RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Maurício Soares Leite

Departamento de Nutrição, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. mauriciosleite@gmail.com

 

 

COMIDAS TRADICIONAIS INDÍGENAS DO ALTO RIO NEGRO. Garnelo L, Baré GB, organizadoras. Manaus: Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane, Fundação Oswaldo Cruz; 2009. 112 p.

ISBN: 978-85-61677-00-8.

Partimos, aqui, de um panorama pouco favorável. O Brasil conta, atualmente, com mais de duzentas etnias indígenas oficialmente reconhecidas em seu território 1. Em um quadro caracterizado antes por lacunas que por dados sistematicamente registrados sobre saúde, alimentação e nutrição, o que de um modo geral se apreende é uma situação essencialmente precária, na qual se registram dificuldades com a produção de alimentos em parte significativa das Terras Indígenas. São ainda freqüentes os relatos, por parte de pesquisadores, de transformações importantes nas práticas alimentares nativas, em direção à ocidentalização da alimentação. Em termos nutricionais, essas modificações se traduzem no empobrecimento da dieta, com o aumento do consumo de gorduras e açúcares simples e com a redução da diversidade alimentar e de seu conteúdo de vitaminas e minerais. Concomitantemente a tais transformações, o perfil nutricional dessas populações freqüentemente comporta, em níveis por vezes alarmantes, tanto desordens carenciais, quanto desnutrição e anemia, como o sobrepeso e a obesidade 2.

Neste panorama, à trajetória histórica de violência e destituição invariavelmente se somam o preconceito e a desvalorização de tudo o que caracteriza a ascendência indígena, em especial nos contextos regionais, onde é mais intenso o contato entre índios e não-índios. Práticas e conhecimentos (estes, quando ao menos reconhecidos enquanto tal) nativos são subordinados aos ocidentais e sistematicamente desvalorizados, num processo que gradualmente impõe novas práticas e valores. Muitas vezes o sistema de saúde oficial tem, através de seus representantes, um papel central nessa questão.

Mas o livro - ou, mais apropriadamente, o projeto que o originou - navega em direção contrária, evidenciando, em termos alimentares, justamente o valor e a riqueza muitas vezes negados a esta ascendência. E o faz, fique claro, garantindo o protagonismo nativo, evidente tanto na trajetória dos movimentos sociais que deram origem à publicação como nas vozes de seus principais atores. O protagonismo aparece na própria organização da obra, dividida entre a pesquisadora Luiza Garnelo e uma liderança da etnia Baré, Gilda da Silva Barreto. Mas tratemos de situar melhor estas afirmações.

Comidas Tradicionais Indígenas do Alto Rio Negro constitui-se num livro, assinale-se, singular. Por diversas razões. A principal delas não é o tema - alimentação indígena -, que embora venha ganhando espaço nas discussões ao longo dos últimos anos, ainda encontra-se geralmente reservado ao ambiente acadêmico. E nem as fotos, belíssimas, que retratam mulheres indígenas do Alto Rio Negro, a preparação de seus pratos e um sem-número de ingredientes multicoloridos, onde se observam diversas espécies de pimentas, frutos, peixes e carne de caça, entre tantos outros. Não é um livro de fotos, mas também o é. Mas o que torna a obra singular são a sua origem e a agência nativa durante todo o processo que resultou em sua edição. Ela nasceu a partir das demandas de mulheres de diversas etnias indígenas do Alto Rio Negro, residentes na cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Na Apresentação, Garnelo menciona as preocupações destas mulheres com mudanças das práticas alimentares nativas no contexto urbano, com o alto custo dos alimentos industrializados, e com as implicações nutricionais de uma dieta empobrecida pelos novos alimentos. E, ainda, com a possibilidade de gerarem renda com produtos com selo de origem.

Assim, a publicação surge no âmbito do projeto Ambiente, Cidadania e Saúde das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro, apoiado pelo Ministério do Meio Ambiente/CNPq e pelo Centro de Pesquisas Leônidas e Maria Deane/Fiocruz, tendo também a participação de organizações indígenas da região, como associações urbanas de mulheres indígenas de São Gabriel da Cachoeira, do Departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro e da Organização Indígena da Bacia do Rio Içana.

O livro se divide em três partes. A primeira, O Contexto do Projeto, situa o leitor na história do projeto, entre cujos produtos se encontra a própria publicação. Compõe-se por Vozes Femininas, pelas quais as participantes, mulheres indígenas pertencentes a diversas etnias e vinculadas a associações indígenas, falam sobre o projeto e sobre suas trajetórias de vida. É quando vemos ganharem forma, concretizarem-se em vidas humanas, com voz e agência, os processos de transformação nas práticas alimentares nativas. E vemos o modo como o projeto ganhou lugar nestas vidas, mediante participação ativa dessas mulheres.

A primeira parte ainda é composta por Mulheres Indígenas na Cidade de São Gabriel da Cachoeira: Dos Tempos da Missão aos Tempos da Associação, capítulo escrito por Maria Helena Ortolan Matos & Luiza Garnelo. As autoras descrevem a presença de mulheres indígenas na cidade a partir dos primeiros momentos da colonização regional, quando as missões salesianas ocuparam um lugar fundamental, e as dinâmicas que permeiam a inserção feminina em atividades econômicas e políticas contemporaneamente.

A segunda parte, Sistemas Alimentares Indígenas, apresenta dois conjuntos de receitas de comidas características de etnias do Alto Rio Negro. O primeiro refere-se àquelas produzidas por mulheres de diversas etnias que viviam em São Gabriel da Cachoeira. De modo a contrastá-las com uma realidade indígena alto-negrina não urbana, foi também registrado um segundo conjunto de preparações; estas feitas por mulheres aldeadas da etnia Baniwa, que ocupa as margens do Rio Içana, afluente do Rio Negro. O primeiro conjunto foi documentado em oficinas realizadas em São Gabriel da Cachoeira, já que o contexto urbano dificultava a elaboração das preparações tradicionais, enquanto o segundo o foi no contexto aldeão. A seção dedicada às receitas Baniwa é ainda precedida por Comendo e Bebendo entre os Baniwa, capítulo de autoria de Garnelo, no qual busca descrever o sistema alimentar do grupo. A autora apresenta, em linguagem acessível mesmo para não-especialistas, dados sobre a produção, a preparação e o consumo de alimentos, situando as práticas no âmbito das relações sociais e da visão de mundo nativas.

A terceira parte da obra, Avaliação Final do Projeto, é composta pelas falas de duas mulheres indígenas sobre o significado e as perspectivas do projeto. A seção é brevíssima, mas nem por isso menos relevante dentro da estrutura da publicação: Idária da Silva Barreto e Gilda Barreto Baré nos trazem depoimentos emocionantes, que complementam as falas apresentadas na contextualização do projeto e onde ficam, por fim, evidentes os desafios enfrentados ao longo de sua execução, além das perspectivas que se apresentam a partir do momento de sua realização.

Os especialistas não encontrarão, enfim, discussões teóricas aprofundadas, mas tão somente por não ser esse o objetivo expresso da publicação. No entanto, irão se deparar com um relato de uma iniciativa inovadora e plena de nuances em todas as suas seções, incluindo desdobramentos teóricos e práticos importantes. É, assim, um livro a ser lido com atenção, desde a sua apresentação até a última seção. E que interessará tanto a especialistas no tema como aqueles que o folheiem de forma menos pretensiosa.

Em tempos em que a alimentação quotidiana vem sendo objeto de crescente normatização por profissionais e políticas de saúde e a solução de problemas locais obedece muitas vezes a lógicas exógenas, é mais que bem-vinda uma publicação que, mediante a delicadeza das falas das mulheres indígenas, a riqueza de suas trajetórias de vida e a beleza de suas imagens, nos brinda com a eloqüência de práticas alimentares - e idéias sobre alimentação - singulares. Que nos brinda, enfim, com a eloqüência da diversidade humana.

 

1. Instituto Socioambiental. População indígena no Brasil. http://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/populacao-indigena-no-brasil (acessado em 11/Jan/2010).         

2. Leite MS, Santos RV, Coimbra Jr. CEA., Gugelmin SA. Alimentação e nutrição de povos indígenas no Brasil. In: Kac G, Sichieri R, Gigante DP, organizadores. Epidemiologia nutricional. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Editora Atheneu; 2007. p. 503-17.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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