Reduzindo intervenções de rotina  durante o trabalho de parto e  parto: primeiro, não causar dano

Soo Downe

Leal et al. realizaram um estudo muito oportuno e importante. A questão da cesariana tem sido uma preocupação já por alguns anos, e vem surgindo evidências do seu prejuízo a curto e longo prazos, para a mãe e para a criança, tanto associados à primeira cesariana quanto à cesariana de repetição 1 Souza JP, Gülmezoglu A, Lumbiganon P, Laopaiboon M, Carroli G, Fawole B, et al. Caesarean section without medical indications is associated with an increased risk of adverse short-term maternal outcomes: the 2004-2008 WHO Global Survey on Maternal and Perinatal Health. BMC Med 2010; 8:71.,2 Lumbiganon P, Laopaiboon M, Gülmezoglu AM, Gülmezoglu M, Souza JP, Taneepanichskul S, et al. Method of delivery and pregnancy outcomes in Asia: the WHO global survey on maternal and perinatal health 2007-08. Lancet 2010; 375:490-9. Entretanto, o interesse sobre o que ocorre durante o trabalho de parto e parto para aqueles que são considerados “normais” ou “espontâneos”, só se mostrou evidente mais recentemente. O estudo de Trent sobre as intervenções no trabalho de parto e parto normal, que foi conduzido no Reino Unido no ano 2000, foi um dos primeiros nesta área 3 Downe S, McCormick C, Beech B. Labour interventions associated with normal birth. Br J Midwifery 2001; 9:602-6., e debates prévios e subsequentes sobre esta temática ressaltaram a pouca concordância de como o parto “normal” sem intervenções deveria ser caracterizado 4 Beech BAL. Normal birth – does it exist? AIMS Journal 1997; 9:4-8.,5 Downe S. Is there a future for normal birth? Who knows what “normal birth” really means today? Pract Midwife 2001; 4:10-2.,6 Royal College of Obstetricians & Gynaecologists. Normal Birth Consensus Statement 2007. http://www.rcog.org.uk/womens-health/clinical-guid ance/making-normal-birth-reality (acessado em 26/Jan/2014).
http://www.rcog.org.uk/womens-health/cli...
,7 Joint policy statement on normal childbirth. J Obstet Gynaecol Can 2008; 30:1163-5.. No Reino Unido, isso fez com que o governo definisse formalmente o que é o parto normal na sua rotina de coleta nacional de dados sobre saúde, baseando-se nas seguintes características: ... parto sem indução, uso de instrumentos, cesariana, episiotomia e sem anestesia geral, raquidiana ou peridural antes ou durante o parto8 Dodwell M, Newburn N. 2010 Normal birth as a measure of the quality of care Evidence on safety, effectiveness and women’s experiences, p 6). http://www.nct.org.uk/sites/default/files/related_documents/Normalbirthasameasureofthequali tyofcareV3.pdf (acessado em 26/Jan/2014).
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Não parece ter havido uma pesquisa dessa abrangência sobre intervenções no trabalho de parto e parto por local de nascimento para mulheres de baixo risco em qualquer lugar do mundo desde o estudo de Trent, embora o estudo Birthplace in England seja capaz de gerar esses dados para o Reino Unido entre 2008 e 2010 como um todo, em um futuro próximo 9 Birthplace in England study. https://www.npeu.ox.ac.uk/birthplace (acessado em 26/Jan/2014).
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, e o Royal College of Midwives, no Reino Unido, tenha recentemente encomendado um estudo nacional para replicar a pesquisa de Trent. O Brasil tem sido um sinônimo internacional de níveis elevados de cesariana, pelo menos na última década. Portanto, é apropriado que o primeiro estudo com representatividade nacional sobre intervenções durante o trabalho de parto e parto em mulheres de baixo risco publicado seja este realizado no Brasil.

De uma certa forma os resultados não são surpreendentes, dado o conhecido aumento das intervenções de rotina no trabalho de parto em todo o mundo. No entanto, tanto a prevalência de intervenções de rotina quanto a sua variação em todo o país, oferecem uma visão chocante sobre o que acontece quando práticas médicas e técnicas se generalizam a partir de indivíduos que delas necessitam, devido à patologia real ou muito iminente, para, em algumas intervenções, à quase todas as mulheres e recém-nascidos, no modo de “apenas no caso”. Esta é uma revogação do credo para o qual todos os médicos subscrevem, e que as enfermeiras e parteiras deveriam cumprir, em princípio, que é “primeiro causar dano”. As preocupações nessa área, no passado, repousavam sobre a morbidade iatrogênica imediata, tal qual o trauma perineal consequente à episiotomia 1010  Carroli G, Mignini L. Episiotomy for vaginal birth. Cochrane Database Syst Rev.2009; (1):CD000081.. No entanto, elas estão agora dando especial urgência, com base na crescente evidência decorrente de uma gama de disciplinas que associa intervenções no trabalho de parto e parto, incluindo o tipo de parto, o uso de ocitocina e o uso de antibióticos, com o aumento do risco de doenças em longo prazo, não transmissíveis e autoimunes, tais como o diabetes tipo 1, esclerose múltipla, asma, eczema e mesmo alguns tipos de câncer, e os chamados distúrbios de “estilo de vida”, como a obesidade 1111  Dahlen HG, Kennedy HP, Anderson CM, Bell AF, Clark A, Foureur M. The EPIIC hypothesis: intrapartum effects on the neonatal epigenome and consequent health outcomes. Med Hypotheses 2013; 80:656-62..

Conrad et al. 1212  Conrad P, Mackie T, Mehrotra A. Estimating the costs of medicalization. Soc Sci Med 2010; 70: 1943-7. calcularam que o custo de intervenções de rotina desnecessárias no parto nos Estados Unidos estaria em mais de 18 bilhões de dólares por ano. Esse cálculo não leva em conta os custos de saúde pública e social de longo prazo, que podem surgir se as hipóteses colocadas por Dahlen et al. 1111  Dahlen HG, Kennedy HP, Anderson CM, Bell AF, Clark A, Foureur M. The EPIIC hypothesis: intrapartum effects on the neonatal epigenome and consequent health outcomes. Med Hypotheses 2013; 80:656-62. forem justificadas. Também não leva em conta os custos de oportunidade, ou seja, o que poderia ser comprado se o gasto em intervenções iatrogênicas no trabalho de parto fosse traduzido em gasto em intervenções atualmente inacessíveis, mas eficazmente preventivas, em tecnologias, medicamentos e tratamentos. Como um exemplo grosseiro desse fenômeno, Gibbons e seus colegas calcularam que, entre 137 países em 2008 1313  Gibbons L, Belizán JM, Lauer JA, Betrán AP, Merialdi M, Althabe F. The global numbers and costs of additionally needed and unnecessary caesarean sections performed per year: overuse as a barrier to universal coverage. World Health Report 2010 Background Paper, http://www.who.int/healthsystems/topics/financing/healthreport/30C-sec tioncosts.pdf (acessado em 26/Jan/2014).
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, “3.18 milhões de cesarianas adicionais seriam necessárias e 6.20 milhões de cesarianas desnecessárias foram realizadas. O custo do ‘excesso’ global de cesariana foi estimado em aproximadamente U$2.32 bilhões, enquanto o custo ‘necessário’ global de cesarianas foi de aproximadamente U$432 milhões”.

Com base nesses resultados, e todas as outras coisas sendo iguais, se as cesarianas desnecessárias não fossem realizadas e se todas aquelas que são necessárias fossem realizadas, ainda haveria uma economia de custos de cerca de US$ 2 bilhões por ano, e a redução da mortalidade e morbidades evitáveis em mães e crianças seria dramática. Os números e as economias tenderiam a ser muito maiores se o uso excessivo das intervenções relatadas por Leal et al. também fossem adicionados ao cálculo, tanto em nível de país como entre continentes.

Leal et al. emitem um apelo urgente para um melhor modelo de atenção à maternidade no Brasil, especialmente, mas não só, no setor privado. Essa é uma questão moral e ética, bem como uma questão econômica e de saúde pública de longo prazo. O crescente reconhecimento da prevalência e danos causados pelo desrespeito e violência no cuidado com a maternidade em todo o mundo inclui os danos iatrogênicos causados por intervenções de rotina desnecessárias. O Brasil tem liderado o mundo na assistência defensiva ao parto, como ilustrado pelo crescente aumento das taxas de cesariana. Os resultados deste estudo podem ser catalíticos em ajudar o Brasil a liderar o mundo na direção oposta, como sinalizado pelo juramento de Hipócrates – Primum non nocere: Primeiro não causar dano.

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    Souza JP, Gülmezoglu A, Lumbiganon P, Laopaiboon M, Carroli G, Fawole B, et al. Caesarean section without medical indications is associated with an increased risk of adverse short-term maternal outcomes: the 2004-2008 WHO Global Survey on Maternal and Perinatal Health. BMC Med 2010; 8:71.
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    Lumbiganon P, Laopaiboon M, Gülmezoglu AM, Gülmezoglu M, Souza JP, Taneepanichskul S, et al. Method of delivery and pregnancy outcomes in Asia: the WHO global survey on maternal and perinatal health 2007-08. Lancet 2010; 375:490-9
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    Downe S, McCormick C, Beech B. Labour interventions associated with normal birth. Br J Midwifery 2001; 9:602-6.
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    Beech BAL. Normal birth – does it exist? AIMS Journal 1997; 9:4-8.
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    Downe S. Is there a future for normal birth? Who knows what “normal birth” really means today? Pract Midwife 2001; 4:10-2.
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    Royal College of Obstetricians & Gynaecologists. Normal Birth Consensus Statement 2007. http://www.rcog.org.uk/womens-health/clinical-guid ance/making-normal-birth-reality (acessado em 26/Jan/2014).
    » http://www.rcog.org.uk/womens-health/clinical-guid ance/making-normal-birth-reality
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    Joint policy statement on normal childbirth. J Obstet Gynaecol Can 2008; 30:1163-5.
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    Dodwell M, Newburn N. 2010 Normal birth as a measure of the quality of care Evidence on safety, effectiveness and women’s experiences, p 6). http://www.nct.org.uk/sites/default/files/related_documents/Normalbirthasameasureofthequali tyofcareV3.pdf (acessado em 26/Jan/2014).
    » http://www.nct.org.uk/sites/default/files/related_documents/Normalbirthasameasureofthequali tyofcareV3.pdf
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    Birthplace in England study. https://www.npeu.ox.ac.uk/birthplace (acessado em 26/Jan/2014).
    » https://www.npeu.ox.ac.uk/birthplace
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    Carroli G, Mignini L. Episiotomy for vaginal birth. Cochrane Database Syst Rev.2009; (1):CD000081.
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    Dahlen HG, Kennedy HP, Anderson CM, Bell AF, Clark A, Foureur M. The EPIIC hypothesis: intrapartum effects on the neonatal epigenome and consequent health outcomes. Med Hypotheses 2013; 80:656-62.
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    Conrad P, Mackie T, Mehrotra A. Estimating the costs of medicalization. Soc Sci Med 2010; 70: 1943-7.
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    Gibbons L, Belizán JM, Lauer JA, Betrán AP, Merialdi M, Althabe F. The global numbers and costs of additionally needed and unnecessary caesarean sections performed per year: overuse as a barrier to universal coverage. World Health Report 2010 Background Paper, http://www.who.int/healthsystems/topics/financing/healthreport/30C-sec tioncosts.pdf (acessado em 26/Jan/2014).
    » http://www.who.int/healthsystems/topics/financing/healthreport/30C-sec tioncosts.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br