da atenção à saúde.

A unidade investigada possuía no momento do estudo apenas 33% de seus hipertensos inscritos no Programa Remédio em Casa, enquanto que a estimativa da SMS-RJ é de que 67% dos hipertensos, em uma população, atenderiam aos critérios de inclusão. Seria recomendável incrementar o número de hipertensos cobertos pelo Programa Remédio em Casa, considerando que a estratégia favorece a adesão dos pacientes. A medicação anti-hipertensiva pode evitar 25% dos IAM e reduzir de 35% a 42% os AVC, se houver uma redução de 4mmHg na PAD 6.

Por fim, alguns aspectos positivos do processo de cuidado na unidade de atenção básica devem ser destacados. Ao se comparar as médias de PAS e PAD na primeira consulta com as observadas na última consulta verificou-se que, em todos os quatro grupos de pacientes houve uma diminuição dos valores registrados, indicando uma melhoria da pressão arterial final em relação à inicial. Analisando-se as médias de PAS e PAD no seguimento de pacientes submetidos a diferentes esquemas terapêuticos, registrou-se que todos os valores encontravam-se nos limites de uma hipertensão leve. Comparando-se a distribuição de pacientes por classe de hipertensão arterial na primeira e na última consultas, observou-se que houve uma migração de pacientes de classes mais graves para as mais leves, o que sugere, juntamente com os demais achados mencionados, que, de alguma forma, a atenção prestada contribuiu para melhorar os níveis de pressão arterial, provavelmente devido a um satisfatório cumprimento das recomendações das diretrizes no que tange aos esquemas terapêuticos.

Predições com base nos modelos de regressão linear obtidos também apontaram para a melhoria dos níveis médios das pressões arteriais sistólica e diastólica no seguimento dos pacientes, exceto para os casos com uso de hidralazina, provavelmente refletindo a própria condição do paciente para o qual tal medicamento é indicado - hipertensos graves que não responderam a outros esquemas terapêuticos.

Vale destacar, entretanto, que o instrumento de coleta de dados utilizado, concebido primordialmente para registro da adesão dos profissionais de saúde às boas práticas preconizadas pelas diretrizes clínicas, mostrou-se limitado no sentido de informar fatores de risco e perfil clínico dos pacientes, o que seria de grande valia no processo de modelagem da pressão arterial no decorrer do tempo.

No segundo modelo de regressão linear apresentado, destacou-se ainda o efeito, na redução da PAD, da presença da hidroclorotiazida no esquema terapêutico. Trata-se de medicamento básico de eleição no início do tratamento medicamentoso da hipertensão, exceção que se registra somente nos casos de associação com diabetes.

Embora os resultados aqui apresentados sejam oriundos de uma única unidade de atenção básica e não contemplem quaisquer pretensões de representatividade, é muito provável que eles expressem condições amplamente vigentes na rede de atenção básica como um todo.

A implementação de diretrizes clínicas, mesmo que fortemente de consenso, como no caso do tratamento da hipertensão arterial, incorre em baixíssima adesão dos profissionais de saúde, se não se associa a um conjunto de estratégias mais sistêmicas voltadas para garantir a estrutura de recursos necessária, para motivar os profissionais, para monitorar processos e resultados obtidos e, para efetivamente empreender mudanças na cultura dos serviços de saúde.

É necessário investir na ampla implementação dos princípios da atenção à saúde baseada em evidência 13 e na promoção de mudanças culturais apontando para a incorporação de uma consciência sistêmica, alimentada por comunicação acurada, simples, multifacetada e em tempo hábil, trabalho em equipe multidisciplinar, o sentimento de pertencimento de profissionais e gestores ao processo de melhoria da qualidade da assistência e o envolvimento de lideranças 13,14,15.

 

Colaboradores

Todos os autores participaram da concepção do estudo e revisão do artigo, em projeto coordenado por M. C. Portela. S. M. L. Lima e M. C. Portela foram responsáveis pela análise dos dados e redação da primeira e da última versões do artigo.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem a importante colaboração de Eduardo Henrique Ferreira da Silva, na coleta de dados do estudo objeto deste artigo. Esta pesquisa foi realizada com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, edital 37/2004 - Sistemas e Políticas de Saúde - Qualidade e Humanização no SUS (processo 403431/2004-2).

 

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Correspondência:
S. M. L. Lima
Departamento de Administração e Planejamento em Saúde
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
Fundação Oswaldo Cruz
Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ
21041-210, Brasil.
slemos@ensp.fiocruz.br

Recebido em 18/Jul/2008
Versão final reapresentada em 06/Mai/2009
Aprovado em 19/Mai/2009

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br