Resenha

2014

Uma referência que faltava nas bibliotecas, o livro de Claudia G. S. Osorio-de-Castro e colaboradoras estende as fronteiras do trabalho anterior de Marin et al. 1Marin N, Luiza VL, Osorio-de-Castro CGS, Santos SM. Assistência farmacêutica para gerentes municipais de saúde. Brasília: Organização Pan- Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde; 2003., cuja contribuição já fora de larga relevância à assistência farmacêutica no Brasil. Trata-se agora de um texto moderno, dirigido aos profissionais da saúde e aos estudantes da área, que se tornará um marco no ensino e na pesquisa sobre assistência farmacêutica.

O livro introduz conceitos teóricos e aspectos práticos – medicina baseada em evidência, gestão racional, avaliação de tecnologia em saúde, sistemas de informação, desafios para pesquisa, entre outros – dos quais a assistência farmacêutica deve se apropriar para atender aos preceitos do paradigma do uso racional de medicamentos. O capítulo Do Acesso ao Uso Racional de Medicamentos, escrito por Claudia Osorio-de-Castro, poderia perfeitamente dar nome ao livro uma vez que contém toda dimensão do paradigma. Entretanto, devido à profundidade que o tema exige, são trazidos pela primeira vez em um livro sobre assistência farmacêutica temas como “medicina baseada em evidências” e “avaliação de tecnologias em saúde”, que em si só comportam novos paradigmas e estratégias que convergem para o uso racional de medicamentos.

As autoras vão além da abordagem minuciosa de cada uma das anteriormente chamadas etapas da assistência farmacêutica e discutem novas temáticas como “sistemas de informação e assistência farmacêutica”, temas estes fundamentais na gestão clínica e epidemiológica, na pesquisa, bem como no financiamento da assistência farmacêutica. Sistemas de informação em saúde são hoje estratégias prioritárias em todos os países. Trata-se de não apenas dispensar tecnologias ao cidadão, mas também de monitorar efeitos benéficos e adversos, tarefa em que o farmacêutico é parte fundamental e a tecnologia da informação é a ferramenta ideal. Ao paradigma do acesso aos medicamentos, acrescenta-se agora acesso a serviços farmacêuticos. Assim, ao novo profissional farmacêutico cabe a tarefa de dispensar e informar com qualidade para depois fazer a adequada gestão clínica, e somente assim estar qualificado para reiniciar o ciclo da assistência farmacêutica.

Apesar da iniquidade do acesso aos medicamentos e da fragmentação de processos que se verifica nas Políticas Farmacêuticas nos diferentes países, no capítulo Assistência Farmacêutica, Nelly Marin afirma: “o alcance atingido pelo tema Assistência Farmacêutica no Brasil não encontra similar entre os países da região” (p. 27). O Ministério da Saúde do Brasil tem dirigido vários esforços na direção de apoiar estratégias de uso racional de medicamentos, de qualificar a assistência farmacêutica e de aproximar as políticas farmacêuticas das políticas de saúde. Em recente publicação 2Ministério da Saúde. Assistência farmacêutica: inovação para a garantia do acesso a medicamentos no SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2014., são divulgadas as estratégias para o componente especializado da assistência farmacêutica no Sistema Único de Saúde (SUS). Entre essas, estão as publicações dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs). Os PCDTs avançam na criação da política pública baseada em evidências para diversas doenças desde o ano 2000 3Picon PD, Beltrame A, Banta D. National guidelines for high-cost drugs in Brazil: achievements and constraints of an innovative national evidence-based public health policy. Int J Technol Assess Health Care 2013; 29:198-206.. Desde a primeira publicação dos PCDTs 4Picon PD, Beltrame A. Protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas: medicamentos excepcionais. Porto Alegre: Palotti; 2002., a preocupação com a importância do profissional farmacêutico na política de saúde ficou evidente na criação de fluxogramas dirigido a estes, além de guias de orientação dirigido ao usuário, sugestão de fichas farmacoterapêuticas para a criação de bancos de dados etc. Essas fichas foram a base técnica das informações introduzidas no sistema hórus-clínico. No presente livro, a política pública para a assistência farmacêutica baseada na melhor evidência disponível também é objeto de preocupação das autoras que, no capítulo Medicina Baseada em Evidência, definem este paradigma e o papel da melhor evidência para a decisão clínica, tanto em nível individual como populacional.

A introdução de um capítulo sobre avaliação de tecnologias em saúde (ATS), classificado por alguns como o “quarto obstáculo”, também reflete uma inquietação das organizadoras frente a este desafio internacional à difusão de uma nova tecnologia e sua importância na proteção dos usuários. É imprescindível discutir esse novo paradigma no intuito de propor e comparar diferentes estratégias de assistência farmacêutica mais custo-efetivas sob o escrutínio das análises econômicas, permitindo às instâncias do Ministério da Saúde e à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) optarem pela mais favorável 5Laranjeira FO, Petramale CA. A avaliação econômica em saúde na tomada de decisão: a experiência da CONITEC. BIS Bol Inst Saúde 2012; 14:165-70.,6Picon PD, Picon RV. Uso racional de medicamentos: aspectos econômicos. In: Fuchs FD, Wannmacher L, organizadores. Farmacologia clínica: fundamentos da terapêutica racional. 4a Ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan; 2010. p. 54-60..

O capítulo Seleção de Medicamentos foi escrito pela pessoa com maior expertise em uso racional de medicamentos no Brasil: Lenita Wannmacher. Etapa primordial do chamado “ciclo da assistência farmacêutica”, a seleção tem implicações diretas na utilização de medicamentos, especialmente nas redes públicas que devem fundamentar suas escolhas no que é “informação verdadeiramente científica e relevante”, ou seja, na melhor evidência disponível. O farmacêutico tem papel fundamental nessa tarefa de prover e disseminar esse conhecimento. Incorporar em sua prática esses processos “eticamente orientados” é tarefa esperada desse e de todos os profissionais da saúde, para prover a sustentabilidade individual e coletiva de um bom processo de seleção. É chamada a atenção da importância da independência e isenção tanto dos autores de estudos primários como de todos os participantes destas comissões multiprofissionais de seleção para assegurar a transparência e ética de todo o processo. Faz parte do texto um modelo de “declaração de conflitos de interesses”, o que expressa lucidez e adequação ao conteúdo do capítulo.

No capítulo Assistência Farmacêutica e Demandas Judiciais por Medicamentos no Sistema Único de Saúde são destacados o papel da indústria farmacêutica na “indução ao consumo”, do efeito do marketing e da má qualidade de algumas “evidências científicas” e consequente uso irracional de medicamentos na chamada “judicialização da saúde” 7Biehl J, Petryna A, Gertner A, Amon JJ, Picon PD. Judicialization of the right to health in Brazil. Lancet 2009; 373:2182-4.,8Picon PD. Judicialização da saúde: algumas reflexões para melhorar a comunicação entre os médicos, os gestores do SUS e o Judiciário. Multijuris 2007; (2):49-55.. Quanto mais alto o custo do produto maior é a força da propaganda 9Schwartsmann G, Picon PD. When drugs are worth more than gold. Lancet Oncol 2007; 8: 1049-50.. É salientada a irracionalidade das decisões judiciais por tecnologias sem qualquer evidência de eficácia e segurança. São apresentadas as respostas do executivo e do judiciário neste cenário de diálogo institucional no Brasil 1010 Picon PD, Gonzales RS, Picon RVC. Court decisions and pharmaceutical policy in Brazil: odds for the patients and the state. In: 7th Annual Meeting HTAi. Edmonton: Health Technology Assessment International; 2010. p. 268.. É discutido o papel dos PCDTs definidos pela Lei no 12.401 de 28 de abril de 2011, como estratégia de resposta técnica do Ministério da Saúde à irracionalidade das decisões judiciais. São apresentadas as respostas de diferentes estados brasileiros na tentativa de reduzir o vazio de comunicação técnica entre o SUS e o judiciário. Vale lembrar que o Rio Grande do Sul foi pioneiro ao criar, em 2003, Câmaras Técnicas dentro do Ministério Público Estadual com a presença de procuradores, médicos e farmacêuticos do SUS para a redução desses litígios, porém, o capítulo não menciona este feito. Outra Câmara Técnica aos mesmos moldes foi criada em 2004 na Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul 1111 Costa AF, Picon PD, Sander GB, Reis JG. Public health state authority and state attorneys reducing irrational use of technology: an example of a collaborative work in in Rio Grande do Sul, Brazil. In: 3rd Annual Meeting HTAi. Edmonton: Health Technology Assessment International; 2006. p. 191..

Em resumo, o caráter inovador e a profundidade de abordagem dos diferentes aspectos da assistência farmacêutica no Brasil, bem como o caráter internacional do tema deste livro garantirão um espaço definitivo nas bibliotecas das nossas universidades e em todo o SUS.

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    Marin N, Luiza VL, Osorio-de-Castro CGS, Santos SM. Assistência farmacêutica para gerentes municipais de saúde. Brasília: Organização Pan- Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde; 2003.
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    Ministério da Saúde. Assistência farmacêutica: inovação para a garantia do acesso a medicamentos no SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.
  • 3
    Picon PD, Beltrame A, Banta D. National guidelines for high-cost drugs in Brazil: achievements and constraints of an innovative national evidence-based public health policy. Int J Technol Assess Health Care 2013; 29:198-206.
  • 4
    Picon PD, Beltrame A. Protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas: medicamentos excepcionais. Porto Alegre: Palotti; 2002.
  • 5
    Laranjeira FO, Petramale CA. A avaliação econômica em saúde na tomada de decisão: a experiência da CONITEC. BIS Bol Inst Saúde 2012; 14:165-70.
  • 6
    Picon PD, Picon RV. Uso racional de medicamentos: aspectos econômicos. In: Fuchs FD, Wannmacher L, organizadores. Farmacologia clínica: fundamentos da terapêutica racional. 4a Ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan; 2010. p. 54-60.
  • 7
    Biehl J, Petryna A, Gertner A, Amon JJ, Picon PD. Judicialization of the right to health in Brazil. Lancet 2009; 373:2182-4.
  • 8
    Picon PD. Judicialização da saúde: algumas reflexões para melhorar a comunicação entre os médicos, os gestores do SUS e o Judiciário. Multijuris 2007; (2):49-55.
  • 9
    Schwartsmann G, Picon PD. When drugs are worth more than gold. Lancet Oncol 2007; 8: 1049-50.
  • 10
    Picon PD, Gonzales RS, Picon RVC. Court decisions and pharmaceutical policy in Brazil: odds for the patients and the state. In: 7th Annual Meeting HTAi. Edmonton: Health Technology Assessment International; 2010. p. 268.
  • 11
    Costa AF, Picon PD, Sander GB, Reis JG. Public health state authority and state attorneys reducing irrational use of technology: an example of a collaborative work in in Rio Grande do Sul, Brazil. In: 3rd Annual Meeting HTAi. Edmonton: Health Technology Assessment International; 2006. p. 191.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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