DEBATE DEBATE

 

Epidemiologia vs. Estatística: a velha contenda entre racionalismo e empirismo?

 

 

Rita Barradas Barata

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, Brasil. rita.barradasbarata@gmail.com

 

 

O artigo Validade Científica de Conhecimento Epidemiológico Gerado com Base no Estudo Saúde Bucal Brasil 2003 apresenta grande riqueza de aspectos para alimentar um velho debate entre correntes de pensamentos que dominaram a ciência e o pensamento ocidental desde o Renascimento. De um lado, o racionalismo intrínseco ao pensamento lógico e matemático, nesse artigo representado pela Estatística, e, de outro, o empiricismo das ciências aplicadas que constroem suas "leis" pela observação metódica dos fenômenos da realidade, neste caso representadas pela epidemiologia.

A reivindicação de maior rigor estatístico no tratamento e na análise de dados produzidos em grandes inquéritos nacionais certamente é meritória e justificada quando se está buscando exatidão e precisão nas medidas. O processo complexo de amostragem utilizado nos grandes inquéritos populacionais exige que o procedimento de análise dos dados considere no cálculo das estimativas a ponderação dos dados pelas frações amostrais, pelas perdas e pelo efeito do desenho para gerar estimativas mais precisas dos fenômenos estudados. Do ponto de vista teórico e na perspectiva racionalista não há o que objetar a essa colocação.

No entanto, como os autores demonstram por intermédio de dados empíricos, na prática a teoria é outra. Os grandes inquéritos, por trabalharem dados obtidos em amostras amplas e visarem ao cálculo de prevalência de problemas relativamente freqüentes (caso contrário não seriam do interesse da saúde pública), mesmo quando analisam seus resultados sem considerar a complexidade da amostra, produzem resultados muito próximos daqueles que seriam obtidos com o uso correto da estatística.

Aqui surge um ponto extremamente interessante que está subjacente à argumentação apresentada pelos autores: a epidemiologia como disciplina do campo da Saúde Coletiva, tem compromisso com a prática. É preciso, portanto, distinguir entre a pesquisa epidemiológica voltada prioritariamente para o avanço do conhecimento e a pesquisa cujo principal objetivo é subsidiar intervenções de saúde pública como parece ter sido o caso do inquérito de saúde bucal.

Neste caso, segundo os autores vale admitir algum grau de imprecisão, desde que as informações obtidas possam orientar de maneira oportuna às intervenções. Conforme os dados apresentados, as diferenças nas estimativas por ponto e intervalo são desprezíveis e para as medidas de associação nem existem.

Não se trata evidentemente de desconsiderar a necessidade de rigor metodológico nem muito menos de questionar a utilidade das ferramentas estatísticas para a construção do saber epidemiológico. Trata-se antes de relativizar certo "purismo" teórico e valorizar a relevância prática e social dos conhecimentos produzidos com a finalidade de orientar as políticas de saúde. Dito de outro modo, as ferramentas estatísticas não podem passar de meio à finalidade quando se trata de produzir informações epidemiológicas.

Gostaria ainda de comentar o sentido do termo representatividade. Não creio que o uso ou não das ponderações no cálculo das estimativas tenham a ver com a representatividade. Os procedimentos estatísticos têm a ver com a precisão das estimativas, mas não com a representatividade. Podemos imaginar diversas situações em que as estimativas são precisas, mas não são representativas, bastando para tanto que apenas uma parte da variabilidade populacional do evento estudado esteja representada na amostra.

A representatividade é uma qualidade relacionada, a nosso ver, especialmente com as técnicas de amostragem e não com as técnicas de análise. Se o procedimento amostral não conseguir refletir a diversidade existente na população alvo, então, ainda que a análise incorpore as técnicas apropriadas, os dados não serão representativos.

Infelizmente não há fórmulas ou cálculos que nos digam quão representativa nossa amostra conseguiu ser. Por isso precisamos nos valer de técnicas de amostragem e recursos metodológicos para evitar o viés de seleção, o que nem sempre é possível ou completamente alcançado. De todo modo, a avaliação da representatividade é essencialmente qualitativa.

Finalmente gostaria de assinalar o uso apropriado e criativo das metáforas na construção da argumentação apresentada pelos autores. Além de um poderoso recurso no sentido de explicitar idéias nem sempre simples, ajudam a superar a dicotomia esterilizante entre o mundo da ciência e o mundo da cultura, devolvendo aos textos científicos um tanto de humanidade e erudição muito bem vindos nestes tempos de tecnicismos exacerbados.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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