Na primeira margem do rio: território e ecologia do povo xavante de wedezé. welch jr, santos rv, flowers nm, coimbra jr. cea. rio de janeiro: museu do índio, fundação nacional do índio; 2013. 248 p.

2013

Um livro sem dúvida impressionante. E, por diversas razões, singular. Na Primeira Margem do Rio: Território e Ecologia do Povo Xavante de Wedezé constitui um desdobramento dos estudos realizados pelos autores ao longo do processo de identificação e delimitação da Terra Indígena Xavante de Wedezé, no Estado de Mato Grosso, Brasil. No que pode ser sem dúvida qualificado como uma iniciativa tanto inédita como bem-sucedida, os autores buscam trazer a público um amplo conjunto de informações de cunho histórico, ecológico, demográfico e etnológico sobre os Xavante de Wedezé. Informações que tradicionalmente têm ficado restritas ao seu uso previsto, o da instrumentalização dos longos processos que resultam na demarcação das terras indígenas em nosso país.

Um dos aspectos que chamam a atenção na obra é a presença marcante da perspectiva Xavante sobre sua trajetória de contato com não índios, ao longo de uma narrativa sensível e cuidadosa. Uma sensibilidade bem-vinda e, mais até, necessária à descrição da história nativa, marcada pela violência do contato e pela perda de um território tradicionalmente ocupado desde o século XVIII. Nas palavras dos autores, “Wedezé foi o lar da totalidade da população Xavante há cerca de um século e meio atrás, quando estes escaparam à violência do jugo colonial em Goyaz, migrando para o Oeste e cruzando o Rio Araguaia” (p. 1). A chegada e a presença crescente dos colonizadores nos territórios tribais; as hostilidades; as epidemias de doenças infecciosas; o loteamento e a venda, pelo governo brasileiro, das terras que ancestralmente percorriam e ocupavam, todos ganham novas e humanas dimensões nas narrativas Xavante, que descrevem a perplexidade de um povo face ao avanço inexorável de novas e sucessivas levas de colonizadores.

Outro aspecto a ser destacado é o caráter interdisciplinar da obra. Se isso é uma exigência dos estudos que lhe deram origem, trata-se aqui de um desafio nem sempre alcançado por seus proponentes. No entanto, o leitor irá encontrá-lo, neste livro, completamente realizado. Os autores promovem um rico diálogo entre os dados produzidos com base em pesquisa de campo e numa literatura que inclui registros históricos e biográficos, além de estudos de cunho ecológico, geográfico, demográfico e antropológico. E o fazem, destaco, em linguagem francamente acessível ao leitor não especializado: este não encontrará um livro de caráter técnico, a despeito da riqueza e do volume de informações trazidas. Em lugar disso, terá em mãos uma descrição sensível e detalhada das relações entre os Xavante e seu território, essencialmente protagonizada pela perspectiva nativa.

O livro é estruturado ao longo de oito capítulos, mais bibliografia e anexos. Em uma primorosa edição, a obra é pontuada por mapas, imagens de satélite, fotos de época e contemporâneas, que remetem o leitor à epopeia da sobrevivência Xavante ao longo de dois séculos e meio de contatos com os novos habitantes de seus territórios.

O capítulo introdutório contextualiza o livro, apresentando brevemente os Xavante e Wedezé, um território localizado no Estado de Mato Grosso, na margem leste do rio das Mortes. A seguir apresenta detalhes metodológicos do trabalho, que incluem uma esclarecedora descrição dos processos envolvidos na identificação e delimitação de terras indígenas no Brasil, e a coleta e análise dos dados apresentados ao longo do texto. Uma etapa necessária a esses processos é justamente a elaboração de estudos detalhados sobre as relações entre os povos indígenas e seus territórios, como aquele que, no caso de Wedezé, ganha aqui uma versão destinada a um público mais amplo.

Os capítulos seguintes progressivamente situam o leitor nos vínculos nativos com o território de Wedezé. O capítulo 2 apresenta alguns dados acerca da filiação linguística do grupo e alguns aspectos da organização social Xavante, centrando a partir daí em informações históricas. O capítulo utiliza as mais diversas fontes, entre relatos de viajantes, registros oficiais, memórias de trabalhadores do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e a história oral Xavante, o que confere uma profundidade crescente à narrativa.

O capítulo 3 descreve a demografia Xavante, contextualizando-a na história dos contatos com os não índios. Aborda as movimentações do grupo e seus padrões de assentamento em seu território, assim como a progressiva divisão da população em diversos subgrupos e comunidades. Parâmetros demográficos atualizados são ainda abordados segundo as terras indígenas e aldeias.

Os capítulos 4, 5 e 6 apresentam aspectos de cunho ecológico, inicialmente descrevendo o ambiente do Cerrado em profundidade (capítulo 4: Contexto Ambiental); a seguir as atividades econômicas Xavante (capítulo 5: Atividades de Subsistência e Economia) e as espécies vegetais e animais por eles utilizadas (capítulo 6: Plantas e Animais de Interesse Tecnológico e Alimentar). É inevitável a comparação, à medida que os capítulos sucedem, entre a sofisticação das estratégias nativas de manejo e uso dos recursos disponíveis em seu ambiente, fruto de um extenso conhecimento da ecologia do Cerrado, em suas nuances, e os padrões não indígenas de exploração do mesmo bioma, que se caracterizam essencialmente pela substituição completa do Cerrado por pastagens ou plantações. Vale assinalar, como os autores o fazem, o contraste entre as terras Xavante, onde a vegetação nativa se mantém preservada, e as fazendas em seu entorno, onde a cobertura original deu lugar a pastagens ou à monocultura.

O capítulo 7: Espaços Cerimoniais, Sagrados e Evidências dos Ancestrais traz ao leitor as evidências – sistematicamente negadas por aqueles cujos interesses contrariam, de alguma forma, a retomada de Wedezé – da presença Xavante no local desde o Século XIX, o que inclui cemitérios e sítios arqueológicos onde são encontrados artefatos e paisagens modificadas pela ação humana.

As reflexões dos capítulos 4, 5 e 6 encontram continuidade no oitavo e último capítulo, Wedezé: Implicações Socioambientais para os Xavante e Além. É dedicado a situar a questão da delimitação de Wedezé em um cenário mais amplo que o estritamente local ou regional. Os autores examinam o enorme impacto da ocupação não indígena na região sobre o bioma do Cerrado, ainda amplamente desconhecido, e que sofre com o desmatamento, a presença do gado, a caça e a pesca predatórias. A ocupação indígena, por sua vez, tem como base as atividades de subsistência e de baixo impacto ambiental, que vêm garantindo a integridade do Cerrado e de suas espécies animais e vegetais ao longo dos últimos séculos. Trata-se da preservação de uma biodiversidade inestimável e, como os autores assinalam, de recursos naturais estratégicos e francamente ameaçados pela expansão do agronegócio e da agropecuária na região.

Em Na Primeira Margem do Rio: Território e Ecologia do Povo Xavante de Wedezé, o público em geral encontrará, por certo, um relato tão preciso como sensível das relações de um povo com o seu território e de sua luta para reconquistá-lo; o acadêmico irá encontrar um trabalho interdisciplinar sofisticado, de especial interesse para leitores afins à ecologia humana, etnohistória, antropologia ou, em termos mais gerais, à questão indígena. No entanto, entendo ser a obra de importância e interesse ainda mais amplos, em tempos amplamente desfavoráveis à existência indígena em nosso país, onde empreendem-se esforços ativos de deslegitimação das demandas nativas pela fração que resta das terras que sempre percorreram, e onde seus antepassados viveram e foram enterrados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2014
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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