Tradução e adaptação de um questionário elaborado para avaliar a segurança do paciente na atenção primária em saúde

Translation and adaptation of a questionnaire to assess patient safety in primary health care

Traducción y adaptación de un cuestionario para evaluar la seguridad del paciente en la atención primaria de salud

Simone Grativol Marchon Walter Vieira Mendes JuniorSobre os autores

Resumos

O objetivo deste estudo foi descrever as etapas de tradução e adaptação do questionário do Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME). Esse instrumento visa a identificar incidentes ocorridos com pacientes na Atenção Primária em Saúde (APS), no contexto destes serviços, em uma microrregião de saúde, no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Para esse processo, foi organizado um painel com especialistas, os quais adaptaram o questionário por meio do método Delphi modificado. O instrumento adaptado pode contribuir para produzir informações específicas na APS, de modo a fortalecer iniciativas nacionais para a melhoria da segurança do paciente.

Segurança do Paciente; Atenção Primária à Saúde; Questionários


The objective of this study was to describe the translation and adaptation of the questionnaire used in the Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME) for application in primary health care in a local health district in Rio de Janeiro State, Brazil. The process included organization of an expert panel that adapted the questionnaire using a modified Delphi method. The adapted instrument can help produce specific information on primary health care and strengthen initiatives to improve patient safety in Brazil.

Patient Safety; Primary Health Care; Questionnaires


El objetivo del estudio fue describir las etapas de la traducción y adaptación del cuestionario Estudio Internacional de Atención Primaria de Errores Médicos (PCISME), que tiene como objetivo comprender la ocurrencia de incidentes con pacientes en el cuestionario de Atención Primaria de Salud, dentro del contexto de los servicios de Atención Primaria de Salud en la micro-región sanitaria del estado de Río de Janeiro, Brasil. Para este proceso se organizó un panel con expertos, que adaptaron el cuestionario, utilizando el método Delphi modificado. Este instrumento puede ser útil si se adapta para producir información específica sobre la Atención Primaria de Salud, con el fin de fortalecer las iniciativas nacionales para mejorar la seguridad del paciente.

Seguridad del Paciente; Atención Primaria de Salud; Cuestionarios


Introdução

Inúmeras organizações têm se dedicado a avaliar a ocorrência de incidentes relacionados ao cuidado em saúde, visando a melhorar a qualidade da assistência prestada; entretanto, a ênfase tem sido na assistência hospitalar. Há dois anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) 1World Health Organization. Safer Primary Care Expert Working Group. http://www.who.int/patientsafety/safer_primary_care/en/index.html (acessado em 06/Set/2014).
http://www.who.int/patientsafety/safer_p...
constituiu um grupo para estudar os riscos e os incidentes na Atenção Primária em Saúde (APS).

O grupo da OMS, mediante revisão sistemática 2Makeham M, Dovey S, Runciman W, Larizgoitia I. Methods and measures used in primary care patient safety research. Geneva: World Health Organization; 2008., demostrou que ainda não há um método mais indicado para investigar os incidentes na APS. Em uma revisão recente 3Marchon SG, Mendes Junior WV. Segurança do paciente na atenção primária à saúde: revisão sistemática. Cad Saúde Pública 2014; 30:1815-35., não foi encontrado estudo na área de segurança do paciente na APS, em países em desenvolvimento, inclusive no Brasil. Nos países desenvolvidos, os métodos mais utilizados para verificar incidentes em APS foram as avaliações de incidentes em sistemas de notificação, questionários, entrevistas e grupos focais 2Makeham M, Dovey S, Runciman W, Larizgoitia I. Methods and measures used in primary care patient safety research. Geneva: World Health Organization; 2008. , 3Marchon SG, Mendes Junior WV. Segurança do paciente na atenção primária à saúde: revisão sistemática. Cad Saúde Pública 2014; 30:1815-35..

Para conhecer melhor a frequência, os tipos de incidentes na APS e os fatores que contribuem para estes, na realidade brasileira, optou-se pela utilização de um questionário respondido por profissionais de saúde. Entre os questionários disponíveis na literatura, havia o Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME) 4 e o Estudio Sobre la Seguridad de los Pacientes en Atención Primaria de Salud (APEAS) 5Aranaz JM. Estudio APEAS. Estudio sobre la seguridad de los pacientes en atención primaria de salud. Madrid: Ministerio de Sanidad y Consumo; 2008.. Ambos permitem avaliar as características dos incidentes e podem ser importantes instrumentos para explorar melhor o tema da segurança do paciente na APS. A OMS 6Caldas B, Sousa P, Mendes W. Aspetos mais relevantes nas investigações/pesquisas em segurança do paciente. In: Mendes W, Souza P, organizadores. Segurança do paciente: criando organizações de saúde seguras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014. p. 188-206. orienta que as pesquisas devem cobrir o seguinte ciclo de avaliações: medir o dano, compreender as causas, identificar as soluções, avaliar o impacto e transpor as evidências para os cuidados. Esses questionários podem contribuir prioritariamente para dois itens do ciclo: medir os danos e compreender as causas.

No presente estudo, escolheu-se o PCISME pelo seu caráter pioneiro e por ter sido replicado em vários países. O questionário foi traduzido e adaptado para a língua portuguesa, em uma investigação realizada em Portugal 7Sequeira AM, Martins L, Pereira VH. Natureza e frequência dos erros na actividade de Medicina Geral e Familiar Geral num ACES – estudo descritivo. Rev Port Med Geral Fam 2010; 26:572-84.. O estudo espanhol APEAS utilizou um questionário extenso, que dificultaria sua aplicação à realidade brasileira, considerando o tempo disponível dos profissionais na APS, podendo gerar um viés de não resposta.

O objetivo desta pesquisa foi descrever as etapas de tradução e adaptação do PCISME para o contexto de uma região no Estado do Rio de Janeiro, Brasil.

Método

O questionário do PCISME é composto por 16 questões abertas e fechadas, para o registro de incidentes na APS. Foi adaptado para o contexto brasileiro por um painel formado por especialistas, empregando-se o método Delphi modificado 8Piola SF, Vianna SM, Vivas-Consuelo D. Estudo Delphi: atores sociais e tendências do sistema de saúde brasileiro. Cad Saúde Pública 2002; 18 Suppl: 181-90..

O processo de tradução e adaptação envolveu cinco etapas (Figura 1).

Figura 1
Etapas de tradução e adaptação do questionário Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME).

Na etapa A, foi realizada adaptação e tradução inicial do questionário original e do utilizado em Portugal, nas versões em inglês e português. Esta etapa foi realizada pelos dois autores deste estudo, e o resultado, encaminhado ao painel de especialistas.

A etapa B consistiu na seleção de cinco especialistas para compor o painel. A seleção seguiu os seguintes critérios: (i) médicos especialistas em medicina de família e comunidade ou com residência médica, com mais de dois anos de experiência profissional na Estratégia Saúde da Família (ESF); (ii) pesquisadores da área de gestão e de segurança do paciente; (iii) gestores de saúde com experiência em APS. No convite para participar do painel, os especialistas receberam informações sobre a metodologia a ser empregada. No corpo da mensagem enviada, constava o termo de participação de livre consentimento, sendo informado que a resposta ao questionário significava o aceite para participar da pesquisa.

A etapa C consistiu em enviar aos especialistas a primeira rodada de perguntas sobre o questionário do PCISME original, na versão portuguesa e na adaptação realizada pelos autores, por meio de um formulário. Este foi encaminhado aos especialistas, via mensagem eletrônica, com a solicitação de que julgassem as questões, considerando dois quesitos: (i) se as questões estavam compatíveis com a realidade brasileira; (ii) se as questões estavam elaboradas com linguagem clara e terminologia correta. Solicitou-se que fosse assinalada a concordância em cada questão, a partir de uma escala de Likert, de 0 a 5, variando desde a relevância mínima até a relevância máxima. No consolidado das respostas, as questões com média maior que 4 estariam aprovadas; aquelas com média entre 3 e 4 seriam reavaliadas; as com média menor que 3 não seriam aprovadas. Calcularam-se a tendência central da média e o percentual de concordância de cada resposta. Facultou-se ao especialista dar sugestões de textos alternativos para cada questão.

A etapa D foi relacionada à segunda rodada de resposta, com participação dos mesmos especialistas da etapa B, de forma presencial, a partir do consolidado da primeira rodada, apresentado previamente. As decisões foram tomadas por consenso, sem votação.

Na etapa E, realizou-se um pré-teste. O questionário aprovado no painel de especialistas foi respondido por um médico e dois enfermeiros de ESF que não participaram na etapa posterior da pesquisa.

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, sob o parecer no 303.649, em 14 de junho de 2013.

Resultado e discussão

Foram identificadas oportunidades de aprimorar a versão brasileira. Essa melhoria envolveu aspectos relacionados à terminologia, à taxonomia, à ambiguidade e ao contexto cultural. Houve a necessidade de apresentar aos respondentes da pesquisa um glossário sobre os conceitos relativos ao tema segurança do paciente. Reafirmou-se que o questionário deveria ser aplicado a médicos e enfermeiros da ESF, de acordo com o modelo multiprofissionais da APS 9Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012..

A Tabela 1 apresenta as versões do questionário em inglês, em português, com as sugestões dos autores e com as modificações realizadas pelos especialistas. Na questão 1, optou-se por substituir a palavra “problem”, por “incidente”, que são eventos ou circunstâncias que poderiam resultar, ou resultaram, em dano desnecessário ao paciente, em consonância com a taxonomia utilizada pela OMS 1010 World Health Organization. The conceptual framework for the International Classification for Patient Safety. Final technical report. Geneva: World Health Organization; 2009.. Nas questões 2, 8 e 14, uma escala foi adaptada ao questionário brasileiro para facilitar o entendimento da pergunta e a compilação dos resultados, o que não havia na versão original e portuguesa. Na questão 3, o termo “patient age” da versão original não diferenciava o menor de um ano de idade. Foi inserida a alternativa de idade em meses. Na questão 5, a frase “Is the patient a member of a group designated an ethnic minority by your country?” foi inicialmente suprimida pelos autores, mas mantida de forma modificada, buscando identificar os grupos de maior vulnerabilidade social 1111 Ayres JR, Calazans GJ, Saletti Filho HC, França Júnior I. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 117-40.. Na questão 6, os especialistas sugeriram traduzir o termo “chronic health problem” como “doença crônica” 9Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012.. Na questão 7, os especialistas identificaram a necessidade de esclarecer melhor o que se entende por “complex health problem”, mediante a introdução de um adendo. Na questão 8, os especialistas acrescentaram os tipos de incidente para haver consistência com a questão 1. Eles sugeriram ajustes de linguagem nas questões 9 e 13, por entenderem que não estavam formuladas em linguagem clara. Na questão 12, na resposta à pergunta “Where did the error happen?”, foi acrescentada a opção “Outros. Quais?”.

Tabela 1
Questionário Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME) na versão de língua inglesa, na versão portuguesa, na versão dos autores e na versão dos especialistas.

Os textos das questões 4, 10, 11, 15 e 16 não sofreram modificações após a apreciação do painel. No pré-teste, não houve sugestões de mudança, porém o tempo para preenchimento do questionário foi considerado um fator de dificuldade.

A versão brasileira do questionário PCISME está apresentada na Figura 2.

Figura 2
Questionário Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME) adaptado para a realidade brasileira.

Podem-se considerar limitações neste trabalho: (i) a aplicação anterior dos questionários em países desenvolvidos e com diferentes arranjos nos sistemas de saúde; (ii) a dificuldade de comparação dos resultados, considerando a variação de abordagem na APS, as diferenças culturais e a pouca difusão do conceito de segurança do paciente entres os profisionais de saúde no Brasil; (iii) a pouca familiaridade do profissionais de saúde em participar de projetos de pesquisa; (iv) o pouco tempo disponível dos profissionais de saúde, que, via de regra, trabalham em mais de um serviço de saúde; e (v) o fato de a metodologia utilizada não envolver retrotradução.

Conclusão

A área de pesquisa sobre a segurança do paciente é relativamente recente e existem questões importantes sobre a validade dos métodos empregados na mensuração de incidentes na APS 1212 Gaal S, Verstappen W, Wensing M. Patient safety in primary care: a survey of general practitioners in The Netherlands. BMC Health Serv Res 2010; 10:21..

O processo de tradução e adaptação do questionário PCISME cumpriu o papel de contribuir com instrumentos específicos para mensuração de incidentes em APS. A aplicação desses instrumentos chama a atenção para o problema da ocorrência de danos em pacientes na APS. Os resultados da aplicação do questionário adaptado à realidade brasileira podem produzir informações específicas sobre este campo do conhecimento, de modo a fortalecer iniciativas nacionais para a melhoria da segurança do paciente, como o Programa Nacional de Segurança do Paciente 1313 Ministério da Saúde. Portaria no 529, de 1 de abril de 2013. Diário Oficial da União 2013; 2 abr..

Agradecimentos

Agradecemos aos especialistas que contribuíram com a tradução e a adaptação do questionário.

Referências

  • 1
    World Health Organization. Safer Primary Care Expert Working Group. http://www.who.int/patientsafety/safer_primary_care/en/index.html (acessado em 06/Set/2014).
    » http://www.who.int/patientsafety/safer_primary_care/en/index.html
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    Makeham M, Dovey S, Runciman W, Larizgoitia I. Methods and measures used in primary care patient safety research. Geneva: World Health Organization; 2008.
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    Marchon SG, Mendes Junior WV. Segurança do paciente na atenção primária à saúde: revisão sistemática. Cad Saúde Pública 2014; 30:1815-35.
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    Ministério da Saúde. Portaria no 529, de 1 de abril de 2013. Diário Oficial da União 2013; 2 abr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2014
  • Revisado
    10 Dez 2014
  • Aceito
    24 Mar 2015
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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