TRÊS ENSAIOS DE BIOÉTICA

Marisa Palacios Sobre o autor
2015

Três Ensaios de Bioética, de Fermin Roland Schramm, lançado pela Editora Fiocruz em 2015, nos convida a penetrar mais profundamente na reflexão acerca de três temas estruturantes dessa jovem área do conhecimento chamada Bioética. Trata-se de um esforço que se insere na construção desse campo no Brasil. Schramm lança as bases para uma metabioética realista. Situando-se em uma zona inter, multi e transdisciplinar, adota o ponto de vista complexo de Morin para articular biopolítica, linguística, ética, clínica, filosofia, psicologia, sociologia, biologia.

O autor apresenta três ensaios articulados, cada qual com seu objeto específico. O primeiro ensaio estabelece as bases e defende a construção de uma metabioética realista. É uma exercício inovador de articulação entre teoria e prática, tendo a bioética clínica, o ambiente clínico como seu chão, ponto de inserção no real. O segundo ensaio trata da genômica como questão central da Bioética, uma vez que é nesse campo que se dá o embate mais fervoroso da ética com o desenvolvimento da biotecnociência. Que argumentos morais sustentam o avanço da engenharia genética humana? Quais os que pretendem travar seu desenvolvimento? O autor faz um mapeamento sereno dos argumentos e procura alicerçar essa discussão em um debate filosófico entre a técnica e a ética. O terceiro ensaio, por meio do conceito de risco, o autor aproxima e distingue bioética e biossegurança. A questão da delimitação de cada um desses campos e a complementaridade entre eles são discutidas, tendo o risco associado ao desenvolvimento da biotecnociência como fio condutor.

A Bioética Clínica lida com os conflitos morais que se instalam no ambiente clínico, envolvendo as relações entre o pessoal de saúde, especialmente médicos, e pacientes, muitas vezes nas condições de agente e paciente morais. O autor apresenta três aspectos fundamentais como constitutivos e intrinsecamente relacionados da conflituosidade moral, objeto da Bioética Clínica: o fato real - o conflito em si; uma competência moral para lidar com as ferramentas da Bioética no caso específico daquele que toma a decisão ou do grupo/consultor que discute o caso - como em uma Comissão de Bioética Hospitalar ou no caso da consulta ética por especialista; e o contexto de pluralidade moral, característico de nossas sociedades democráticas contemporâneas, entendido como elemento de um sistema complexo. A possibilidade de resolução de conflito por meio de acordo/negociação/consenso, uma solução ou caminho compartilhado entre os envolvidos no ambiente clínico, finalidade da Bioética Clínica, só é possível se for considerada a tensão dialética existente entre esses elementos. E assim Schramm vai desenvolvendo sua metabioética clínica, colocando no centro da reflexão a própria bioética clínica, seus "conceitos, valores e normas envolvidos, assim como a força argumentativa [...] utilizada para justificar as tomadas de decisão normativas nas situações moralmente problemáticas" (p. 50).

O problema da reengenharia humana é abordado de forma abrangente, examinando a natureza da questão ética que envolve o desenvolvimento biotecnocientífico na área da engenharia genética humana, os argumentos pró e contra. Por fim, sem concluir, a obra apresenta uma síntese da discussão desenvolvida, mostrando as inconsistências das formulações discursivas sobre o tema, totalmente em aberto, sem adotar fórmulas já suficientemente debatidas como os discursos tecnofílicos e tecnofóbicos. A escolha de Schramm é clara, sem assumir aprioristicamente um lado em disputa, ao ir desconstruindo ambos os discursos, para assinalar o espaço que a Bioética, como um campo disciplinar, vem historicamente construindo. Trata-se, ao mesmo tempo, de um discurso que amplia a reflexão acerca das questões morais que emergem do desenvolvimento biotecnocientífico, mas que não descuida do respeito às comunidades morais que caracterizam nossas sociedades pluralistas. Lembra Schramm que a análise bioética, que a própria emergência da biotecnociência promove, inclui necessariamente os efeitos não só sobre a qualidade de vida dos humanos, mas também sobre o mundo humano futuro, o mundo animal, os seres vivos em geral e o ambiente natural. Conclui Schramm que melhor do que buscar uma teoria ética forte que possa justificar as ações de intervenção genômica ou sua interdição, seria pensar em mecanismos de controle nas mãos da sociedade civil empoderada, com reflexão caso a caso. Sobre esse tipo de mecanismo, o autor cita como exemplo o sistema brasileiro de avaliação ética do Conselho Nacional de Saúde, que acompanha as pesquisas que envolvem seres humanos no Brasil. Para não concluir o ensaio, Schramm chama a atenção para a necessidade de ter em conta que a discussão acerca da moralidade da genômica se dá em um contexto de grandes interesses econômicos e políticos a modelarem os fins a que se destina a técnica, ou, dito de outra forma, se a biotecnociência pode ser mal utilizada, isso se deve aos interesses em jogo, ao jogo do poder.

Em seu último ensaio, Schramm examina a interface entre Bioética e Biossegurança. Com rigor metodológico, Schramm vai tecendo junto, sem confundir, uma interseção entre os dois campos. Se ambos têm como objetos preciosos os riscos do desenvolvimento da biotecnociência, e ainda lidam com normatividade, o que distingue a Bioética da Biossegurança? A biossegurança desenvolve técnica de controle/monitoramento e proteção das populações, do ambiente, dos seres vivos em geral e estabelece as normas de uso e as probabilidades das consequências das intervenções sobre as vidas. Nesse sentido, devem ser considerados os riscos das ações da própria biossegurança como um dispositivo de controle que, por um lado, pode ser ineficaz e, por outro, pode ser instrumento de gestão do medo e controle da sociedade. A bioética, como campo disciplinar, é capaz de enfrentar a questão de até onde e quando é prudente transformar a vida, tendo em vista os benefícios que o desenvolvimento biotecnocientífico pode proporcionar à humanidade. É capaz, ainda, de pôr em destaque os riscos das ações da biossegurança, que podem variar desde a ineficácia do controle do risco da biotecnociência ao controle excessivo em detrimento das liberdades mais básicas. Uma e outra são complementares dentro de seus campos específicos de conhecimento. Sem o aporte da biossegurança a estabelecer concretamente a métrica dos riscos desse desenvolvimento, não haverá substância para avaliação ética, assim como "bioética [entra] para legitimar, ou deslegitimar, perante a sociedade, os riscos que valeria a pena correr, ou não, tendo em conta tanto os objetivos pragmáticos legítimos da biotecnociência quanto da eficácia da biossegurança em prever, controlar e evitar a ocorrência dos riscos" (p. 165). Mais que complementares, "bioética e biossegurança podem colaborar para construir pelo menos pontos de convergência (ou interfaces) acerca de como encarar de forma racional e, até onde for possível, imparcial, os riscos que uma sociedade democrática (e razoável) decidir correr para alcançar os benefícios potenciais desejados, minimizando os riscos diante do fenômeno complexo e polêmico chamado biotecnociência".

Com este trabalho, Schramm enfrenta o desafio proposto por Beauchamp 11. Beauchamp TL. Does ethical theory have a future in bioethics? J Law Med Ethics 2004; (32):209-17. de articular teorias éticas (sem perder de foco o rigor teórico-metodológico) e os conhecimentos explicativos produzidos nas mais diversas disciplinas para compreender as situações que estão no centro da preocupação da bioética. É assim que Schramm vai tecendo sua análise da "caixa de ferramentas" da bioética clínica e dos desafios éticos tanto do desenvolvimento da genômica quanto da biossegurança na sociedade de risco.

É um livro denso e fundamental para quem queira trabalhar no desenvolvimento teórico da Bioética. Os textos são construídos com base em extensa bibliografia, articulando, de modo inovador, conceitos e teorias, dando efetiva contribuição ao desenvolvimento do campo.

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    Beauchamp TL. Does ethical theory have a future in bioethics? J Law Med Ethics 2004; (32):209-17.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2017
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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